“Propriedade Privada”: A mulher em suas circunstâncias

Em filme que centra sua narrativa na venda de uma fazenda, diretor belga, Joachim Lafosse, discute a difícil situação da mulher divorciada, presa a preconceitos, machismo e exigências sociais difíceis de suportar

Em que pese o avanço conquistado pelas mulheres, sua vida ainda é definida pela manutenção das ligações estabelecidas ao longo de sua vida. Principalmente se constituiu família e esta foi desfeita pelas imposições sociais, matrimoniais, ou simplesmente pela visão machista de uma sociedade que a quer fiel a uma imagem anterior, que ela busca modificar segundo as novas circunstâncias. E lhe impõe uma obediência cega a ditames que a impede avançar e alcançar o equilíbrio na relação a dois, com novo parceiro, conservando parte do que construiu na relação anterior, inclusive mantendo sua ligação com os filhos, sob quaisquer condições, dada à dificuldade de romper estes liames. Não é outra a abordagem do belga Joachim Lafosse, em seu filme “Propriedade Privada”, que o encadeia de forma a mostrar suas várias teias, a partir do simples cotidiano.


 


 


A mulher no caso é Pascale (Isabelle Huppert), que, ao divorciar-se do marido Luc (Patrick Descamps), fica com a fazenda do casal, onde vive com os filhos; os gêmeos Thierry (Jérémie Renier) e François (Yannick Renier), já adultos. Com o novo companheiro, Jan (Kris Cuppens), ela pretende vender a fazenda e montar uma pousada nos Alpes. Uma verdadeira guerra se abre contra ela, movida por um dos filhos, que se opõe a que siga adiante com seu projeto e construa uma nova vida, de acordo com as relações estabelecidas agora com Jan. Ainda que os filhos possam seguir junto com ela e a ajudem a manter o negócio. Algo possível na transação a ser feita, a partir da venda da fazenda. Em resumo, toda a narrativa de “Propriedade Privada” se assenta nestes eixos, que vão se desdobrando até um desfecho que diz muito a respeito dos descaminhos das relações conjugais e entre pais e filhos nos tempos atuais.


 


 


A começar pelo papel da mulher, a quem cabe suportar as contradições da separação de forma adversa do marido. Pascale, ao contrário de Luc, permanece solteira, cuidando dos filhos e trabalhando. Sua jornada de trabalho inclui cozinhar, lavar, passar e cuidar da casa, enquanto Thierry e François percorrem os recantos da fazenda, ficam a matar ratos nas margens do lago ou simplesmente a ver televisão. A ela cabe ainda construir o futuro, manter uma relação quase clandestina com Jan e esconder o mais que pode seus planos para a aquisição da pousada nos Alpes. Seus dissabores não se restringem a estas manobras: tem de agüentar as brincadeiras de mau gosto dos filhos, quando comenta com eles a visita de Jan, vizinho da família. Com palavrões e gestos obscenos, eles zombam dela e a exasperam.


 


Imposições pesam sobre a condição feminina


 


 


Não só machismo emerge destas seqüências, que se repetem ao longo do filme, também demonstram as imposições que pesam sobre sua condição feminina, de divorciada em plena maturidade. Eles, os filhos, a querem “casta”, preservada para um possível retorno do pai, Luc. Para que isto aconteça, ela não deve ter relação alguma com outro homem, ainda que este seja seu atual namorado. Nenhum homem a deve tocar. Sua carência afetiva inexiste. Quando Thierry se irrita, amaldiçoa-a, como se tratasse de uma rameira jogada no lamaçal. Tal é o conservadorismo da burguesia francesa, traduzida pelo estudante, que nada mais faz do que perambular de um canto a outro da fazenda e aboletar-se no sofá para ver televisão. A reação de Pascale, enquanto mãe, é tentar contornar a situação enquanto espera o momento adequado para levar adiante seus planos.


 


 


Esta espera de momento adequado serve mais a Thierry que a ela. Além de estar apegado a estereótipos, ele se presta a outro sinal de sua condição machista, a de lutar pela manutenção da fazenda sob seu controle e de François. A fazenda então escapa à simbologia de classe, de quem busca preservar a propriedade herdada do pai, Luc, mantida sob a guarda da mãe, pelo fato de cuidar deles. Longe de ser parte da memória, de lembranças de infância, ela é o ganho futuro. Abrindo mão dela, deixam de ter segurança, terão de sair da ociosidade, principalmente ele, Thierry, que nada faz. Adverso de François, sempre às voltas com máquinas, consertos, espécie de faz-tudo da fazenda. Estas contradições não emergem nas conversas, nas discussões, são subjacentes ao comportamento de Thierry.


 


 


Forte traço das gerações burguesas, herdeiras de propriedades obrigatoriamente transformadas em fontes de renda, sem movimentação ou fonte de produção alguma. A fazenda onde vivem se transformou numa herdade apenas. Assim, a vida de Pascale está a ela vinculada, não lhe restando opção senão hesitar entre a venda ou não, pressionada que vive pelos filhos, notadamente Thierry. Da boca deste saem as mais pesadas acusações contra ela, carregadas de temores, fragilidades, medo de vê-la com outro homem e, ao mesmo tempo, sob a ameaça de perder sua herdade. Lafosse transita por estes temas com leveza, pausas, silêncio, que falam mais do que os pesados desaforos e agressões trocados por mãe e filho.


 


Silêncio atesta cilada vivida por Pascale


 



Numa dessas seqüências, depois de ver seu plano ser colocado sob suspeita, Pascale retorna à sua fazenda e se deixa ficar sentada à mesa, sozinha na penumbra. Seus olhos avermelhados, a face contraída e o ar de quem foi deixada no deserto demonstram toda sua amargura. Ela olha para além das paredes, do ambiente que a circunda; toda a condição da mulher, impedida de construir nova vida e usar seu corpo da forma que melhor lhe aprouver, emerge neste instante. A carga é por demais pesada. Noutro momento, Jan, a quem ela procura em busca de apoio, também escapa, Pascale fica entregue à sua própria condição. A solidão da mulher nestes momentos atesta que sua condição não pode ser medida apenas pelas opções, certas ou erradas, que adota – sobre ela existe muito mais do que escolher o caminho correto.


 


 



Lafosse não se prende à condição da mulher em “Propriedade Particular”, consegue transitar entre várias questões a um só tempo. Além da relação com os filhos e a questão da propriedade, ele avança para os liames entre Luc e Pascale. Por mais que ele tente lançar sobre a ex-mulher a responsabilidade pela escolha correta, não consegue fugir aos laços com ela antes estabelecidos. Em certo momento do filme, ambos têm que sair em socorro de seus filhos. A família antes separada, tendo Luc um filho de colo, vê-se, de repente às voltas com um problema comum, e dele tem de dar conta. É quando Lafosse diz: por mais longe que ex-marido e ex-mulher tentem se distanciar, os filhos estarão sempre a lembrar-lhes da continuidade da trajetória iniciada juntos, persistente na figura deles, filhos. Outra contradição difícil de ser negligenciada.


 


 


A câmera de Lafosse às vezes os surpreende em instantes de carinho, entregues à sua própria vivência. Numa delas, Luc conversa com o filho e lhe dá dinheiro para dividir com Françóis. Noutra, o jantar na fazenda desanda em discussão entre Thierry e Pascale – ele a acusa de gastar o dinheiro do pai desbragadamente. E não se trata de dinheiro, sim de ela usar seu tempo da maneira que melhor lhe satisfizer. Afinal, ao contrário dele e do irmão, Pascale tem um emprego. Mas, o modo como Thierry se insurge contra a mãe, assemelha-se ao pai culpando a mãe pelo divórcio de ambos. Thierry, enfim, é Luc em seus instantes de ego ferido, fato que Lafosse irá mostrar no momento em que as circunstâncias os obrigam a estar juntos, ainda que momentaneamente.


 


 


Françóis responde à ira do irmão com sarcasmo


 


 


Thierry então não amadureceu o suficiente para analisar a situação de Pascale e sua condição de mulher, com direito a construir uma nova vida. Seus instantes de fúria e de desprezo pela mãe o atestam. Diferente de Françóis, assentado, introspectivo, silencioso, disposto a contribuir com Pascale para a transição por ela pretendida. Mas também é sarcástico, provocativo, quando o momento exige. Usa as fraquezas do irmão para dele zombar perante a namorada de Thierry, Anna (Raphaélle Lubansu). Este antagonismo entre eles, aludido por Lafosse com referências bíblicas, faz o filme caminhar para um desfecho inusitado. Nada construído, de modo a manipular as emoções do espectador; as situações evoluem num crescendo, levando o espectador a imaginar o que está ocorrendo. O ódio de Thierry vai, aos poucos, se transferindo para outro ser, enquanto François começa a entender as nuances que está a perturbar o irmão.


 


 


Em meio a estes desencontros, Lafosse desvenda toda a ira que conduz sua narrativa. A propriedade, embora esteja na raiz dos conflitos, não é ela que os dita. É apenas um dado entre o leque de situações. O que conta é a condição feminina: a situação vivida por Pascale. Para preservar a propriedade e a frágil unidade do que restou da família, ela tem de abrir mão de seu direito a construir nova vida com o novo namorado, Jan, e, assim, usar a fazenda como esteio para a estruturação do futuro, junto com os filhos, se eles assim o quiserem.  Não é fácil, dada à carga de ressentimentos, de imaturidade, de machismo e condicionamento burguês configurado pela manutenção da propriedade, ou seja, da fazenda. Lafosse consegue, como já dito, transitar por estas vertentes sem perder o encadeado. E ainda mais: prende o espectador nas seqüências finais sem usar diálogos demasiados ou música manipuladora. Usa para isto, cenas circulares, em que a ação se dá num ambiente e no outro, com um ligado ao outro, de modo a que se preste atenção no estado de espírito de Thierry e no que se desenrola diante dos olhos dele.


 


 


O espectador, deixado em suspenso, fica diante de seqüências elaboradas para levá-lo a imaginar o que afinal fez o casal Pascale/Luc deixar o que os separa de lado para cuidar do que lhes é mais querido e urgente. Lafosse não lhe dá pistas, um e outro diálogo aponta soluções, apenas isso. Prática distante de filme europeus, aonde os fios vão sendo elucidados mais pelos diálogos que pelo encadeamento das seqüências. A beleza e o impacto de “Propriedade Privada” estão justamente nesta construção dialética entre o que não é mostrado e o que se desenrola as vistas do espectador. A propriedade privada não é só a fazenda, mas também Pascale, em sua condição feminina, sob os ditames primeiro de Luc e, depois, de Thierry, sem direito de desfrutar de seu corpo e de sua existência com Jan. Sua decisão em certo momento, dadas às inúmeras pressões de todos os lados, desencadeia uma série de conseqüências que é o preço que a mulher, em sua situação tem muitas vezes de arcar, para sobreviver.


 


 


“Propriedade Privada” (Nue Propriété).Drama. Bélgica/França/  Luxemburgo. 2006. 105 minutos. Roteiro: Joachim Lafosse e Françóis Pirot. Direção: Joachim Lafosse. Elenco: Isabelle Huppert, Jérémie Renier, Yannick Renier, Kris Cuppens, Patrick Descamps e Raphaëlle Labansu. 


(*) Prêmio Especial Signis Award, no Festival de Veneza/2006.           

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