“Tetro”: De ódio e humor
Coppola mescla gêneros e referências para contar a história de ódio entre pai e filho numa Buenos Aires que entra com o cenário e o tango.
Publicado 08/06/2011 23:19
Não é de estranhar que em seu último filme, “Tetro”, o diretor ítalo-estadunidense Francis Ford Coppola vá do drama à comédia, do teatro a ópera, do musical ao dramalhão, para compor uma narrativa cujo centro é a luta do iluminador e personagem-título (Vincent Gallo) para superar seus conflitos com o pai Carlo Tetrocini (Klaus Maria Brandauer). A própria história narrada em tom operístico é cheia de referências aos delírios fellinianos (“Amarcord”), almodovarianos (“Tudo Sobre Minha Mãe”) e ao film noir, mantendo forte clima latino, por transcorrer em plena Buenos Aires.
É nesta cidade que Tetro sobrevive de trabalhos esporádicos para o “empresário” José (Rodrigo De La Serna). A maioria, encenada por Abelardo (Mike Amigorena), não passa de esquetes para restrito público. Até que o navio em que trabalha seu meio-irmão Bennie (Alden Ehrenreich) atraca na cidade. A partir daí sua vida, que já não era das mais fáceis, passa a oscilar entre as buscas de Bennie, seu ódio ao pai, e sua relação com a psicóloga Miranda (Maribel Verdu). Bennie, saindo da adolescência, está cheio de dúvidas, quanto à sua origem, enquanto Tetro quer esquecer qualquer referência ao pai e às respectivas mães.
Com este enredo, Coppola percorre as relações de Tetro com o pai, Carlo, maestro famoso, sobre quem não fala. Há entre os dois um ódio, que apenas no final ficará claro. E Bennie, em sua ansiedade juvenil, vai descobrindo o irmão e a si próprio. Enfrenta seu rito de passagem com humor e frustrações. Envolve-se com Josefina (Letícia Brédice), mãe de sua namorada Maria Luísa (Sofia Castiglione), e ambas acabam iniciando-o sexualmente. Não há neste ato o moralismo que no mundo ocidental-cristão deixa de ser afirmação para se transformar em culpa e “pecado”.
Aos poucos ele descobre uma vida mais excitante que a do navio onde trabalha. Não só porque fustiga Tetro para entrar em detalhes sobre o incidente com a mãe deste, como desencava segredos do irmão e se diverte com a cunhada Miranda. Coppola então recorre às múltiplas referências e gêneros. De repente, Bennie pode estar no bar de José, vendo um esquete de Abelardo, como se o diretor se referenciasse ao Fellini de “Amacord” e nele mesmo, na sequência do jovem Vito Corleone (Robert De Niro) e o amigo assistindo a uma peça popular, em “O Poderoso Chefão II”. E vendo Josefina se despir cheia de trejeitos para ele, enquanto Tetro se irrita e discute com Abelardo.
Irmãos são divididos
pelo pai famoso
O universo de Tetro é radicalmente diferente do seu. Este concentra muita dor, ódio, frustrações, procurando retirar de si qualquer referência ao pai. Em flashback, Coppola mostra o que tem sido sua vida e o que Miranda representa para ele. Sua luta para afastar-se de Carlo, criando seu próprio espaço, ainda não foi superada. Quanto mais se esforça para ficar longe dele, mais a fama, o gênio, o desdém do pai o persegue. E dele não consegue se livrar, por mais que esteja em Buenos Aires. Bennie se torna, assim, o intruso que o faz continuar ligado a Carlo. E as sequências de suas lembranças, seus pesadelos, são coloridas, vívidas, como se estivessem sempre presentes.
Coppola retoma, assim, o recurso usado em “Selvagem da Motocicleta”, em que põe os peixes de briga, símbolo da luta de Rusty, em cores. Desta forma, ele diferencia as descobertas de Bennie, pondo-as em preto e branco, e as amargas lembranças de Tetro, em cores. Mas também foge do clichê de o passado ser sempre em preto e branco. Além disso, quando Tetro entra em ebulição, a ópera marca seu estado de espírito e o liga claramente ao pai, à tragédia e ao universo cinzento que o aprisiona. Até as sequências finais, quando aquilo que poderia ser sua redenção desencadeia uma série de fatos que o martiriza ainda mais. E ele, em vez de apegar-se à saída que lhe oferece o irmão, prefere deixar perplexos os que o rodeiam.
É da segunda para a terceira parte que Tetro surge por inteiro. Antes era só um amargurado, tendo por equilíbrio apenas Miranda. Mas nestes instantes, ele domina a ação e os ambientes por onde circula. Principalmente numa forma enviesada de vingança contra o pai. E a profusão de referências se multiplica, com a presença da almodovariana Carmen Maura (Alone), tão brega e brejeira, na procura desenfreada para premiá-lo, na tragédia grega que emana de várias situações e, por fim, na zombaria que Coppola ridiculariza festivais, pseudamente sérios, que tentam trazer fama, quando não passam de pastiche e imitações baratas de programas de auditório. Os próprios cenários do evento e Alone bem o simbolizam.
Com esta multiplicidade de situações, referências e gêneros; “Tetro” poderia ser uma miscelânia, porém Coppola articula-a de forma a não cair nesta armadilha. Porém sua Buenos Aires, com seus argentinos cheios de trejeitos, embalados por tango e milonga, não dá clima ao filme, que sai mais da narrativa eivada de dramaticidade e humor. Assim, Tetro” bem poderia se passar na Flórida. E não seria danoso para ele.
“Tetro”. Drama. Argentina, Itália, Espanha, EUA. 2009. 127 minutos. Roteiro/direção: Francis Ford Coppola. Fotografia: Mihai Malainare Jr. Música: Osvaldo Golizou. Elenco: Vincent Gallo, Maribel Verdu, Carmen Maura, Klaus Maria Brandauer, Alden Ehrenreich.