Saudades da Terra: conflito, colonialismo, devastação Amazônica-3

As ilhas atlânticas na base de construção do Brasil

A fim de ilustrar a presente série de artigos tomamos título emprestado da obra seiscentista “As Saudades da Terra” de autoria de Gaspar Frutuoso sobre o arquipélago dos Açores, ilha da Madeira e Canárias, acrescida de notas sobre Cabo Verde e outras regiões do Atlântico Sul. O significado das ilhas atlânticas na formação cultural e política do Brasil, incluindo a invenção da Amazônia; é sumamente importante. Entretanto, o Brasil moderno esquece a contribuição dos ilhéus na colonização portuguesa. Dependemos muitíssimo do Mar Territorial brasileiro e muitas vezes olvidamos o Mar-Oceano dos começos de nossa história.

Daí que para vir aos dias da devastação do meio ambiente nas regiões, inventar o país do futuro que desejamos deixar às futuras gerações e que não fique só na saudade do “paraíso perdido”; nós vamos à pinceladas recordando o passado aqui e acolá para explicar alguma coisa de nossos bons e maus usos e costumes herdados de além mar. A obra saudosista de Gaspar Frutuoso versa sobre história, geografia, usos e costumes das ilhas atlânticas nos inícios do século XVII. Mesmo tempo dos começos da colonização do Maranhão e Grão Pará (Amazônia lusitana), como se sabe, separada do estado-colônia do Brasil. O público brasileiro em geral não lembra, ou simplesmente não sabe, que a Amazônia foi colônia de Portugal separada do Brasil, desde a tomada do Maranhão (1615) até a Adesão à Independência (1823). Mesmo durante o tempo em que a corte real portuguesa esteve no Rio de Janeiro (1808-1821) a subordinação econômica da segunda colônia portuguesa na América do Sul ao continente europeu permaneceu inalterada, embora formal e administrativamente dependente da sede do reino no Brasil.

Em breve vamos completar, entre 2015 e 2016, 400 anos da tomada do Maranhão e fundação de Belém do Grão Pará. Por coincidência em 2015 termina o prazo estabelecido pela ONU das chamadas metas do Milênio. Ótima oportunidade para rever o passado e cogitar acerca do avenir. Falamos das saudades de Portugal continental e nos esquecemos, muitas vezes, das especifidades da Madeira, dos Açores e Cabo Verde. As ilhas que foram escalas dos caminhos marítimos e abriram as portas de África e esconderam a lendária “ilha” do “Brazyl”  – chave das navegações para as Índias orientais – ,  até as naus de Sagres fundearem no distante país das especiarias e dos marajás.

Gaspar Frutuoso fez manuscrito da referida, com diversas emendas de próprio punho, mas não publicou a obra talvez devido à ocupação espanhola. O manuscrito fazendo parte da biblioteca do escritor foi doada ao Colégio dos Jesuítas de Ponta Delegada, onde ficou até 1760. Ano da expulsão dos Jesuítas de Portugal. O manuscrito foi levado por particulares que o doaram à Junta Geral de Ponta Delgada e incorporado à Biblioteca e Arquivo Público de Ponta Delgada. A obra foi  publicada em 1873. Existem várias edições parciais e integrais das Saudades da Terra. Como outras literaturas das ilhas do Atlântico obras como esta possibilitam ao leitor brasileiro compreender retrospectivamente a invenção do Brasil de fora para dentro e, por outra parte, confrontar a pré-história oceânica com os primórdios das regiões do gigante Brasil.

Pré-história dos descobrimentos marítimos

A idade média foi mais do que a simples queda do império de Roma e fim da antiguidade. Ela foi também a perda do comércio das antigas rotas entre o Oriente e Ocidente, deste modo o conhecimento de terras a oeste da Europa foi, pouco a pouco, constituindo o reino do mito. As lendas medievais da Atlântida, das sete cidades, das terras de São Brandão, as ilhas Afortunadas, a ilha do Brazyl, a Antília, as Ilhas Azuis, Terra dos Bacalhaus, e muitas outras terras imaginárias ou reais perdidas no Mar Oceano são reminiscências daquele conhecimento difuso, cheio de incerteza, mas contante dos contos e das aventuras das sociedades medievais atraídas para além do horizonte e das praias do Atlântico encantador e aterrorizante a um só tempo.

É esta saudade congênita de povos ribeirinhos e insulares que acalentou os primórdios do Brasil. Na Europa, na última metade do século XIV, a especulação intelectual e novidades e tecnológicas que anteciparam a Renascença, fomentam roteiros e cartas de marear onde aparecem dentre a pletora de fantasias muitas dessas ilhas e terras. A febre de conhecimento geográfico retoma contatos comerciais e renova as navegações entre o mar Mediterrâneo e o oceano Atlântico com mercadores genoveses, florentinos e venezianos.  Surgem melhores navios e o fervor da expansão do cristianismo para além da Europa, movimento de expansão dos horizontes europeus  recriando antigas ligações. Ou seja, a velha pulsão imperial no quadro de um outro tempo gerando o espaço geopolítico.

Não precisa dizer que é preciso perder algo muito valioso para desejar refazê-lo ou o reencontrar. Portugal participa desse movimento expansivista, graças à sua geografia. Com que atraiu capitais e novidades técnicas levando a crescente mestria nas artes da construção naval e da navegação oceânica. Evidentemente, o capital da imaginação gerou o fundo mitológico que não deve ser desprezado na procura das ilhas do mar ocidental, tornando-se rapidamente em decisão prioritária de um poderosa vontade coletiva. Surge assim a legenda do Infante dom Henrique assumindo papel de grande mecenas e autarca da empresa de descobrimento do caminho das Índias,  de modo decisivo para tirar Portugal de seu confinamento na esquina do Mediterrâneo com o Atlântico e passar à vanguarda da ocupação e povoamento das ilhas e terras atlânticas.

A Macaronésia, conjunto de ilhas atlânticas próximas à Península Ibérica formada pelo arquipélago dos Açores, Canárias e Madeira, tem raízes nas míticas ilhas Afortunadas imaginadas como unidade geográfica numa historiografia de povoamento comum onde as mesmas famílias aparecem por todas as ilhas: são originalmente os Bettencourt, os Câmara, os Álamo, os Baldaia e muitos outros que povoaram o Brasil, a partir do Maranhão, Pará, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. É disto que trata a obra seminal do historiador açoriano Gaspar Frutuoso, as Saudades da Terra, e serve de exemplo para procurar saber mais das ilhas do Atlântico na formação do Brasil.

Dizem comentaristas da obra, que as primeiras ilhas aparecem na literatura oficial por voltas de 1291: convém lembrar que por esta data o Brasil estava bastante povoado de diversos povos falando milhares de línguas diferentes, tais como as antigas ilhas Molucas (no atual arquipélago da Indonésia), que foram modernizadas sob a civilização islâmica, mas continuam falando lá a sua babel entendendo-se geralmente em inglês, como os brasileiros monoglotas em português do Oiapoque ao Chuí. Na Amazônia, a emblemática Cultura Marajoara havia atingido seu apogeu e os invasores Aruãs vindos das Guianas começavam a dominar as ilhas do Marajó, para estabelecer uma certa cronologia entre as diversas ilhas atlânticas das respectivas margens e do meio do Oceano.

O nome Brasil passou pelos Açores antes de desembarcar em Porto Seguro

As ilhas Afortunadas cederam espaço na imaginação dos nautas para dar lugar as Canárias (“terra dos cães), dizem que por ser as únicas habitadas na periferia europeia e dado grande número de cães que teriam se reproduzidos a partir de expedição enviada pelo rei Juba II da Mauritânia, no século I. Em 1402, os normandos Jean de Bettencourt e Gadifer de la Salle, a serviço do reino de Castela subjugam as populações nativas e iniciaram a dominação dos guanches (paleo bérberes), num genocídio que se completou em quase um século. Vestibular da conquista e destruição das Índias Ocidentais, com a conquista das últimas populações de Tenerife em 1496. Com o descobrimento da América (1492), a soberania das ilhas Canárias passou a ser disputada por Castela e Portugal, e acaba a contenda sendo objeto de arbitragem do estado do Vaticano a favor de Castela, posse reconhecida pelo rei dom Afonso V de Portugal no tratado de Alcáçovas, colocando fim à guerra da sucessão do reino de Castela.

Surgem, então, as primeira referências às ilhas da Madeira e Porto Santo, em 1418, ocupadas pelos portugueses e, finalmente, os primeiros contatos com os Açores, em 1427. O nacionalismo luso reclama a primazia do descobrimento dos Açores. Sabe-se que as ilhas dos Açores eram desabitadas, há indícios de que as ilhas já eram conhecidas ou pelo menos suspeitavam-se da existência delas, pois o Infante dom Henrique mandou achar as ilhas. A linguagem é própria da historiografia portuguesa, que diferencia “descobrimento” como revelação de terras achadas todavia de direito incerto e “achamento”; encontro do que se procura ou topa por acaso. Para mandar achar parece que existe probabilidade de encontrar. Os pesquisadores dos Açores referem-se a diversos vestígios que apontam a passagens de navegadores antes do povoamento. Outro problema é o nome Açores. Na antiga cartografia as ilhas eram identificadas como as "Ilhas Afortunadas" ou como "Ilhas de São Brandão". Atualmente, admitem-se que a toponímia vem da presença de aves identificadas pelos marinheiros portugueses como pertencentes à espécie de falconídeos do continente. Esta informação é criticada com base em que a única ave de rapina até hoje no arquipélago é o milhafre ("Buteo buteo rotschildi"), aparentemente, de recente introdução já que a ecologia das ilhas lhes era claramente desfavorável: o milhafre prefere como alimento pequenos mamíferos, os quais não existiam ao tempo do povoamento (os únicos mamíferos nativos são minúsculos morcegos).

A hipótese de que a toponímia das ilhas se deve à devoção religiosa do colono Gonçalo Velho a Santa Maria dos Açores, padroeira da freguesia de Açores, em Celorico da Beira (Portugal continental); está ganhando adeptos. Por último, poderia ser aportuguesamento do dialeto genovês ou florentino de “azzurre” ou “azzorre” correspondente às lendárias Ilhas Azuis; sugestão, dizem autores portugueses, da tonalidade verde azulada da vegetação nativa dos Açores. A paisagem mítica não se sobrepôs apenas ao nome do arquipélago. Em São Miguel e no Pico há povoados ditos as Sete Cidades, nome mítico que passou também ao Piauí (parque nacional das Sete Cidades); na Terceira, a península do Monte Brasil com registo anterior a 1500, certifica a mítica ilha do O’Brasil, ou Breasil, dos celtas irlandeses testemunha o nome que antes de chegar ao Brasil passou pelos Açores; ou os Mosteiros (da tradição de São Brandão) presentes na ilha de São Miguel e nas Flores, para além de Cabo Verde.

A partir da década de 1420, navios de Gonçalo Velho Cabral, Diogo de Silves e outros, com autorização prévia ou não, começaram a abordar e explorar os Açores. As ilhas mais ocidentais das Flores e Corvo só foram visitada depois de 1450, quando as mais ilhas já tinham razoável população, sua entrada no domínio lusíada deu-se, em 1452, durante viagem de Pedro Vazquez de la Frontera e Diogo de Teive no regresso de procura das outras ilhas míticas, ou talvez de uma pescaria na Terra dos Bacalhaus (atual Terra Nova, Canadá). Além do reconhecimento das costas e  lugares de porto seguro para fazer aguada, se destinaram a lançar vacas, ovelhas, cabras, porcos e galinhas que pudessem se aclimatar e reproduzir para sustento de futuro povoamento. Em São Miguel há referência a um grupo de escravos deixados na foz da Ribeira da Povoação, cerca da metade da década de 1430. A colonização deu-se pela ilha de Santa Maria, primeira povoação, atual Vila do Porto na baía onde desaguavam duas ribeiras de águas cristalinas, só resta uma agora depois que a desflorestação da ilha alterou o meio ambiente original.

No começo da década de  1440 as colônias na foz das ribeiras de São Miguel, da Terceira, do Faial e talvez do Pico sustentavam-se da caça de aves e dos animais domésticos deixados a solta, além da pesca. A abundância de lenha e água, a fertilidade de solos vulcânicos, tornavam as ilhas fáceis de colonizar, tanto mais que a falta de trigo, que poderia ser facilmente cultivado, era  constante em Portugal. As rochas de urzela, um valioso líquen tintureiro, deixava pensar na exploração econômica das ilhas e levaram ao rápido povoamento. Depois, desastres naturais, ataques de piratas e superpopulação e mudança do clima levaram à pobreza: os casais passariam ao imenso e “despovoado” Brasil. Um aventureiro chamado Simão Estácio da Silveira, patrão de navio, tira proveito da situação com um panfleto dedicado aos pobres de Portugal (leia-se Açores), em 1618, lhes prometendo o paraíso no Maranhão… Desamparados e famintos os pobres de Portugal roubaram as terras dos índios e os escravizaram. O Maranhão era terra do Bom Selvagem tupinambá, a resposta foi duríssima (uma centena de “portugueses” massacrados pelos índios) e a represália genocida não deixou margem a dúvidas do que viria mais tarde ainda.

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