São Bernardo*

Cada um dos personagens está com a roupa certa, de tal maneira que todos se sentem muito à vontade; e além do mais para nós, nordestinos que conhecemos a nossa região, tudo funciona como era de se esperar

É realmente extraordinária a reconstituição do ambiente, da paisagem, da vida dos anos 30 no interior nordestino, conseguida por “São Bernardo”, filme de Leon Hirszman em exibição até hoje no Astor. E isso se deve em grande parte ao trabalho do cenógrafo Luiz Carlos Ripper. No cinema brasileiro, Ripper é o único cenógrafo que tem conseguido marcar sua presença com um trabalho de caráter pessoal. E tem estado em alguns dos melhores filmes do nosso cinema.

Em “São Bernardo”, a autenticidade veio, sem dúvida, a partir da decisão da produção (e do próprio diretor Hirszman) de filmar na própria cidade onde se passa a história contada por Graciliano Ramos, Viçosa, Alagoas. Isso foi fundamental, sabemos. Mas certamente que se não tivessem contado com o trabalho de um cenografista de tanta sensibilidade, capaz de saber deixar a realidade tal como está quando é necessário e somente retocá-la, mexer nela, nas oportunidades adequadas, como é o Luiz Carlos Ripper, não teríamos um resultado tão perfeito.   

Ripper foi o responsável pelo que diz a ficha técnica, tanto pela escolha dos objetos de cena quanto pelo guarda-roupa, que é outro ponto também marcante para a qualidade desse trabalho. Cada um dos personagens está com a roupa certa, de tal maneira que todos se sentem muito à vontade; e além do mais para nós, nordestinos que conhecemos a nossa região, tudo funciona como era de se esperar.

Nada adiantaria, porém, todo esse trabalho da produção e de Ripper para criar um ambiente, se não houvesse o fotógrafo Eduardo Escorel. Um jovem, sem outros trabalhos a apresentar, segundo me parece, mas com um domínio do seu instrumental técnico realmente admirável. O tom da fotografia tem todas aquelas nuances necessárias (e que faltaram ao som). As cores nem são vivas demais nem tampouco mortiças; transmitem um clima que não fica no puro realismo, mas que tem o toque necessário da realidade. Os tons de verde, por exemplo, são de uma beleza que somente a própria realidade do canavial nos dá, como regra geral. Uma sequência que demonstra quanto Escorel soube medir, com precisão a luz, é a da conversa de Paulo Honório com Dona Glória no trem; embora haja uma grande diferença de luz do interior do trem para o exterior, a captação foi precisa, de modo que as duas realidades se apresentam com a necessária força ao espectador.  

Não se pode negar que tanto para a cenografia quanto para a fotografia os resultados excelentes se devem, também, ao diretor Leon Hirszman, e isso porque foi ele que pediu tal resultado aos técnicos (mas ele também deverá ter pedido aos técnicos de som, e não obteve boa resposta).

Na parte da interpretação temos alguns momentos excepcionais. Um deles me parece ser a sequência em que Paulo Honório (Othon Bastos) se encontra na sala da casa de Madalena (Isabel Ribeiro) e lhe diz que o seu interesse não era por uma professora, mas por uma companheira. A maneira de sentar, a timidez misturada com a falta de trato social, certos detalhes das mãos, demonstram o quanto Othon Bastos trabalhou o personagem de Paulo Honório; na realidade este ficará como um dos seus grandes trabalhos no cinema, pois em todos os momentos sua interpretação é magnífica. Certas nuances, certo humor que falta ao personagem, é culpa, me parece, não dele, mas principalmente da técnica de som, visualmente seu trabalho tem um clima de autenticidade, de criatividade. Mas a falta de mutações na voz estraga-lhe a feição. Há uma certa culpa também do diretor, pois certos efeitos, na narrativa em “off”, e nas conversas, deveriam ter sido conseguidos de qualquer forma.

“São Bernardo” é um filme muito bom, me parece, embora não tenha atingido o mesmo nível narrativo do romance de Graciliano. Nesse ponto ele se frustrou. Mas é uma obra que desperta o maior entusiasmo enquanto, propriamente, forma cinematográfica, com algumas sequências que me parecem ser tão criativas quanto algumas de Jean-Luc Godard. E não há dúvida que Leon Hirszman, um conhecido eisensteiniano, se deixou influenciar pelo cinema renovador do cineasta francês.

*Jornal do Commercio, Recife, 02.10.1974

Do livro “Cinema Brasileiro (Volume I)” de Celso Marconi

UM GRANDE JORNALISTA QUE FEZ PARTE DE UM CLÃ

Com esse título estou me referindo ao jornalista, escritor e sociólogo Abdias Cabral de Moura Filho, que usava o nome Abdias Moura para sua vida profissional, e que se foi talvez para outras conjunções, se é que a nossa mente tem continuidade após a morte do corpo. Afinal, morte é algo que se vive e isso acontece com simplicidade, assim embutindo uma tremenda complexidade,

Eu nunca trabalhei com Abdias, pois quando entrei no Jornal do Commercio, ele já havia saído e o editor geral era Vladimir Calheiros. Mas era muito amigo de Abdias desde os anos 60, e um episódio importante da minha vida teve ligação com ele. No começo dos anos 60, éramos jornalistas participantes do movimento sindical e estávamos numa reunião para eleição de nova diretoria no Sindicato. E desde essa época já havia o dilema de a direita e a esquerda acochambrar uma unidade, pois nenhum dos dois lados tinha força suficiente para fazer uma diretoria. Lembro-me bem da reunião. E então se partiu para um acordo. E a solução foi encontrada através da pessoa de Abdias Moura como Presidente. E como representante da direita foi escolhido Romildo (não lembro o sobrenome) para Secretário. E Celso Marconi para Tesoureiro como representante da esquerda.

Mas o fato maior não foi a nossa eleição. O fato principal, pelo menos para mim, foi que durante nossa administração, lá nos anos 60, houve na Áustria o 2° Congresso Internacional de Jornalistas, e eu fui como nosso representante. E inclusive passei três meses viajando e indo até a China. Se Abdias fosse um egoísta, ele é que teria ido como nosso Presidente.

Abdias Moura era um jornalista dentro de um clã, porque ele tinha vários parentes nessa profissão, ou também artistas. A primeira mulher jornalista profissional do Recife foi Isnar de Moura, sua irmã. Também seu irmão Adonias Moura era comentarista esportivo do Diário de Pernambuco. Outra irmã, Piedade Moura era pintora. Outro irmão, Nilson Moura era ator e excelente mamulengueiro. Também Gilson Moura, que mora no Rio de Janeiro, é ator. Enfim, são os que eu conheço. E sempre fomos todos amigos, como se na realidade fôssemos uma só família. Entretanto, além disso, para completar a nossa amizade, Abdias esteve casado até a morte com a minha ex-esposa Teresa Lins.

Abdias era só alguns meses mais velho do que eu, mas ele começou no jornalismo nos anos 50, ou na realidade no final dos anos 50, e depois ainda foi funcionário da Sudene e também professor da UFPE. Realmente. uma grande figura e um grande amigo que se foi.

Olinda 06.06. 23

Da página do Face de Celso Marconi

**Aos 92 anos, é o crítico de cinema mais longevo em atividade no mundo. Referência para os estudantes do Recife na ditadura e para o cinema Super-8

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