Tércia, memória da ditadura

Falecimento de Tércia Maria Rodrigues Mendes em Belo Horizonte representa a perda de uma memória essencial dos crimes da ditadura militar no Brasil.

Tércia Maria Rodrigues, foi casada com Jarbas Pereira Marques, um dos militantes socialistas assassinados no Recife em 1973. | Foto: arquivo

Faleceu nesse domingo 25/06, em Belo Horizonte, Tércia Maria Rodrigues Mendes, que foi casada com Jarbas Pereira Marques, um dos militantes socialistas assassinados no Recife em 1973.

Com ela, parte uma memória essencial daqueles crimes em que o Cabo Anselmo foi o agente infiltrado. No Recife, em 1973, o falso cabo entregou para a morte 6 militantes, incluindo a própria mulher grávida, Soledad Barrett, e mais Pauline Philippe Reichstul, Eudaldo Gomes da Silva, Evaldo Luiz Ferreira de Souza, José Manoel da Silva e Jarbas Pereira Marques.  

Sobre esses assassinatos, assim fala um trecho do depoimento da grande advogada Mércia Albuquerque, na Secretaria de Justiça de Pernambuco:

“.. Jarbas que eu conhecia muito estava também numa mesa, estava com uma zorba azul clara e tinha uma perfuração de bala na testa e uma no peito e uma mancha profunda no pescoço de um lado só como se fosse corda e com os olhos muito abertos e a língua fora da boca, que me deixou assim muito chocada”.

Nos dias do carnaval de 2018, pude conversar com Tércia e Nadejda  Marques, filha de Jarbas e Tércia.  Então pude ver o que eu não queria nem imaginava. Aqui vai resumida a nossa conversa com Nadejda, na presença de Tércia, que acrescentava e confirmava:

“Soledad se queixou de gravidez à minha mãe. Tanto minha mãe quanto minha avó viram o casal, mais de uma vez. Por exemplo, em um encontro, Soledad estava enjoada e vomitava por causa da gravidez. Estavam presentes minha mãe, minha tia, Soledad e Pauline…

Minha mãe me falou que ela e Soledad iam à praia juntas, que Soledad parecia feliz com a gravidez, que era bonita e elegante. Soledad Barrett me presenteou uma roupinha de bebê. Ela era uma pessoa doce e amável”

Depois dos seis assassinatos de 1973, o inferno continuou para os sobreviventes:      

“O ‘cabo’ , após o massacre,  assumiu de vez e escancaradamente o seu papel de atroz agente da repressão. Implacável contra todos, inclusive crianças inocentes. Depois do massacre, a sua máscara de simpático ficou estilhaçada”. Tércia e uma tia, para não serem mortas,  se esconderam num apartamento vazio de um parente. Mas esse lugar  foi buscado e achado pelo Cabo Anselmo e Fleury. Pelo olho mágico da porta, os dois foram vistos. E veio então mais um trauma:  enquanto a campainha tocava, Tércia fechava a boca da filhinha com força, para que ela não chorasse e não denunciasse a presença delas. Apertou com tamanho desespero que machucou o queixo da filha. Nadejda era um bebê com 10 meses de idade.  

Tempos depois, já no Rio, Tércia, nervosa e ainda tremendo, segurou a mão da filha e em voz clara falou que vira o cabo Anselmo, o homem que traiu seu primeiro marido. O cabo Anselmo que torturou e matou Jarbas estava caminhando calmamente no calçadão de Copacabana em pleno Rio de Janeiro. Ele vivia entre as vítimas. Vez ou outra, concordava em dar entrevistas e posar para a mídia. A mentir, ele tentava posar como celebridade ou como um herói da ditadura. Às vezes se fazia de vítima. Bem sabia ele que sempre que aparecia era como uma ameaça velada, zombando dos que caíram. ‘Era ele’, minha mãe me disse. ‘Eu o reconheci e ele caminhava normalmente como se nada tivesse acontecido’ “.

Foi essa mulher que faleceu nesse domingo, levando consigo uma das memórias dos crimes da ditadura. Tércia, presente!

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