“Quebra de Confiança”:Ecos da Guerra Fria

Diretor americano Billy Ray transforma caso verídico de espião americano que trabalhou para os soviéticos em filme de suspense.

As zonas cinzentas em que agem os agentes dos filmes de espionagem, nem sempre são claras. Há sempre razões obscuras, negligenciadas ou largadas à margem, para não confundir a mente do público, como se este devesse ser poupado dos motivos que os levaram a adotar a ideologia ou a política do “inimigo”. Em “Quebra de Confiança”, o diretor americano Billy Ray narra a história real do agente do FBI, Robert Hanssen (Chris Cooper), suspeito de espionar desde a década de oitenta para a União Soviética e continuar a fazê-lo após a queda do muro de Berlim, para a Rússia de Boris Ieltsin. Durante 110 minutos acompanha-se a perseguição implacável que lhe move a polícia federal norte-americana, sem que se saiba os reais motivos de suas ações. O que existe são acusações de entrega de espiões soviéticos que trabalham para os EUA e de documentos sigilosos para a antiga URSS.
               


 


É sabido que ninguém passa a agir, ainda mais numa área pantanosa, contra os interesses de seu país se não tiver dotado de profundas convicções ideológicas que norteiem suas ações. O Hanssen mostrado por Ray em “Quebra de Confiança” é religioso, desconfiado, apegado ao trabalho e à família, e meticuloso a ponto de parecer paranóico. Suas referências, o tempo todo, são sobre Deus, reza e freqüência à Igreja Católica, uma prática oposta à cultura protestante americana, maioria em seu país. E sempre acompanhado por sua mulher Bonnie (Kathleen Quinlan). Nenhuma frase sua indica que tenha tendência de esquerda ou socialista. E com este comportamento, torna-se difícil compreender porque nutre simpatias por um sistema diametralmente oposto ao se deu país de origem. 


              


 


Falta discussão sobre os motivos
de Hanssen mudar de lado


              


Esta roupagem, espécie de capa protetora usada por ele para esconder seus reais motivos, mostra sua capacidade de manipular e tecer fios que lhes permitam passar informações e documentos, sem chamar atenção de seus companheiros de trabalho e seus superiores. Mas indica também o subterfúgio dramatúrgico usado pelos roteiristas Adam Mazer, William Rotko e Billy Ray para escaparem às discussões político-ideológicas. Contrapor os dois sistemas, a partir das convicções de Hanssen, seria permitir ao público refletir sobre a natureza da espionagem e o papel do Estado capitalista. Principalmente quando envolve ideologia, luta pela construção de um sistema contrário à estrutura capitalista e a possibilidade de o país que defende não ser a solução para as camadas populares. Nenhum diálogo em “Quebra de Confiança” remete-se, nem levemente, à sua simpatia pelo Socialismo. Pelo contrário, quanto mais se vê enredado nas falsas pistas que lhe são armadas, mas ele se “convence” da necessidade da religião como antídoto aos males gerados pelo FBI. E, principalmente, do temor constante de ser espionado ou flagrado em situações que o exponham e o denunciem como espião.
               


 


Se uma das razões de um espião, ao deixar de defender a política de seu país, é acreditar que a da nação por ele espionada serve melhor a seus propósitos, Hanssen oculta-a muito bem. Tem a ajuda da mulher Bonnie para isto. Outra razão seria dinheiro, uma oferta tentadora para garantir a futura aposentadoria, caso não seja desmascarado. Mas Hanssen, com sua carolice, não parece tentado a se vender por dólares, por mais que as receba. Assim, resta a imagem de um profissional extremamente competente envolvido numa trama montada pela direção do FBI, que dele desconfia, mas precisa de um plano bem engendrado para prendê-lo. Não lhe interessa checar as fraturas do sistema americano que geram um espião. Não há discussão sobre a natureza de suas convicções políticas ou uma discussão sobre sua tendência político-ideológica. O que se quer é fazê-lo cair em contradição, entregar seus contatos e ser a sua própria isca. 


               


Discussão sobre espionagem
na Guerra Fria fica de fora


              


 


Com esta fórmula, o diretor Billy Ray deixa de fora uma boa discussão sobre a espionagem no período da Guerra Fria, que até hoje gera controvérsia. O caso real de Roberto Hanssen começou em 1986, ainda no Governo Reagan, atravessou o período George Bush, pai, a gestão Clinton e chegou à Era Bush, filho. Portanto, iniciou-se durante a Perestroika e veio até a gestão Boris Ieltsin. Levantar, em profundidade, suas convicções permitiria ao público analisar com riqueza de detalhes o porquê de um agente do FBI se convencer de que o sistema soviético, mesmo na fase Gorbachov, era melhor do que o americano. Nada disso acontece. O espectador se vê diante de Eric O´Neill (Ryan Phillippe), jovem policial promovido a assistente de Hanssein para executar o plano que poderia desmascará-lo. Eles engalfinham-se, igual aos personagens de tantos filmes policiais e de espionagem, para, no final, serem atraídos um pelo outro.
              


 


E Billy Ray limpa, assim, qualquer referência política que por ventura pudesse existir em seu filme, como a comparação entre os dois sistemas. Uma limpeza corriqueira no cinema industrial americano: nada que faça pensar é introduzido. Com habilidade ele conduz a trama, cheia de suspense, truques e manipulação. Uma delas é a presença da esposa de O´Neill, a alemã-oriental Juliana (Caroline Dhavernas), luterana, que Hanssen tenta converter ao catolicismo. É daqueles personagens que levam o público a pensar que ali tem uma vertente da história, que termina por se revelar apenas uma pista falsa. Outra é a da briga de Hanssen com seus chefes a quem chama de burocratas. Então, seriam estas intrigas as razões de seu comportamento. Soa falso, superficial e ingênuo. Hanssen, feito com natural competência pelo ator Chris Cooper, gosta de pornografia e usa a mulher para seus jogos sexuais. Enfim, seria um “pervertido”.


             


 


Problema são as agências de
espionagem, não os espiões


             


 


Uma forma rasa de abordar uma questão séria. Martin Ritt, com base no romance de John LeCarré, “O Espião que saiu do frio”, dirigiu um filme que faz refletir sobre a espionagem. Os personagens discutem suas convicções e, no final, são obrigados a optar entre permanecer na Alemanha Oriental ou voltar para o Ocidente. Não é uma decisão qualquer, envolve inúmeros interesses. Hanssen, ao continuar a espionar para a Rússia de Ieltsin, deveria ter ligações muito fortes para manter suas ligações com os russos. Billy Ray não lhe dá voz, o transforma num ser dominado por uma série de cacoetes. A cena em que O´Neill o reencontra, após sua queda, o mostra tétrico, catatônico. É um ser em completa confusão mental e física. Serve aos propósitos políticos do Estado norte-americano, sob Bush: reforçar a pressão sobre os segmentos que poderiam analisar seus motivos e, enfim, condenar seu governo por sua política imperialista.
               


 


Mesmo com seus métodos poucos maleáveis, sua meticulosidade falseada, Hanssen atrai a simpatia de O´Neill, jovem de família liberal. Os choques entre ambos reforçam a atração que um exerce sobre o outro. O´Neill, agindo como policial, não o vê como ameaça. São complementares em sua visão de que há armadilha demais no FBI e nas agências de espionagem para Hanssen ser a verdadeira ameaça. São eles o centro de toda a estrutura de segurança americana; um estado dentro do estado, não uma estrutura para defender a nação. O´Neill, ao entender isto, valida a idéia de Hanssen, de que algo precisa mudar. Não vê, assim, razão para permanecer no sistema, preferindo encontrar saídas para seus dilemas pessoais fora deste esquema. No final, fica a idéia de que o elemento traição, no mundo da espionagem, é um termo cuja conotação e significado depende do contexto histórico e este não é dado em “Quebra de Confiança”. Acaba sendo apenas mais um filme de suspense.


 



“Quebra de Confiança” (Breach). Suspense. EUA. 2006. 1H50. Direção: Billy Ray. Elenco: Chris Cooper, Ryan Philippe, Laura Linney, Caroline Dhavernas.


 

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