Pra que trote?

Todo início de ano a cena se repete, tal qual o nascer e o por do sol diário. Quando a lista dos aprovados nas universidades e faculdades isoladas é divulgada, os novos estudantes – pejorativamente chamados de calouros ou “bicho” – são submetidos a divers

 


 


 


 


 


 


 


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O tipo e a intensidade desse expediente varia de acordo com o humor e a psicopatia de quem o aplica. Mas, manifestações de extremo mau gosto – para dizer o mínimo – não se constituem na expressão mais negativa dessa prática. Mortes, por brutalidade ou inaptidão da vítima para determinados tipos de trote, tem sido uma rotina nesses rituais macabros.


 



Mas de onde vem essa “tradição”?


 


Há fortes evidências de que o trote surgiu como uma forma da aristocracia humilhar os burgueses quando estes finalmente tiveram acesso às universidades, até então restrita aos membros da nobreza imperial. O “trote”, portanto, não é uma “brincadeira” inofensiva. Ele é uma clara manifestação de intolerância, preconceito e boçalidade. Além de provocar mortes.


 


Com o desenvolvimento das forças produtivas, especialmente após o advento da revolução industrial, a formação de uma grande quantidade de técnicos passou a ser uma necessidade crescente. A intensificação do processo produtivo fazia surgir novas máquinas e equipamentos, cujo manuseio e operação nem sempre era compatível com a noção de trabalho que a aristocracia tinha do mesmo. Graxa, terra, sol, calor, fuligem, dentre outros fenômenos, não era algo que a “nobreza” entendesse como digno de suas mãos suaves.


 


A solução era permitir que os filhos da burguesia ingressassem na universidade e se capacitassem para esses trabalhos. Era uma “concessão” que a nobreza fazia aos plebeus de então. Mas, para distingui-los e evitar que freqüentassem seus ambientes, os burgueses tinham a cabeça raspada, eram obrigados a limpar as latrinas dos nobres, cuidarem de seus sapatos e se submeter a todo tipo de humilhação, por todo o período de duração do curso e não apenas no batismo como é hoje.


 


Não me parece razoável e muito menos inteligente que as nossas universidades continuem praticando esse ritual medieval. Seria mais saudável gastar essa energia em algo produtivo e de interesse coletivo, como doar sangue para bancos públicos, fazer coleta de lixo e arborizar ruas e os campus universitários.


 


Foi dessa forma que a minha turma aboliu o trote, em 1976, no então recém criado curso de Agronomia da Universidade Federal do Amazonas. Impusemos-nos a nós mesmo, na medida em que éramos a primeira turma, o plantio de dezenas de árvores, especialmente nas áreas de estacionamento e recreação do campus da UFAM. Hoje, passados mais de 30 anos, elas lá estão sombreando e sendo cúmplices de todos quanto necessitam de alguma proteção contra o popular calor amazônico.


 


Os nossos ancestrais, os símios, têm uma grande capacidade de imitação. Mas nós podemos e precisamos distinguir o que vale apenas imitar daquilo que devemos desprezar para o lixo da história.

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