''Pecados Inocentes'':Subversão de classe

Filme do norte-americano Tom Kalin usa conflito de classe para mostrar as trágicas  conseqüências para artista plástica pobre, casada com industrial, e sua relação com o filho adolescente

As relações de classe no cinema, salvo, por exemplo, em “O Criado”, de Joseph Losey, que expõe abertamente os conflitos entre empregado e patrão, são sempre escamoteadas, como se nada existisse para além do filme. Mesmo que o diretor tente explicitar os confrontos advindos das diferenças de classe, algo fica subentendido e, devido a isto, escapam ao espectador os reais motivos do comportamento dos personagens. É preciso muito esforço para entender suas reações àqueles que lhes são, supostamente, inferiores. E, portanto, devem ser desprezados em nome de um equilíbrio entre iguais, seja de classe, seja de relação amorosa. Tom Kalin não escapa a estas fragilidades, em seu filme “Pecados Inocentes”, baseado no romance da dupla Natalie Robins e Steven M.L. Aronson. Nem por isto sua obra é desprezível. Pelo contrário, sua narrativa, cheia de elipses, cria mal-estar pelo que mostra, e a encadeia de tal forma que os reais motivos do comportamento dos personagens quase são esquecidos.


 


 


“Pecados Inocentes” é sobre as relações do milionário inglês Brooks Baekeland (Stephan Dillane), herdeiro da fábrica de plásticos Bakelite, com a artista plástica Bárbara Daly (Julienne Moore) e seu filho Tony (Eddie Redmayne). Ele a trata com distanciamento por ela não corresponder ao que ele, em sua posição, necessita dela. E termina deixando-a por uma jovem espanhola.  Bárbara o incomoda com suas maneiras, seu desapareço aos rituais à mesa ou nos locais elegantes que ele a leva. Ela, por sua vez, o desafia, o afronta, diante de seus amigos, “envergonhando-o”. Estes são os momentos em que as diferenças de classe afloram, sem que fiquem explícitas as classes às quais pertencem. Ao que parece nem Kalin, nem seu roteirista Howard A.Rodman, quiseram enfrentar o tema. Deixaram-nas subentendidas. Preferiram enveredar para as conseqüências da ruptura entre Bárbara e Brooks, tornando “Pecados Inocentes” um drama sobre a falência das inter-relações burguesas.


 


 



Relação amorosa burguesa cai na permissividade


 


 


Esta opção o tira do espaço político-social e o transforma numa obra sobre o comportamento amoroso da burguesia, com todas as implicações engendradas pela permissividade, a devassidão e os jogos sexuais, que incluem o incesto, a droga e a homossexualidade. Um narrador marca cada seqüência, espécie de capítulo que demarca a narrativa, para introduzir uma e outra observação. O que faz “Pecados Inocentes” ter vários fios que se desdobram em outros e outros até o desfecho final. Recursos que encobrem os motivos das reações de Bárbara e Tony, com Brooks se distanciando e provocando no filho frustrações que emergem ora contra ele, ora contra sua ex-mulher. E também as desta que tenta, em princípio se vingar, mas, depois de ver suas investidas rechaçadas, se retrai, mergulhando na derrisão.


 


 


Bárbara não admite ter sido substituída por Blanca (Elena Anaya), muito mais jovem do que Brooks e ela. Busca apoio em suas amigas burguesas, clientes de seu ateliê, porém dispostas a seguir suas vidas sem se envolver na da amiga. Recatadas, elas parecem não ter sexo ou interesse na troca de parceiros. Na verdade, elas seguem o ritual de classe subentendido, o que deixa Bárbara perdida. Não tem em quem se amparar; então se enclausura em sua mansão, onde também se encontra emoldurado o filho Tony. Ele, adolescente, em busca de sua identidade, sente a ausência do pai e irrita-se com a atitude da mãe. Reage a um e outro adotando um comportamento promíscuo, envolvendo-se com seu amigo e homônimo Tony (Barney Clark) e depois com Hugh Dancy (Sam Green), espécie de acompanhante, amante e criado.  Sexo, bebida e maconha predominam em seu dia, enquanto Bárbara oscila entre a depressão e a fuga. Ela não liga para o que ele faz ou busca para escapar à difícil carga da separação dela de Brooks.


 


 


Tony passa da solidariedade à mãe a seu protegido


 


 


Nesta altura a luta de classe, em “Pecados Inocentes”, já ficou para trás, o espectador já nem se lembra que havia, no início, esta vertente. Agora, centra-se mais em Tony, em sua tentativa de convencer ao pai que deveria regressar; retomar o casamento com Bárbara e, portanto, fazer com que ele, Tony, reencontre o equilíbrio familiar, permitindo-lhe segurança de antes. Ele o faz de forma inusitada, levando-lhe uma carta que deixa enterrada no jardim. É o adolescente tentando salvar o casamento dos pais, reação corriqueira nestes casos, com resultados insatisfatórios. Justo ele, de quem Brooks retirou não só a segurança, como também a iniciação amorosa. Tornando-se, desta forma, também um rival. Mas Tony não o odeia, quer ajudar a mãe, mesmo que não o diga. Fecha-se, a exemplo dela, em cômodos, camas, salões, enfiados em ternos de grife, opção vã para os impasses que dominam a ambos.


 


 


Até que Bárbara; insatisfeita com as relações amorosas do filho, muda de comportamento e o toma como uma criança, necessitada de proteção. Uma proteção que inclui afeto, orientação, inclusive suprir suas carências amorosas. Uma forma inversa de abordar um tema ainda hoje tabu no cinema e na dramaturgia em geral, teatral e literária: o do Complexo de Édipo, em todas as suas nuances. Muitos a aprofundaram, como Louis Malle, em “Sopro no Coração”, de tal forma que o caráter edipiano da relação amorosa se transforma em algo menos traumático. Kalin, a partir do romance de Robins e Aronson, envereda pela trilha da carência do filho, que a mãe procura suprir. Não há sedução de parte a parte, só a tentativa de Bárbara não deixar que Tony se deprima. Uma cena forte, que incomoda pelo que simboliza, e Kalin a expõe numa longa seqüência, pontuada de silêncio, frases curtas, entrecortadas pela respiração ofegante de mãe e filho; termina por impor uma visão diversa da que se esperava.


 


 


Espectador se torna voyeur no filme


 


 


Tudo se passa como se nada daquilo interessasse a mais ninguém, só a eles. Os ambientes são fechados, quartos emoldurados, igual às demais seqüências que se passam nos cômodos da mansão. A vizinhança nada sabe do que ali ocorre entre paredes, lençóis e refregar de corpos. Inexistem olhares por detrás das cortinas ou através das janelas. O espectador assume o papel de testemunha, só ele tem acesso ao que se passa ali, repetindo as narrativas hitchcockianas, em que apenas ele, o espectador, sabe quem é e o que faz o assassino. É ele quem presencia a formação do triângulo amoroso entre Bárbara, Sam e Tony. Nada pode fazer, no entanto, só presenciar. O incomodo se estabelece, o riso fica pela metade e o voyeurismo se estabelece. Ele, o espectador, espia e se retrai, às vezes baixa a cabeça e mantém os olhos atentos. Tal a sedução que as seqüências exercem sobre ele. Exigem dele um comportamento adulto para adentrar as intimidades de Bárbara e Tony, desnorteados pela perda do companheiro e do pai.


 


 


O filme se impõe pela abordagem adulta, que faz o espectador ver para além da “normalidade” da situação. Eles estão ali naqueles cômodos; seu habitat e sua prisão. Sam assume o papel de “Anjo Exterminador”, Terence Stamp, em “Teorema”, que desmonta a família burguesa e faz cada um assumir seu papel, incluindo o de apóstolo. Depois, ele se vai e os deixa entregues aos seus impasses. Deverão bastar-se a si próprios. Chegando, assim, à completa inter-relação. Nesta altura, os fios estão curtos, entrando em curto-circuito. Não há mais diferença entre ser mãe e ser parceira, ser filho e ser parceiro. A narrativa que vem dos anos 40 aos 70, passa por várias etapas, e eles, longe de se encontrar, demonstram a incapacidade de enxergar os pontos de ruptura e de reatamento.  Ambos se tornaram perigosos um para o outro. Poder-se-ia dizer que a moral burguesa se esfumaça e existem tão só relações bíblicas, de supressão da moral: a necessidade da supressão da carência pelo afeto e, até, pela concretização amorosa.


 


 


Possibilidade de reencontro se torna difícil para Bárbara


 


 


Isso se equivale a justificar o que faz Bárbara para proteger o filho e o que este faz para dela escapar, numa refutação edipiana às avessas. A complexidade do tema; leva o espectador a temer pelo que a relação entre eles encerra. Simboliza-a um objeto a que Tony se refere há todo momento, único que preserva sua relação com o pai, Brooks. Um símbolo por demais frágil e de fácil identificação. O que demonstra o quão infantil Tony permanece e o quanto Bárbara não o identifica para ajudá-lo a superar o trauma da separação dela de Brooks. A frustração da perda, porém, não a permite ver para além dos cômodos nos quais se encontra enclausurada. E, embora Kalin não retome os conflitos de classe, a impossibilidade do reencontro fica patente, pelas atitudes de Brooks em não responder às cartas do filho e pelas investidas da Bárbara, todos fadados ao fracasso.


 


 


A impressão que fica de “Pecados Inocentes” é a de um filme que prefere mergulhar nas implicações que a separação dos pais provoca no filho, porque o pai não o considera à sua altura, e na ex-mulher por ele não a respeitar devido a sua origem de classe, que considera inferior à sua, insuficiente, segundo ele, para transitar em ambientes freqüentados pela alta burguesia. Nada disto, entretanto, perpassa de forma explícita os 97 minutos do filme. A fragilidade de Tony e Bárbara demonstram a incapacidade deles reagir à situação que os envolve, preferem atar-se um ao outro. O desfecho, surpreendente, faz o espectador deixar o cinema indagando se, com o dinheiro que ambos tinham, não seria o caso de eles reagirem de forma diferente. O inusitado, a infantilidade de Tony, somada a seu traço edipiano, configurado na relação com Bárbara e na coleira do cão que se foi com sua inocência, sem dúvida não o permitiram.


 


 


Mote dos conflitos é a diferença de classe


 


 


O mote, enfim, permanece; a recusa de Brooks de permanecer com Bárbara e sua negação de aceitar o filho que teve com ela. No centro de tudo, embora Kalin não o retome nas seqüências finais, continua sendo a diferença de classe entre ele, Brooks, e sua ex-mulher, Bárbara. A narrativa cessa no instante em que o desfecho se configura e Kalin situa a ação agora em torno de Tony, explicando sua patologia, em si presente na reação dele à perda de algo que lhe era caro; e ela, Bárbara, por um daqueles gestos nem sempre bem explicados, tenta acalmá-lo, mas é tarde. O válido em “Pecados Inocentes” é a idéia de que a burguesia não escolhe seu par seguindo o que lhe dita o coração, sim por seu interesse de classe. O resto é conto de fadas: nem todo pé cabe no sapato de princesa, nem todo sapo vira príncipe, pois é da natureza do sapo ser apenas sapo!


 


 


“Pecados Inocentes” (“Savage Grace”). Drama. EUA/Espanha. 2007. 97 minutos. Roteiro: Howard A. Rodman, baseado no romance de Natalie Robins e Steven M.L. Aronson. Direção: Tom Kalin. Elenco: Jualianne Moore, Stephen Dillane, Eddie Redmayne, Elena Anaya, Barney Clark e Hugh Dancy.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor