“Terra Vermelha”: retrato da tragédia anunciada
Com trama centrada na luta dos índios guaranis-kaiowás pela sobrevivência no Mato Grosso do Sul, o diretor italiano Marco Bechis traça um painel sobre a extinção lenta das tribos indígenas no Brasil.
Publicado 13/03/2009 19:38
Desde os anos 80, quando Jorge Bodanski fez “Iracema – Uma Transa Amazônica”, a degradação da sociedade indígena não aparecia com tanta crueza, como em “Terra Vermelha”, do italiano Marco Bechis. Enquanto Bodanski se preocupava em desvendar as consequências de sua aculturação, mostrando a prostituição das jovens índias, Bechis avança para as transformações operadas em vastas extensões de terra, através da mecanização do campo. As tribos, circunscritas às suas reservas, vivem rodeadas por cercas, tratores e pistoleiros, sem as mínimas condições de sobrevivência. Nem mesmo a floresta que lhes resta preserva sua fauna e flora, o que lhes impede continuar a caçar e colher o suficiente para se sustentar. As saídas que lhes restam é se transformar em assalariados nas fazendas ou se tornar figurantes em armadilhas para afugentar visitantes indesejáveis. Ou como reafirmam Bechis e seu co-roteirista Luís Bolognesi: robustecer as estatísticas de suicídios com o fazem os guarani-kaiowás.
Com a história centrada na família de Nadio (Ademilson Gonzaga Verga), “Terra Vermelha” tece um mosaico das contradições do modelo de desenvolvimento agrário no centro-oeste do país, da tentativa de assimilação da cultura oficial pelos nativos e suas dificuldades de sobrevivência num sistema já difícil para os que dominam novas tecnologias de produção no campo. O meio habitat, antes favorável, agora os engole com uma voracidade tal que sua cultura, rituais e sistema de vida ficam deslocados diante da estrutura montada pelos grandes produtores de soja, feijão e milho. Algo lhes falta, talvez o entendimento de que, para além das figuras que identificam como inimigo; há uma estrutura maior que os esmagam. E mesmo que consigam enfrentar os fazendeiros e os latifundiários, o sistema continuará com suas roldanas inclementes. Suas armas, até certo modo, são frágeis demais para este enfrentamento.
Cenas de acampamento lembram os do MST
Bechis e Bolognesi, no entanto, apontam opções de luta correntes hoje no Brasil, tendo o MST como espelho. O necessário para moldar uma resistência que atrai dezenas de outros grupos indígenas, permitindo, por ora, adiar sua própria extinção. As cenas do acampamento se formando, com suas lonas pretas, junto à cerca de arame, remetem às de tantos e tantos acampamentos de sem-terra espalhados Brasil afora. Os índios, entretanto, vivem situação adversa: têm terras, grandes extensões, mas faltam-lhe o capital necessário para transformá-las em reservas produtivas, nos mesmos moldes dos exploradores de seus espaços milenares. Tecnologia e modelo de sobrevivência primitivo, preservação da cultura e organização da produção, são opostos neste caso. Nadio e o xamã de sua tribo querem manter sua cultura e continuar se valendo da floresta para sustento e gênero de vida. Tudo fazem para que os demais integrantes da tribo os sigam.
Com as dificuldades criadas pela devastação da floresta, faltando-lhes animais para caça e tubérculos e frutas silvestres para colheita, todos se tornam reféns do “gato” Dimas (Matheus Nacthergaele), dono do armazém do povoado, e dos fazendeiros e latifundiários que lhes oferecem trabalho. O aviltamento de sua condição humana e a exploração de que são vítimas expõem o grau de degradação a que são submetidos. Em dado momento, com a fome chegando, Dimas se vale da aflição deles para lhes oferecer como se fosse o “maná dos céus”: R$ 100,00 por cinco dias de trabalho e o almoço. Se em princípio, Nadio conseguiu se impor, depois, tomado pela impotência, vê seus liderados subindo no caminhão do “gato”, enquanto sucumbe à cachaça. É uma cena forte, indicativa de que a radicalização da resistência por ele operada deveria ir adiante. Impossível não ver a miséria avançando diante do cerco impiedoso do mecanismo triturante da grande produção agrícola.
Subtramas não reforçam o principal tema do filme
Com um tema dessa grandiosidade, era de se esperar que a dupla Bechis/Bolognesi usaria o sistema de dois centros da história, o da tribo no acampamento e o da fazenda, com o fazendeiro Lucas Moreira (Leonardo Medeiros), para levar à frente o conflito entre índios e fazendeiros. Porém, a dupla está interessada em transformar o filme num painel sobre os índios guaranis-kaiowás, e introduzem outras situações que não reforçam o centro da narrativa. Um deles é o frágil entrevero amoroso entre o discípulo do xamã da tribo, Osvaldo (Abrísio da Silva Pedro), e a filha de Lucas Moreira, Maria. Funciona ora como a disputa pureza x pecado, ora como fé x descrença. Ocorre que Osvaldo, aculturado, perdeu há muito tempo quaisquer características que o ponha como vítima da adolescente Maria. Em dado momento, ele é capaz de enfileirar uma série dos mais criativos palavrões, sem perder a fleuma.
O entrevero induz nas sequencias finais a pensar que acabará numa tragédia, que reforçaria, sobremaneira, o centro principal da trama. Nada disso ocorre, o mesmo com a referência aos suicídios. Desde os primeiros, surgidos nas sequencias iniciais até o último, a percepção é de que não são derivados da situação de cerco vivida pelos guaranis-kaiowas, porém de conflitos entre os próprios indígenas. Na verdade, principalmente no último, existe uma gama de razões para tal atitude. Nadio ao pressionar o filho Irineu (Ambrósio Vilhalva) o faz por querê-lo a seu lado, se insurgindo contra o cerco que Lucas Moreira e demais fazendeiros fazem contra sua tribo, inclusive oferecendo-lhe “trabalho” -, não para se opor às preferências do garoto. Mas o adolescente não entende desta forma. Quer, a todo custo, a exemplo dos que habitam os centros urbanos, outro meio de vida.
Índio adolescente usa o símbolo da geração teen
Há em sua volta uma série de “tentações” – da aparente liberdade de circulação que o dinheiro lhe dá à possibilidade de consumo – e ele se deixa seduzir. Surge diante de Nadio, triste com os impasses que se acumulavam, cheio de presentes, certo de que seriam aceitos. E ostenta, além disto, o supremo talismã da “geração teen”, o tênis branco de marca. Sinal dos tempos, porquanto nos anos 70 e 80, mostrado nos campos de futebol, nas praças e nos bares , o talismã era o enorme rádio a pilha. Mas, Irineu, às voltas com estas “tentações” termina por entrar em conflito com o pai, Nadio. O que vem a seguir, escapa à análise que poderia, como observado, reforçar a idéia de cerco sofrido pela tribo. É, no entanto, um dado a mais que contribui, de qualquer forma, para fazer o filme andar. Como o faz a relação do pistoleiro com a índia Lia, que leva ao desfecho, aliás condizente com a história.
O olhar da dupla Bechis/Bolognesi se amplia ao introduzir a gringa Beatrice (Chiara Casseli), mulher de Lucas Moreira, que se reúne com diversos estadunidenses em sua fazenda para lhes dar aula sobre os índios. É o fato externo, para compreensão imediata do processo de devastação da floresta, de desagregação indígena e da permanência da visão de que o país continua selvagem e povoado por fauna e flora de fácil comercialização no mercado externo. Mas, a exemplo das demais, não se relaciona com o centro da trama, serve apenas para chamar atenção e dizer que existem estes outros dados. Quando, sim, a dupla volta a ele, o filme atende a seu objetivo: o de denúncia do processo de extinção de todo um povo. Primeiro por Nadio ter entendido a necessidade de radicalizar o processo de ocupação de uma área que, no passado, pertenceu à sua tribo, depois porque Lucas Moreira e outro fazendeiro não respeitam ou confiam na Justiça brasileira, vendo saída apenas em sua própria intervenção. E encontram ambos as costumeiras soluções a que o espectador está acostumado a ver na mídia.
500 anos depois o extermínio continua
O confronto, cara a cara, entre Nadio e sua tribo e os dois fazendeiros e seus pistoleiros rende um diálogo cheio de nuances e símbolos. Enquanto, Lucas Moreira fala em produção e título em cartório: ”Eu produzo comida para as pessoas”, Nadio responde com um gesto digno de nota. Sinal de que entre eles nada mais havia a conversar. Entre ambos existe tão só a presença do Estado, por meio da Polícia Federal, que lhes pede para obedecer a lei. E representa a impotência, a tática do “deixa estar para ver como fica”. Nada mais. Podem ser eles muito bem os “birdwatchers”, “observadores de pássaros” do título em inglês do filme. Ou seja, observam enquanto os pássaros são abatidos. Uma prática a que já se acostumaram os latifundiários e fazendeiros, seja com índios, seja com religiosos e sindicalistas país afora.
“Terra Vermelha”, embora oscile com suas subtramas e uma certa frouxidão na direção, chama atenção para a tragédia anunciada no meio rural, na floresta, nas reservas indígenas e nas áreas de grande produção de alimentos: a do massacre das tribos indígenas, reflexo de que 500 anos depois da apropriação de suas terras pela Coroa Portuguesa, eles continuam sendo exterminados. Se não de forma explícita, mas lentamente com o esvaziamento de suas áreas de caça, pesca e coleta de frutos em matas de grande variedade de fauna e flora. A terra vermelha de que se orgulham os fazendeiros e latifundiários, pois a consideram boa para a produção de grãos, é a mesma que significa a desertificação e o enforcamento dos jovens indígenas nos esqueléticos troncos remanescentes de uma floresta em agonia.
“Terra Vermelha” (“La Terra Degli Uomini Rossi”). Drama. Produção Itália/Brasil. 2008. !08 minutos. Leornardo Medeiros, Matheus Nacthergaele, Chiara Cassely, Abrísio da Silva Pedro, Ademilson Gonzada Verga, Ambrósio Vilhalva.