Reflexões sobre o bicentenário da Independência do Brasil – 1ª parte

A Independência, como um momento político chave, está conectada a um conjunto muito mais amplo de fenômenos gerais da época

A Proclamação da Independência, de François-René Moreaux | Foto: Wikimedia Commons

Introdução

Chegamos ao bicentenário da nossa independência política em relação a Portugal neste 07 de Setembro, uma data que necessita sim ser comemorada, lembrada, reverenciada por cada patriota deste país. Contudo, como ser “patriota” não significa ser cego e acrítico ao processo histórico que forjou a construção do Brasil como uma das maiores nações do mundo em diversos aspectos e não apenas na nossa extensão territorial, a comemoração se reveste do necessário processo de reflexão sobre os caminhos da independência naqueles tempos e os rumos do Brasil de 1822 até o presente momento. É evidente que um processo histórico já longo, comporta uma multiplicidade de olhares, interpretações e intencionalidades, bem como sobre ele se debruçaram e debruçam estudiosos (as) analistas, pesquisadores (as) que utilizaram múltiplos métodos e formas de interpretação. Naquilo que me diz respeito para a análise dos fenômenos, busco sempre me alicerçar no método materialista histórico-dialético, observando cada processo à luz do movimento geral das contradições que regem as grandes transformações históricas, pois considero que a partir desse arcabouço fundamental, conseguimos desvendar melhor os fenômenos.

Dessa maneira, a Independência, como um momento político chave, está conectada a um conjunto muito mais amplo de fenômenos gerais da época. E para além da conjuntura, ela foi o resultado também do processo mais longo de colonização portuguesa que forjou nestas terras uma sociedade brutalmente desigual, erguida sobre o trabalho de milhões de escravizados índios e negros, em um dos maiores processos de deslocamento humano em massa com fins econômicos, no caso, a escravização dos povos africanos rumo às terras coloniais. E a trajetória do Brasil, de lá para cá, como país em permanente processo de construção não pode ser compreendida olhando apenas as contradições – profundas – do nosso país, mas como ele foi inserido no cenário mundial do capitalismo e os efeitos do desenvolvimento, fluxos e refluxos do capital. Antes mesmo da própria independência, durante aqueles anos fundamentais que nela resultaram e na nossa trajetória bicentenária. Esse é um esforço de mais largo prazo. Neste artigo, me concentro no cenário geral do processo da Independência.

O Brasil Colonial no contexto do desenvolvimento e expansão do Capitalismo e do Liberalismo

Muito se debate sobre a organização social e econômica do Brasil Colonial, sobre os modos de produção que predominaram por aqui durante a colonização portuguesa. Um debate que acende paixões, muitas vezes irreconciliáveis, inclusive nas fileiras comunistas. Afinal, o Brasil foi um país escravista pleno, integrado ao “capitalismo comercial” que se desenvolvia na Europa, mais conhecido como Mercantilismo”, sendo parte constituinte do processo geral da acumulação primitiva do Capital pelas burguesias de além mar, ou foi uma formação econômica e social eivada de feudalismo tardio a serviço da lógica expansionista lusitana e que aqui adotou um processo de ocupação territorial que correspondia, em parte aos resquícios da própria estrutura feudal ainda existentes no século XVI e adiante? No entanto, quero crer, seria estranho, muito estranho, se as colonizações portuguesa e espanhola no continente americano fugissem completamente às lógicas reinantes na Europa em um processo histórico de Transição profunda, complexa e prolongada, a partir da superação do Feudalismo cujo colapso – mas não morte total – se dá no século XIV, abrindo espaço histórico para o desenvolvimento embrionário do capitalismo futuro. No caso espanhol, além de importar para cá métodos de produção econômica, os invasores utilizaram amplamente em várias regiões os próprios métodos de trabalho empregados pelas civilizações originais, para além da escravidão pura e simples.

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Ora, como sabemos – ou deveríamos saber – etapas históricas de transição comportam a convivência conflituosa de formas de produção distintas, com o desenvolvimento de classes sociais antagônicas, por um lado, mas que convivem e estabelecem alianças entre si e contra si, conforme as necessidades políticas de cada momento. Na Europa em transição, enquanto as cidades cresciam e se desenvolviam a olhos vistos tendo o comércio nacional e internacional como motor fundamental superando os antigos domínios senhoriais feudais, sobreviviam em variados graus não apenas amplos resquícios do medievalismo no campo, na produção agrícola dominada por uma nobreza decadente, mas também todo um arcabouço comportamental, moral e ideológico vinculados aos valores e práticas da Era Feudal. Convivendo com a franca expansão de uma nova classe social, a burguesia mercantil, que além do comércio e do desenvolvimento de novos processos de financiamento da economia, que também penetrou no campo e trazia consigo um forte conteúdo ideológico, vinculados ao individualismo apontando para a possibilidade do enriquecimento pessoal através do trabalho nos novos espaços urbanos em crescimento. Aquela jovem burguesia foi promotora de um amplo processo de transformações históricas de grande monta, conduzindo inclusive ao processo de formação de novas nações europeias sob o comando das antigas famílias reais, anteriormente enfraquecidas pelo poder local dos senhores feudais. A burguesia em ascensão, mas ainda sem ter a força política para ela mesma assumir o controle dos Estados, aliou-se a facções da velha nobreza fortalecendo o poder dos reis para unificar territórios, espaços geográficos nos quais ela pudesse se movimentar livremente para comprar e vender seus produtos, unificando ainda moedas, pesos e medidas, na busca pela racionalização e facilitação das atividades mercantis.

A colonização do Brasil feita pelos portugueses, portanto, está neste contexto geral europeu de intensas contradições em uma fase de transição profunda. A tudo aquilo outro fator fundamental foi agregado: desde meados do século XV os portugueses incorporaram às suas atividades comerciais o tráfico negreiro, ainda durante o período conhecido como “Navegações Lusitanas” pelo litoral africano no âmbito da grande corrida rumo à Ásia e suas reais e fantasiosas riquezas. A partir dali, a escravização e comércio dos povos da chamada África subsaariana passou a ser uma das mais lucrativas atividades comerciais de Portugal e outras nações europeias. Senão a mais lucrativa, até o advento da Revolução Industrial na Inglaterra, na segunda metade do século XVIII. A escravização gerava imensos capitais à burguesia mercantil que vendia os escravos, aos colonos que contavam com fluxos geralmente constantes de mão-de-obra cativa para a produção agrícola – e mais à frente para a extração do ouro, no caso brasileiro – que era voltada principalmente para atender as necessidades do comércio das metrópoles (Portugal, Espanha, França e Holanda), gerava impostos aos respectivos Estados daquelas nações e dízimos e demais benesses dos fieis católicos à igreja.

Foi exatamente nesse caldeirão da transição europeia que se deu a invasão, ocupação e desenvolvimento do Brasil Colonial. O território sob domínio português era um retrato dessas contradições, com a implantação por aqui do escravismo, de aspectos do feudalismo tardio e do comércio internacional de mercadorias, tudo muito amarrado sob o peso da institucionalidade política monárquica e clerical católica, adaptada à realidade aqui construída. O Brasil tornou-se uma nova síntese dialética de todas as variáveis produtivas da época, com graus variáveis de peso econômico, em um território que tinha como função essencial produzir alguns produtos chaves negociados pelos portugueses com outras nações, especialmente o açúcar, primeiro, e o ouro no século XVIII. Nosso país, na época da independência, era um caldeirão de múltiplos interesses, internos e externos, que convergiam em determinados momentos e divergiam em outros. Multidões de escravizados, rurais e urbanos, trabalhadores assalariados livres vinculados aos grandes proprietários rurais, pequenos produtores agrícolas de bens de consumo voltados para o abastecimento das próprias fazendas e das cidades, comerciantes internos e aqueles vinculados ao comércio internacional, profissionais “liberais” nos centros urbanos do período, um grande volume de clérigos e burocratas do Estado, conformaram com o tempo, e sob a força do predomínio econômico da economia exportadora, o que chamamos de povo. Um processo de independência refletiria, mais tarde, a força econômica e política que esses setores/classes tinham na hora das definições sobre os rumos do novo país. E, claro, a tudo isso se somam os interesses dos embates internacionais que estavam em curso naquela época.

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É necessário lembrar com muita ênfase que a independência brasileira está diretamente vinculada aos profundos desdobramentos da expansão da burguesia francesa na Europa a partir dos ventos radicais e revolucionários de 1789 e que promoveram, dez anos depois, a chegada ao poder do jovem general Napoleão Bonaparte que conduziu a França à constituição de um império, ostentando os principais valores Liberais da Revolução Francesa e do Iluminismo, em oposição o Absolutismo Monárquico reinante e aos valores carcomidos do catolicismo reacionário a ele vinculado. Com o império napoleônico, a burguesia francesa buscou unificar a Europa sob seu comando, tentando fazer frente em especial à burguesia inglesa, em plena explosão da chamada Primeira Revolução Industrial. Franceses e ingleses disputavam o comando dos mercados europeus e internacionais e as “Guerras Napoleônicas” causaram uma intensa mudança na geopolítica mundial tendo a Europa como palco fundamental daquelas mudanças.

Em um resumo simplista: as invasões de Napoleão a Espanha e Portugal desestruturam irremediavelmente o sistema colonial montado no século XVI. No caso do Brasil isso é ainda mais visível e compreensível com a fuga da Família Real para cá em 1808. Por doze anos (1808 – 1821) a fixação do Estado lusitano no Brasil, à época chefiado por Dom João VI, pai de Pedro I, promoveu a aceleração profunda das contradições que conduziram à independência em setembro de 1822. Para além das guerras napoleônicas, o processo de industrialização acelerada da Inglaterra, cuja capacidade de produção multiplicou-se intensamente, demandava o estabelecimento de novas relações internacionais de comércio e trabalho. Aos ingleses (e franceses, por suposto) não fazia mais sentido o fato de termos à época quase todo um continente – o Americano – sob domínio de duas nações decadentes como Espanha e Portugal, que não haviam desenvolvido a industrialização e estavam vinculadas profundamente à logica comercial inglesa, mas que eram na prática intermediários incômodos ao processo de exportação e importação de mercadorias. Portugal e Espanha atrapalhavam a nova lógica espalhada pelo liberalismo inglês, o “Livre Comércio”, que precisava ser “livre” para que a burguesia inglesa que comandava a produção industrial global pudesse exportar tranquilamente seus produtos, sem atravessadores. Liberalismo, Livre Comércio, Liberdades Individuais e Coletivas, Soberania Popular em oposição aos Absolutismos Monárquicos, foram componentes econômicos e ideológicos que promoveram e possibilitaram a consolidação do capitalismo e da burguesia como classe dominante entre os séculos XVIII e XIX. E sua extrapolação para os demais países para além de Inglaterra e França. É nesse contexto profundamente complexo, repleto de contradições internas e externas, que se inserem as independências das colônias espanholas, francesas e a do nosso Brasil.

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