Sobre o “aprimoramento” da expressão ditadura militar
O recente e oportuno artigo de Pedro da Rocha Pomar criticando, como diz o título, “O modismo ‘civil-militar’ para designar a Ditadura Militar”, tem o duplo mérito de mostrar as falácias de uma nada inocente manipulação terminológica e de reativar a análise do regime que violentou o Brasil de 1964 a 1985.
Publicado 03/09/2012 14:45
A principal falácia consiste em dar a entender que a expressão “ditadura militar” pretende explicitar o conteúdo social daquele regime. Sei que invocar o espírito dos mortos é procedimento discutível, utilizado por charlatões de todo tipo. Tenho, porém forte convicção de que se o célebre Antônio Gramsci tivesse tido conhecimento da profunda descoberta teórica de que a ditadura foi civil-militar e não apenas militar, teria ponderado que os militares não formam uma classe, mas toda classe tem seus militares. Nenhuma ditadura é puramente militar, pela mesma razão que nenhuma dominação ideológica é puramente intelectual e que nenhuma “democracia”, no sentido que os liberais dão a esse termo, prescinde de forças armadas e policiais: o concreto histórico é sempre complexo. Quando dizemos que o Brasil é hoje uma democracia liberal e que entre1964 e 1985 foi uma ditadura militar, estamos nos referindo ao modo de exercício do poder político e, portanto deixando implícito que a classe dominante era e é a burguesia. Durante aquele período a cúpula do aparelho militar monopolizou o controle do Executivo federal e recorreu ao terrorismo de Estado, notadamente à tortura sistemática dos presos políticos para aniquilar a resistência clandestina. Os “civis”, entendamos, os porta-vozes da grande indústria, da alta finança e do latifúndio, participaram dos governos ditatoriais, embora nas situações graves a decisão em última instância pertencia aos generais de quatro estrelas e de garras afiadas.
Não apenas o regime, mas também o golpe de Estado teve caráter civil-militar. Bem antes de certos pensadores que se imaginam profundos terem desvelado o caráter também “civil” do golpe de 1964, o saudoso Nelson Werneck Sodré sublinhara com lúcida precisão que ele “foi político, embora operado por forças militares”. Mostrando que, de 1945 em diante, as intervenções políticas das Forças Armadas foram inspiradas pelos partidos de direita, ele explicou com farta documentação o processo através do qual os latifundiários e a burguesia entreguista intoxicaram ideologicamente parcela ponderável da oficialidade: “Devidamente dopados pelo anticomunismo e pela ação maciça da mídia, os militares faziam sempre o serviço que lhes era solicitado. Jejunos em política, alimentados pela propaganda, supunham que estavam mesmo salvando Deus, a Pátria e a Família, nada menos do que isso”. Essa trilogia nos faz lembrar o componente clerical da mobilização contra revolucionária de 1964. Com efeito, as famigeradas Marchas da Família, com Deus pela Liberdade, enquadradas por cripto fascistas de choque e abençoadas por incontáveis ratazanas de sacristia, conferiram ao golpe ampla base de massa. Se fossem mesmo teoricamente consequentes, os adeptos do novo modismo ampliariam sua fórmula, falando em golpe “eclesiástico-civil-militar”.
Em seu 1964: A Conquista do Estado René Dreyfuss comprovou com maciça e irrefutável documentação que (1) o golpe reacionário de 1964 começou a ser sistematicamente preparado desde 1961 (quando João Goulart assumiu a presidência), desmentindo rigorosa e frontalmente o argumento de protagonistas e defensores do movimento sedicioso (reiterado ad nauseam pelo coronel Passarinho e sócios da direita militar e retomado por liberais reacionários de choque e “socialistas” cor de rosa) de que eles recorreram preventivamente à força para se antecipar a um projeto golpista que estaria sendo meditado ou até mesmo urdido por Goulart e que (2) foi decisiva, na mobilização reacionária que culminou no golpe de 1964, a iniciativa direta de banqueiros, grandes industriais, comerciantes e outros plutocratas, apoiados pelas principais associações e federações patronais do país. Entretanto, do reconhecimento do caráter decisivo da mobilização contra revolucionária da burguesia não se infere que o termo ditadura militar precise ser aprimorado. Os bons historiadores da política dão mais importância ao vocabulário das lutas concretas do que às elucubrações de sabichões tardios. As ideias força que animam o combate político devem sintetizar-se numa fórmula clara que oriente e concentre a energia coletiva. O inimigo imediato que os movimentos contra as ditaduras enfrentaram em todo o Cone Sul foram as cúpulas militares reacionárias, que exerciam quase monopolisticamente o poder de Estado, recorrendo ao terror repressivo para aniquilar a resistência clandestina e intimidar a oposição consentida. A grande maioria dos que clamavam nas ruas “abaixo a ditadura” bem sabiam que a causa da família (patriarcal), de Deus (“in God we trust”) e da Liberdade (de comércio e de exploração do trabalho) não interessava apenas aos militares, mas também àqueles que os haviam açulado contra a esquerda e os comunistas. Deveriam por isso bradar “abaixo a ditadura civil-militar”?
Não acompanhamos porém a ênfase demasiado unilateral de Pomar no caráter principalmente militar do regime ditatorial. É excessivo dizer que “os militares passaram a controlar a educação, a cultura, o esporte…” e que “sobretudo, deram as linhas na política e na economia”. Assim fica parecendo que os militares formam uma classe com interesses sociais próprios, distintos dos da burguesia e de seus círculos dirigentes. Embora não pareça ser essa a posição que ele defende, o pressuposto teórico de seu argumento é a oposição abstrata entre sociedade civil e Estado. Pensamos que vale a pena levar adiante esse debate.