Presidencialismo e rupturas políticas

Os dilemas da Convenção da Filadélfia.

O momento de assinatura da Constituição dos Estados Unidos da América, por Howard Chandler Christy

No artigo anterior apontamos que toda a concepção do Estado norte-americano e a arquitetura de poder foram definidas na Convenção da Filadélfia. A independência dos Estados Unidos foi declarada no dia 4 de julho de 1776, porém a guerra de libertação somente se encerrou em 1783. Portanto, a Convenção ocorreu no contexto de uma economia que procurava se reorganizar depois de seis anos de conflito, reunindo 13 estados que funcionavam quase como países independentes, chegando ao ponto de se envolverem em guerras comerciais entre eles.

As dificuldades para que os convencionais, representantes de 12 dos 13 estados, construíssem consensos eram tão grandes que o encontro se iniciou em 25 de maio e somente se encerrou em 17 de setembro de 1787, durando quase quatro meses. Dividida entre federalistas e antifederalistas, ao interpretar a Constituição resultante daquele evento, o historiador norte-americano Charles Beard a classificou como um documento econômico, resultante do enfrentamento entre aqueles que defendiam um governo nacional forte e centralizador, ligados ao capital mercantil e financeiro, os federalistas, e os que desejavam um governo mais descentralizado, representados especialmente pelos proprietários rurais, os antifederalistas. Tal referência se torna relevante para entendermos que a constituição dos Estados Unidos se deu sob o comando de uma única classe social, a burguesia emergente. As divergências que se apresentaram diziam respeito às divisões de interesses desta classe. A solução, ou seja, uma Constituição e o novo Estado deveriam representar os interesses dela e conciliar as suas diferenças.

O único estado sob a hegemonia da burguesia estabelecido até então, era a própria matriz da qual as colônias haviam se libertado. A Inglaterra havia passado por uma rápida experiência republicana entre 1649 e 1658, implantada pela Revolução Puritana. No período republicano foi extinta a Câmara dos Lordes e instalado um Conselho de Estado liderado por Oliver Cromwell que se autointitulou como Lorde Protetor da República. Tal experiência sofreu uma contrarrevolução e a monarquia absolutista foi restaurada, não conseguindo sobreviver, no entanto, mais que 30 anos. Em 1688, praticamente cem anos antes da independência norte-americana, a Revolução Gloriosa poria um fim definitivo à monarquia absolutista, instaurando a monarquia constitucional. A monarquia parlamentar como a conhecemos hoje só viria mais tarde.

O novo regime mantinha estruturas já seculares da sociedade inglesa, porém, com mudanças significativas. A figura do monarca, vitalício e de sucessão hereditária, permanecia. Permaneciam também os organismos seculares Câmara dos Lordes e Câmara dos Comuns, que constituiriam o parlamento. Com a Declaração dos Direitos, em 1689, resultante da Revolução, limitava-se os poderes do monarca e os equiparava aos do parlamento, além de reconhecer a independência do judiciário.

A Revolução Francesa só viria a ocorrer entre os anos de 1789 a 1799, portanto, posterior à Convenção da Filadélfia. A Primeira República Francesa foi proclamada em 1792 e, de 1793 a 1794, assumiu a forma de ditadura, comandada por Robespierre, imposta pelo Comitê de Salvação Pública. Entre 1795 a 1799, a ditadura foi substituída pelo regime conhecido como Diretório, que restabeleceu as eleições censitárias para as câmaras legislativas – o Conselho dos Quinhentos e o Conselho dos Anciões. O Conselho dos Anciões, formado por membros mais velhos do Conselho dos Quinhentos, seria transformado por Napoleão no Senado Conservador. Em 1799, o golpe de Estado “18 Brumário” poria fim ao Diretório, abrindo caminho para o regime do Consulado, cuja figura central seria Napoleão Bonaparte. Em 1804, Napoleão é proclamado imperador, dando início a uma monarquia constitucional na França, conhecida como Primeiro Império, que duraria 15 anos. A ocupação francesa na Europa contribuiu para a extinção de várias monarquias absolutistas.

Com a derrota de Napoleão e seu exílio, a França se manteve sob o regime monárquico restabelecendo a dinastia dos Bourbons, que seria derrubada e substituída pela dinastia dos Orleans, e esta, substituída em 1948 pela breve Segunda República, suplantada em 1852 pelo Segundo Império de Luis Bonaparte.

Portanto, aos fundadores do Estado norte-americano restavam as teorias de Locke e Montesquieu e a experiência inglesa, visto que o restante da Europa ainda se encontrava sob o regime das monarquias absolutistas. Para atender aos interesses da classe dominante em ascensão, a fórmula inglesa, teorizada pelos dois pensadores iluministas, parecia uma boa solução, constituindo os poderes executivo, legislativo e judiciário como poderes independentes.

À Convenção da Filadélfia, três proposições de estruturação do novo Estado se apresentaram. A primeira delas foi o Plano da Virginia que consistia, entre outros aspectos, na proposição de um legislativo com duas câmaras, sendo a composição de ambas, proporcional à população de cada estado. A Câmara Baixa seria eleita pelo voto da população de cada estado e a Câmara Alta, nomeada pelos legislativos estaduais. Previa um executivo com a finalidade de assegurar a aplicação das decisões do legislativo e previa ainda a constituição de um Conselho de Revisão que teria o poder de vetar e rever a legislação nacional.

A segunda proposição, era o Plano de Nova Jérsei, que representava os estados menores. Propunha um legislativo com uma única câmara, cujos membros, um por estado, seriam indicados pelos governos estaduais, que seria a permanência do Congresso já instalado. Previa a criação de um executivo que seria designado pelo Congresso e um judiciário designado pelo executivo.

O consenso se construiu com a proposição que viria a ser conhecida como o Grande Compromisso. Por esta proposição, constituir-se-ia a Câmara dos Representantes, eleita pelo sufrágio, com número de representantes proporcional à população de cada estado, e o Senado, composto por um representante por estado, nomeado pelos legislativos estaduais.

Quanto ao executivo, na experiência inglesa o monarca constituía e comandava o gabinete de governo. A figura de primeiro ministro só surgiria com o reinado de Jorge I, no início do século XVIII, que ascendeu ao trono Britânico única e exclusivamente por ser o protestante com grau de parentesco mais próximo com Ana da Grã-Bretanha. Todos os outros 50 herdeiros que o precediam eram católicos e, pelo Decreto do Estabelecimento de 1701, proibidos de assumir o trono. Nascido em Hanover, Jorge I sequer dominava o idioma inglês, o que o levou a designar um primeiro ministro que lhe servia de tradutor e colaborador direto para dirigir o gabinete de governo. A partir de então, tal figura se consolidou mais como uma tradição do que por convenções estabelecidas e evoluiria no decorrer do tempo para a configuração que conhecemos nos dias atuais.

No caso dos Estados Unidos, a constituição de um executivo comandado por um cargo vitalício de transição hereditária, resultaria em uma inevitável dissolução da unidade federativa, ainda mais que o Grande Compromisso preservava enormemente a independência dos estados sobre uma grande gama de questões. A solução norte-americana foi criativa, uma espécie de monarca, eleito ou nomeado, com mandato curto e determinado. Esta figura, que teria a tarefa de formar o governo e nomear os ministros, comandaria também um Estado composto por 13 unidades federativas, que gozavam de grande autonomia. Ou seja, se presidiria estas 13 unidades, nada mais conveniente do que ser chamado de presidente.

A eleição do presidente pelo voto popular nunca passou pela cabeça dos convencionais. Pelo contrário, era considerado um fator de desestabilização. A proposta inicial de que seria nomeado pelo legislativo também não pareceu boa, pois poderia se constituir num fator de desequilíbrio e perda da independência de um poder sobre o outro. A solução encontrada foi a do voto indireto, através de um colégio eleitoral, na forma que funciona até hoje.



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