Retablo: Luzes nas trevas

As ocultas tendências do universo adulto e suas influências nas relações entre pai e filho numa vila peruana habitada por camponeses são tratadas com sensibilidade pelo cineasta peruano Álvaro Delgado-Aparício

Nas histórias contadas em imagens para milhões de espectadores, que as assistirão em variadas mídias, cada um deles terá sua reação ditada pelas escolhas narrativas do cineasta. Muito mais se ele optar por não expor as tendências submersas dos personagens. Neste seu filme de estreia, o anglo-peruano Álvaro Delgado-Aparício (1974) surpreende pela concisão ao não deixar transparecer as motivações do escultor de imagens sacras com batata e gesso. Ainda mais numa vila peruana entranhada na montanha habitada por famílias conservadoras e afastadas da civilização.

Com diálogos no idioma quéchua, Delgado-Aparício e seu co-roteirista Heitor Gálvez situam a história na Região de Ayacucho. Sua câmera, muitas vezes em planos inclinados dada à topografia da região, se concentra desde o início no escultor Noé (Amiel Cayo) e seu filho Segundo (Julio Bejar Roca), de catorze anos. É através deles que o espectador irá adentrar ao universo católico, cujas imagens sacras configuram a fé em seus santos e santas. Mas principalmente na cultura peruana, a partir das festas organizadas pela companheira do artesão, Anatólia (Magaly Solier).

Nada mais comum do que apresentar os personagens e desenvolver a narrativa com tal rapidez. Trata-se apenas de não se perder em meio a tantos personagens. Alguns, embora importantes como o padre, só fazem a ligação entre os personagens principais para o espectador se localizar. Há, no entanto, uma construção dramática a tipificar os personagens e seu meio. É como se a dupla Delgado-Aparício/Gálvez o fizesse atentar para a importância deles no desenrolar da história. Noé, Segundo e Anatólia representam o microcosmo da pequena e pobre comunidade da Vila.

Delgado-Aparício pegou a religião de outro modo

Nada a destoar da vivência deste segmento de trabalhadores cujas vidas giram em torno da Igreja, de seus preceitos e dogmas e suas relações sociais transcorrem nas festas religiosas e no folclore da região. É por meio destas configurações, aparentemente destoantes, que o diretor-estreante, não de tudo um noviço, constrói o que virá ao longo de sua narrativa. São as imagens a dizer ao espectador: estas relações sócio-religiosas terminam por engendrar a cultura e a forma de os fiéis entenderem o mundo através da religião. Não só isto: é o meio de controle de toda sociedade carente de convívio social e esperança de vida melhor.

De qualquer forma, Delgado-Aparício pegou a religião sob outro ângulo. Não o da simples e repetitiva classificação de fundamentalismo ou conservadorismo. Avança, deste modo, para a questão do poder, sem tocar na experiência milenar em todas os sistemas político-econômicos. Os diálogos entre Noé e o Padre são de fornecedor de imagens e comprador. Uma ação alicerçada pelas relações de trocas a levar as divindades às paredes da igreja. Mas para ele representa sua fé na Santa ou no Santo e, mais do que isto, nos ensinamentos da própria Igreja. Não é tão simples! Há de se fazer a diferenciação entre o Vaticano e os Templos Evangélicos.

É criativa e inteligente a forma usada pela dupla Delgado-Aparício /Gálvez para, sem discurso ou tese, ir tecendo ao mesmo tempo a relação de Noé com Segundo, seu único filho. O garoto o vê mais como um amigo e, sobretudo, o mestre a lhe ensinar o seu ofício de artesão. Há entre eles amizade e companheirismo. O pai não o explora ensina e lhe paga pelo trabalho de artesão-auxiliar. O que sedimenta o relacionamento deles, a mútua confiança é mais importante do que o patriarcalismo a se impor de forma a tolher a criatividade do já escultor aos catorze anos.

Jovens se divertem ao trocar socos no campo

Nesta primeira parte há uma elaboração de imagens e conteúdo a refletir as ideias do psicólogo, formado em Londres, agora cineasta estreante em longa-metragem. Paralelo à relação pai-filho, ele alterna a produção de bonecos de batata e gesso com o rito de passagem de Segundo em suas relações com os seus companheiros. É outra forma de configurar o amadurecimento dos jovens da Vila. Para se mostrarem já homens e fortes e machos, eles se divertem trocando socos no terreno baldio. Tipo de rito de passagem ao qual Segundo não se submete.

Desta forma, o machismo vai construindo a truculência desde a juventude. A sequência dos jovens trocando socos e derrubando o outro é chocante. Seus companheiros só os observam, pois àquele é o rito com regras por eles mesmo criadas. E a arena onde se exercitam é cada vez mais palco da violência, aceita por todos eles. Nestes momentos liderança alguma da Vila surge das escarpas da montanha para lhes ensinar outra forma de transição para a vida adulta. Falta-lhes escola e área de lazer com orientação digna torná-los cidadãos ao invés de homens truculentos.

Este “Retablo” não é um filme qualquer, a dupla Delgado- Aparício/Gálvez passa do particular para o geral. A pobreza encurta o caminho entre a carência e a violência. A diferença entre os jovens contendores e Segundo é Noé e a mãe Anatólia não o deixar entregue a si mesmo. Nas horas vagas ele pode ser encontrado em casa, inexiste outra opção na Vila. O que paira sobre eles é o moralismo e o cada um por si, tão comum em qualquer país sob o domínio político da estrema direita. O bullying a grassar é o de ver o outro como destituído de testosterona.

Filme mescla machismo e homofobia em vila cristã

Na terceira do filme a narrativa de Aparício-Delgado é construída sob oposições. Há o universo de Noé e o do filho Segundo. O que era para ser tranquilo se torna um pesadelo a desmontar toda a confiança existente entre pai e filho. Delgado-Aparício muda toda a construção linear, direta, com os personagens se relacionando em seu meio. E o conflito interior dita o comportamento de Segundo. De forma doentia, silenciosa, a dar a ideia de estar sob profundo choque psicológico. Ele agora tem outra visão do pai. Noé perdeu a imagem de homem sério, entregue às suas esculturas, os retablos. Nem o filho crê no que ouviu pela metade mesmo à distância.

A questão agora é radicalmente moral, porém ele sustenta com o silêncio o que o levou ao choque. A mescla de machismo e homofobia numa comunidade cristã é demais para ele que ainda nem percebe quanto eles se completam. Tudo que era submerso até ali vira pelo avesso. Notadamente quando em meio ao mutismo, houve com atenção o que se passa no quarto dos pais, quando isto jamais aconteceu. Não é Noé a conduzir o que lhe era oculto e quase inexistente, Anatólia, ela, sim, impõe o modo de se fazer mulher. E a voz do pai nem é ouvida . A visão da mãe se torna outra, ela não é mais a agente passiva, mas, sim, ativa e livre.

É a imagem da mulher a emergir com força nesta emblemática sequência. Anatólia deixa de ser apenas mulher para tornar-se algo inimaginável para o jovem de catorze anos. Naquele instante, ele a vê como outra qualquer à disposição do homem que achava ser outro. É a extrema inverdade sendo posta abaixo pela realidade. E o novo choque leva-o a trata-la como outra qualquer, sem poder lançar sobre a mãe seu desprezo. E a moral desmistifica o que era imaculado e sagrado, nem Anatólia era naquele instante uma mulher diferente das demais, mesmo sendo sua mãe.

Segundo é o melhor personagem do filme

O tema central, a imposição da moral por meio dos dogmas e preceitos se torna visível. É a consciência a desabrochar das contradições da sociedade burguesa-capitalista de forma radical. Vem das superestruturas que controlam as relações religiosas, políticas, sociais e econômicas que excluem as camadas proletárias. É o materialismo, não a metafísica, a desconstruir toda a imagem edificada sob ações irreais e mistificadoras. É outro patamar de consciência adquirido por Segundo. É o personagem melhor construído pela dupla –Delgado-Aparício/Gálvez.

Aos poucos a realidade leva-o ao amadurecimento. Descobre coisas jamais imaginadas, ainda mais com seus próprios pais. Mesmo se envolvendo em seguidos choques com Anatólia, entende a posição dela ao refutar a opção do pai e se dizer traída. O mais importante para ele não é se submeter às fantasias e mistificações morais. A realidade ao torná-lo consciente o ajuda a absorver o que antes lhe escapava. Não é o que lhe dizem ocorrer por preconceito ou moralismo, mas sim o que lhe permite entender as motivações de quem fala e as consequências para sua família.

Assim, a dupla Delgado-Aparício/Gálvez expõe a mutação sofrida pelo jovem de catorze anos em meio às pressões para se ater às aparências. O que esperam dele em sua idade é o silêncio e a ingenuidade, coisa impossível numa sociedade eivada de duplos interesses, na qual até a verdade é construída para enriquecer seus defensores. Segundo começa como o jovem inocente, dado ao silêncio e ao aprendizado na oficina do pai e passa por rápida metamorfose até chegar à sua própria visão do que lhe é apropriado. Não é uma ação qualquer, tão só dramaturgia imagética.

Há preconceito contra o sexualmente diferente

Numa rápida sucessão de cortes e sequências com a câmara a focar os personagens em estreitos espaços, Delgado-Aparício introduz o oculto personagem a ditar a moral e impor sua visão de sociedade. É o líder da Vila a ver em Noé uma ameaça à comunidade, mergulhada na pobreza. “Não vou apoiar quem faz uma coisa suja dessa!” É a visão de quem pensa em termos morais, não no direito de o escultor ou de qualquer outra pessoa de que sexo for optar pela tendência a lhe satisfazer enquanto ser humano. A convivência, por certo, não será de harmonia, pois haverão aqueles que os forçarão a optar por rumos longe dos que ditam as relações humanas.

O bicho-fera, porém, se faz presente neste bem estruturado “Retablo”. Não lhe basta o ódio e o preconceito contra o sexual e racialmente diferente, tem de eliminá-los para lembrar aos iguais a eles que terão o mesmo fim. É o caso daqueles que defendem preceitos e crenças e apoiam o extremado moralismo, tomando a si os poderes dos deuses nos quais “concentram” sua fé. E se mostram seguidores e executores de seus dogmas, interpretados de forma a adaptar-se mais aos interesses terrenos aos quais estão ligados e menos em sua crença.

No impactante desfecho construído pela dupla Delgado-Aparício/Gálvez, o líder da Vila se mostra integrante deste grupo. Age de forma silenciosa em meio às trevas contra aquele que para ele representa o mal absoluto. Chegara, portanto, a estar fora de seu controle, mas não só o enquadrou como o devolveu à família. Agora se mostra possuidor do direito de ditar quem sobreviverá ou não. Desta forma põe Segundo em aflitiva situação, pois lhe cabe tentar salvar o pai em situação crítica. Vê-se a partir daí atarantado, é difícil em sua idade enfrentar tal situação.

Delgado-Aparício mantém conflitos longe da câmera

O que se destaca em “Retablo” é Delgado-Aparício preferir manter os conflitos-humanos longe de sua câmera. A ação transcorre fora da tela e da vista do espectador. Quando o personagem surge ele já sofreu as consequências de sua decisão. É o caso de Noé, não se vê o tipo de ataque sofrido por ele. Só se percebe sua gravidade pelo aflitivo estado em que se encontra. O mesmo ocorre na longa sequência em que Anatólia e Noé estão num quarto e Segundo no outro. E ainda se dá no desfecho quando nada se sabe sobre o que ocorreu de fato com Noé. O espectador tem de preencher os espaços na mente para dar conta da gravidade do ataque.

São sequências que poderiam atenuar o choque se a ação fosse explícita. Como estão montadas geram curiosidade e horror, pois nem Segundo chega a presenciar o que lhe causa tanto espanto. Mais ainda nas últimas cenas quando anseia para alguém ajudá-lo a socorrer o pai. O espectador termina por preencher os espaços em sua mente com aflitivas imagens do subconsciente.

Delgado-Aparício trata de tema ainda tabu de maneira direta. Tudo é nuançado, antevisto, tornando a narrativa forte e misteriosa. É daqueles filmes do qual jamais se esquece. O tema é atual.

Menos falsos progoeiros, mais fiéis à democracia

Com este “Retablo”, Delgado-Aparício funde cinema, política e religião numa época em que o moralismo não se restringe apenas à fé. Busca levar sua influência aos segmentos carentes, moradores da periferia, dos morros e mangues, destituídos de infraestrutura urbana. São dogmas e preceitos substituindo os espaços vazios nas camadas proletárias e de trabalhadores de classe-média. Desempregados, direitos trabalhistas confiscados, sindicatos esvaziados e lideranças perseguidas, eles são o alvo preferido daqueles que lhes garantem a eternidade.

É onde o fundamentalismo se apropria da crise do neoliberalismo para torná-los presas fáceis dos pregoeiros morais e defensores da fragilização do Estado Democrático. E lança sobre a esquerda e as camadas populares e democráticas a culpa engendrada pelas falácias do sistema capitalista. É de onde surgem os pregoeiros e salvacionistas que ao centrar seu fogo nos citados segmentos se tornam ilusionistas por dizer uma coisa e fazer outra. Dentre elas tirar os direitos duramente conquistados pelos explorados trabalhadores manuais e intelectuais hoje desempregados.

Assim, o espaço preenchido por filmes iguais a “Retablo” contribuem para exibições e debates para, enfim, haver separação entre a questão moral e a sustentação política. A Igreja não é um partido num Estado Democrático, aberto a todas as crenças e tendências político-partidárias.

Pertencer a uma tendência religiosa é tanto um direito quanto uma opção não teocrática. Caso contrário sustentarão organizações político-religiosas que pregam um ideal democrático, mas boicotam as manifestações dos trabalhadores e demais camadas carentes excluídas da estrutura sócio-política, pois são partidos e não igrejas a cuidar da fé.

Retablo. (Retablo). Drama. 101 minutos. 2019. Peru/ Alemanha/Noruega. Música: Harry EScott. Fotografia: Mario Bassino. Roteiro: Álvaro Delgado-Aparício/Heitor Gálvez. Diretor: Álvaro Delgado-Aparício. Elenco: Junior Béjar Rosa, Amiel Cayo, Magaly Solier, Juan Ubaldo Huamán. Observação: representante do Peru à seleção dos filmes internacionais a serem indicados a concorrer ao Oscar 2020.

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