“Tropa de Elite”: Violência à moda da Casa
Filme do brasileiro José Padilha mostra o que a maioria das pessoas sabia: a polícia brasileira usa métodos sistemáticos de violência no trato com criminoso, suspeito ou o cidadão comum e está infestada de facções e integrantes corruptos
Publicado 19/10/2007 14:41
A mágica do cinema sempre foi a de criar histórias que dêem a sensação de realidade. Acontecem no exato momento em que as cenas se sucedem na tela. Os personagens se movem de acordo com os códigos estabelecidos pelo enredo, seguindo regras ditadas pelo ambiente em que vivem. Pode ser em plena idade média, na antiguidade ou na era moderna. Ou se projetar para além do nosso tempo, com ética e moral diversa da conhecida. O que importa é a simbiose interna, o entrelaçamento das ações e reações, as contradições elaboradas de tal forma que tudo pareça real, a ponto de o espectador não duvidar do que vê.
O máximo que ele pode fazer é ligar os códigos do filme à estrutura social em que vive. É então que o filme se transforma numa obra de arte, pois reflete na tela os conflitos sociais muitas vezes ignorados ou ocultos e seus significados mais profundos. Pouco importa se ele o faz na forma de comédia, ficção científica ou conflito social. Deve ser, sobretudo, o espelho em que os segmentos sociais vêem suas próprias ações e suas conseqüências.
Mesmo que sua história se passe na Constelação de Orion, no século 230, a projeção da nova sociedade manterá códigos e símbolos da atual. Ainda que o cineasta crie identidades e segmentos sociais, tidos como completamente novos, é possível analisar, a partir deles, o comportamento da sociedade moderna. Menos complicado é quando o filme é baseado em livro que conta uma história real, a partir das experiências de seus autores, como ocorre em “Tropa de Elite”, do brasileiro José Padilha (Ônibus 174), fenômeno de bilheteria, crítica e reflexão político-social.
É costume se confundir ficção com realidade
O que se vê na tela é, mesmo sofrendo as adaptações necessárias de um veículo de comunicação para outro, o relato da realidade, na forma cinematográfica. Não há, desta forma, como confundir um gênero com o outro. Um se baseia no relato biográfico ou ficcional, o outro na obra que daí emergiu. Difícil, portanto, confundir uma com a outra. Cada uma cumpre seu papel na medida exata de seus objetivos, conteúdos e mensagens.
Mas é costume se confundir a narrativa com a projeção que ela faz da realidade. Refletir a estrutura social, seus desvios, sua degenerescência e seu mau comportamento não significa que o autor/diretor/roteirista tenha absorvido para si o que mostra na tela. Nem sua obra, ao retratar a realidade, defende os mesmos princípios ou a falta deles. Se conseguir pôr na tela as contradições sociais, tais como ocorrem, terá dado uma grande contribuição à sociedade para a compreensão de si mesma. Muitas vezes, se o autor/ diretor/roteirista não consegue articular o discurso cinematográfico em seus vários vértices, opondo contradições, numa dialética que radiografe a estrutura social carcomida, pode, sim, tornar sua obra uma defesa do que deveria condenar.
Trata-se, na verdade, de deslizes que incorrem grandes cineastas a exemplo de Don Siegel, em “Perseguidor Implacável”, cujo personagem Dirty Harry, interpretado por Clint Eastwood, age com violência extrema, fazendo justiça com as próprias mãos. Idêntico erro comete o esteta Sam Peckimpah, em “O Casal Osterman”, ao tentar denunciar a trama urdida pela CIA contra um grupo de comunistas. O que parecia louvável; termina por virar a favor dos EUA, tornando seu filme reacionário. Nenhum desses casos se aplica a “Tropa de Elite”, adaptado do livro do ex-capitão do Bope, Rodrigo Pimentel, e do sociólogo Luís Eduardo Soares.
Uso sistemático de violência pela polícia virou rotina
A história real organizada na tela em quatro tempos, orquestrados para se entrelaçar no final, não cria um universo fictício. Pelo contrário, procura se alicerçar, há todo momento, nas ações do aparelho de segurança brasileiro, denunciando o uso sistemático da tortura, da violência e da agressão física e psicológica ao cidadão comum, criminoso ou membro do crime organizado, como forma de obter informação. Daí, sem restrição alguma, humilha ou simplesmente extermina o suspeito, culpado ou não. Os controles da sociedade organizada sobre suas ações são frágeis, seguindo os tempos neoliberais. Tem modelos literais nas prisões de Guantánamo, onde os EUA submetem os presos a castigos corporais infindáveis, sem culpa formada.
A obra, portanto, não cria uma realidade, pelo contrário, se alicerça na que existe. Esta alcança qualquer espectador brasileiro onde ele estiver; dada à violência urbana, as notícias veiculadas pela mídia, a tensão que os moradores dos centros urbanos vivem. A cada dia um caso explosivo domina o horário nobre. Caso da morte brutal do garoto João Hélio, arrastado pelos ladrões que roubaram o carro de sua mãe. Do corpo do traficante estendido no chão, enquanto uma mãe passa com seu filho por ele, numa espécie de convivência forçada com as execuções. E da capacidade de o PCC dominar pelo terror, durante semanas, uma cidade como São Paulo. A eles se acrescentam os descalabros que começam nos degraus mais baixos da estrutura social, e sobem em espiral até a cúpula da República.
Deles não escapam o delegado de polícia e o oficial da PM, ligados ao esquema de propina; os juízes vendedores de sentença; os deputados e senadores, ministros e secretários do Executivo seduzidos pelas percentagens das licitações e das liberações de recursos para empresários interessados em manter suas empresas às custas dos recursos públicos. Transações que se passam na cúpula, na superestrutura do estado burguês, distante do cidadão comum. Transcorrem numa tranqüilidade digna do jogo de xadrez, em que as pedras são movidas pensando 30, 40 lances à frente. Desta forma garante-se o médio e o longo prazo dos negócios e do poder. E se cria a falsa idéia de que os lucros justificam os golpes.
Violência reflete decadência do Estado burguês atual
Os segmentos das escalas mais baixas da sociedade se miram nos altos escalões para participar do botim. Enfim, uma sociedade podre, que reflete a decadência do Estado burguês. Uma amostra de que o capitalismo, em seu estágio monopolista, tem toda sua estrutura corrompida. “Tropa de Elite” não vai com sede ao pote. Fica numa parte ínfima dele. Restringe-se à violência, tortura, humilhação e o achaque de comerciantes e de exploradores do jogo do bicho. E o conluio de parte das Ongs, o chamado terceiro setor, com o tráfico de drogas. Reflete, assim, a visão de que é preciso fazer alguma coisa, mesmo ao custo de conviver com o crime sob suspeita permanente. O que, em si, já é demais para um filme, cuja pretensão é tão só refletir o momento histórico nacional.
Nada, porém, que a maioria dos moradores da periferia não saiba e os da classe média ignorem. E a burguesia acredite que a intimidação seja o recurso necessário para frear o crime, enquanto a corrupção corre solta nos altos escalões, inclusive no aparelho de segurança. Padilha recorre à narração em off, mais para matizar o estado de espírito de seu personagem principal, o capitão Nascimento (Wagner Moura), que para usar a técnica recorrente ao film noir. O recurso então descola o personagem das ações que ele mesmo perpetra. É como se ele refletisse sobre o que faz e temesse suas conseqüências. Funciona também como consciência do sistema que repele, mas não tem como dele escapar, por conhecê-lo demais e não saber desgrudar-se de suas teias sombrias.
Seu comportamento lembra o de Vicent Hana (Al Pacino), em “Fogo contra Fogo”, que, ao mergulhar fundo no combate ao crime, como policial, deixa parte de si esquecida: a relação familiar. Nascimento tem com sua companheira Rosane (Maria Ribeiro) seu instante de desabafo, de tentativa de regenerar-se, porém, seu DNA tem as marcas das ações do Bope (Batalhão de Operações Especiais do Estado do Rio de Janeiro). Reativo, ele esbraveja, em dado momento, até contra ela. Uma forma de expurgar seu conflito interior, principalmente a necessidade de submeter a todos. Menos a ela, que exerce sobre ele forte influência. Em dado momento ajusta contas com Rosane, ao preço da solidão, do afastamento do único convívio que o humanizava.
Capitão Nascimento é o grande personagem do cinema nacional
O capitão nascimento é, em anos, o melhor personagem visto num filme nacional, não só pelo roteiro, mas, essencialmente, pela estupenda interpretação de Wagner Moura, que, embora todo o elenco brilhe, parece encenar um longo solo. Quando ele grita:”Ninguém sobe o morro!”, o cinema treme. É algo como:”Agora é comigo!”. E os aplausos espocam. Lembram os “Xô!Xôô! Xôôô!!! Gritados pelo publico, durante a ditadura militar, ao surgir na tela o condor, que identificava a produtora italiana. E ele voava. Só que Nascimento, calcado em oficial real do Bope-RJ, é apenas um personagem. Não pode deixar a tela, à semelhança de Jeff Daniels, em “A Rosa Púrpura do Cairo”, e sair atirando nos traficantes pelo Brasilzão afora. Demonstra a carência de justiça, segurança, presença do Estado, junto ao povo. Não o Estado fascista, anti-democrático, policial, mas o estado de direito, democrático e eficiente no combate ao crime em suas diferentes manifestações.
Numa sociedade dominada pelo medo e o temor de perder um ente querido, o capitão Nascimento faz a diferença. Ele representa uma instituição, o Bope, treinada para matar. Também é de arrepiar sua frase quando sobe o morro para acerto de contas com o chefe do tráfico, Baiano (Fábio Lago):”Quando o Bope sobe o morro, é guerra!”. A voz de Moura soa como uma ameaça mortal. Ele quer dizer: “Ninguém escapa com vida”. Risos, aplausos, inundam o cinema. Se riscar um fósforo, a sala incendeia. Comportamento assombroso, por mostrar o nível a que a sociedade brasileira chegou. Notadamente, a classe média (e não só ela).
O trabalhador que mora nos aglomerados e na periferia tem visão diferente desse processo. Para ele, o Bope representa o horror, em toda a extensão dada pelo coronel Kurtz (Marlon Brando), em “Apocalipse Now”. Eles sabem que por onde passam os homens do Bope fica uma fileira de cadáveres. Eles não estão ali para cercar, prender, entregar à Justiça para julgar e sentenciar. Sim, para executar. Ele, o Bope, representa o Estado, o Leviatã que se impõe pela violência. Não lhe importa se no aglomerado, ele pode ficar diante do trabalhador, vítima do sistema, dos baixos salários, da má distribuição da riqueza, do desemprego, da miséria, da fome.
Trabalhador perde o filho para o tráfico
Ali, por sua visão, está parte do problema, do crime, que deve ser eliminado. E a classe trabalhadora, na maioria dos aglomerados, vê escapar para as garras do tráfico e da polícia o que de mais nobre tem: seus filhos. Uma juventude semi-alfabetizada, desempregada, sem perspectiva alguma de futuro. Tem, inclusive, sua identidade: bermuda, camiseta, sandália havaiana e metralhadora. Aprende a atirar e a escapar do Bope por becos e ruelas. Até ser atingida por um balaço. Depois, quando o tiroteio cessa, seus corpos são arrastados pela escadaria do morro, como um animal qualquer. Cenas iguais a estas a TV mostra quase todo dia.
Ao fazê-lo, também, “Tropa de Elite” chocou a burguesia, a classe média e o aparelho de segurança. Uma reação cínica de quem ignora a contribuição dada pela elite e pela mídia para a satanização dessa juventude, composta, em sua maioria de negros, pobres e discriminados. É simplesmente liquidada. Uma forma, inclusive, de reduzir as estatísticas da pobreza, a partir dos aglomerados. Morre, porque a tarefa do Bope é fazer a guerra. E na guerra não se contemporiza. O inimigo acaba por ser o alvo a ser eliminado. Baiano, chefe do tráfico, buscado como uma fera, encurralado a ponto de não poder mais resistir, faz parte da galeria de figuras reais executadas em nome do equilíbrio social.
Aparece sempre como figura maligna, o baiano cujo sonho de riqueza e poder se esboroa numa nuvem de pó e erva. O próprio nome, Baiano, é um código, um símbolo do outsider. Aquele que veio de outras terras para supostamente desvirtuar as vidas dos pacatos moradores do aglomerado. Não tem passado identificável ou futuro louvável. É um entre tantos marcados para ser exterminado; dada sua posição de participante de uma estrutura de onde pode ser facilmente descartável, para justificar os meios usados para eliminá-lo e garantir a existência do grupo de elite que o fez.
Baiano é código, um símbolo do outsider
“Tropa de Elite” não é o primeiro filme a retratar essa realidade. O bandido sempre é executado no final, haja visto os inúmeros chefes do tráfico cujos corpos são mostrados como troféus. E cria, no imaginário do público, a certeza de que este é o papel da polícia. “Assalto ao Trem Pagador”, de Roberto Farias, narra o caso verídico do título, ocorrido no Rio de Janeiro, no início da década de 60. Os assaltantes fogem para o aglomerado com o saldo da ação e se engalfinham na divisão e utilização do botim. Num diálogo sintomático do racismo que permeia as relações sociais no Brasil, Tião Medonho, um dos líderes do assalto, mata seu rival e sentencia: ”Jogue ele no rio para que os peixes comam seus olhos azuis”. Foi a resposta dada às ofensas racistas do rival. O negro Tião Medonho acaba metralhado, após inclemente cerco imposto pela policia civil.
Ilustra uma prática tornada sofisticada ao longo das décadas, centrada no exemplo da Swat americana, série de grande sucesso na década de 70. Tem licença para matar.Tropa de Elite, o Bope existe para travar a batalha cotidiana que o Estado brasileiro engendrou e está perdendo. Criou e a estendeu para todos os quadrantes. Está refletida nas empresas de segurança e nas guaritas espalhadas pelos bairros chiques das metrópoles nacionais. Seus alvos imediatos são os traficantes e a população dos aglomerados, ainda que estas sejam vítimas, em meio à guerra civil não declarada que há anos domina a cena urbana nacional.
Em sua epopéia, José Padilha mostra as entranhas pútridas do aparelho de segurança. Sua estrutura interna, que deveria dar suporte às ações da guarnição, está carcomida. As viaturas estão quebradas, as peças são traficadas de um veículo ao outro sob ordens dos oficiais em disputa pelo espaço onde vendem proteção em troca de propina. E as estatísticas são manipuladas para mostrar a eficiência do comandante da guarnição, mais preocupado em receber dinheiro das casas de jogo do bicho.
Oficiais idealistas tentam pôr ordem no caos
Dois oficiais inexperientes, idealistas e honestos, Neto (Caio Junqueira) e Matias (André Ramiro), tentam pôr ordem nesse caos, com o resultado esperado. Acabam transferidos, silenciados, odiados por seus superiores. A olhá-los sem preconceito apenas o capitão Nascimento, justo ele, por estar à procura de um substituto. Eles terão de escapar ao esquema, sem deixar-se enredar também nas teias transversas dos aliados indiretos do tráfico: as organizações Não-Governamentais – Ongs. Delas participam jovens classe média e da burguesia, interessados em amortecer a cruel carga que se abate sobre a população dos aglomerados.
Mas, por estar no morro do Turano, prestando assistência social, a Ong administrada por Maria (Fernanda Machado) acaba por contribuir para a “boa imagem” de Baiano, chefe do tráfico, junto à comunidade. Em contrapartida, usa o produto por ele traficado. Nascimento, em uma de suas fúrias, acusa seus membros de contribuir, sustentar o tráfico de drogas e ser, por conseqüência, responsáveis pela morte dos jovens do aglomerado. Esta ligação entre a classe média e a própria burguesia com o tráfico, de forma indireta, é um dos achados dos autores do livro, em que se baseia “Tropa de Elite”.
A mídia sempre as separa dos traficantes. A parte podre, violenta e criminosa fica com os moradores dos aglomerados. Padilha e seus roteiristas, Rodrigo Pimentel e Bráulio Mantovani, escancaram a sórdida relação entre ambos. A classe média circula pelos pontos de droga nos bairros centrais e sobe o morro, a burguesia tem métodos mais sutis de acesso a ela. São elas que sustentam a cadeia de tráfico, do cultivo, produção e distribuição. Cada uma é vista de uma maneira. Os traficantes como marginais; integrantes do crime organizado; a classe média e a burguesia como dependentes químicos, eufemismo para classificar os que têm comportamento liberal, hedonista, dispostos a relaxar as tensões com muito pó e fumaça. E as conseqüências são corpos acumulados em tiroteio com as forças de segurança.
Classe média finge ignorar sua culpa
Nascimento ao incriminá-la atira sobre o espectador uma culpa sobre a qual não havia refletido. Vive longe dos aglomerados, em bairros com boa infra-estrutura. O que lhe chega sobre o tráfico vem na forma de imagens de noticiário da TV. Mas queira ou não, ele conhece alguém ou vê alguém integrando a cadeia do consumo e do tráfico de drogas. Uma acusação e tanto para quem faz vistas grossas às drogas ou acha que um baseado é apenas um cigarro de maconha. E uma carreira de cocaína só uma fileira de pó branco.
A seqüência em que Matias é acusado de traidor, durante o enterro de um membro da Ong, representa bem este espírito. O jovem ongueiro que o agride não se sente culpado pela morte do amigo, vê no policial a razão de este agora estar no caixão. A fúria com que Matias responde à agressão, xingando-o, chutando-o, atesta a denúncia de “Tropa de Elite” contra a hipocrisia, o cinismo, a impunidade. Os demais participantes do enterro ficam sem saber a razão daquele ódio. Um comportamento de quem não pode ignorar que ele tem razão.
Mesmo que, devido à sua reação, Matias perca o amor de Maria. Uma relação inter-racial, ele negro, ela branca. Estudantes de Direito, subindo na escala social, terminam se apaixonando. Ela, na Ong, ele a ajudá-la. A solidariedade de classe joga mais forte. Maria prefere ficar com o pessoal da Ong. Para Matias pouco importa. Como membro do Bope, sua missão é desmantelar, a relação promíscua entre o tráfico, a Ong e a classe média, sem levantar suspeita de corrupção. Esta imagem deriva da idéia de que seja integrado por oficiais e soldados incorruptíveis, a exemplo do capitão Nascimento.
Comandante articula apoio a candidato
Padilha fecha os vértices da carcomida estrutura de segurança com outro personagem, dos mais importantes: o político corrupto. Ao redor de uma mesa, regada à cerveja, o comandante da guarnição articula o financiamento da campanha do aliado a deputado. Falam em grana. Muita grama. E abrem espaço para a etapa decisiva do filme, a que confirma o Bope, como executor da tarefa de segurança do Estado. Tudo ocorrerá como acertado entre eles, se os agentes de segurança cumprir seu papel. A tarefa do Bope é garantir, em 1997, a segurança do Papa João Paulo II, em sua segunda viagem ao Brasil. Ele deve se hospedar na casa do Arcebispo do Rio de Janeiro, perto do morro do Turano.
Para o sucesso de sua estadia no país, o Bope tem de silenciar os moradores, os jovens e, principalmente, o tráfico. O custo dessa viagem é cobrado durante a difícil jornada de elucidação da podre estrutura do aparelho de segurança do Estado. “Durante a operação de quatro meses, o Bope matou cerca de 30 pessoas e prendeu 30, incluindo dois chefões do tráfico (…)”, disse Rodrigo Pimentel ao repórter Alexei Barrionuevo, em matéria publicada no jornal The New York Times (Vermelho, 14/10/07).
Padilha incorpora, nestas seqüências, clichês que não enfraquecem a narrativa, reforçada pela forte presença do capitão Nascimento. Ele guia seus soldados pelos becos e ruelas do morro, numa feroz caçada a Baiano. Um deles, Matias, está ali, chocado, louco à procura do assassino de seu amigo, Neto, amigo de infância. Um recurso dramatúrgico batido, usado em faroestes, filmes policiais, para aguçar o selvagem que habita o ser humano. Padilha o racionaliza. O centro da ação é Nascimento. Ele conduz Matias. Tortura um adolescente para tirar dele a informação preciosa. Matias o acompanha atônito com sua ferocidade.
Uma ferocidade que domina o filme do início ao fim. Nascimento a absorve de tal modo que o espectador o vê, mesmo quando não está em cena. Ele não é, no entanto, o herói, aquele que se desvia do lado bom da sociedade por ter uma missão a cumprir. Nascimento não, ele encarna o mal absoluto por ter convicção de que esta é a única saída para combater o mal maior: o traficante, o criminoso, o corrupto. O demonstra durante o treinamento dos novos oficiais que integrarão o Bope. Submete o capitão Fábio ((Milhem Cortaz) a uma humilhação brutal, obrigando-o a comer arroz espalhado pela terra e depois buscar o bote largado no pântano. Fábio entra em crise de choro, arrasado pelo tratamento.
O demais oficiais treinados pelo capitão Nascimento procuram suportar o esforço físico e a submissão humilhante. O que só pode gerar uma fera, ao invés de um ser humano equilibrado em condições de discernir o certo do errado. O que é trabalho policial e o que é ação de guerra. E saiba que o acusado ou o criminoso precisa ser tratado segundo as leis democráticas de direito e preceitos humanos. Do contrário, é a barbárie pura e simples.
Representação da violência e da corrupção gerou acusação de fascismo
Talvez derive daí as acusações de que “Tropa de Elite” seja um filme fascista. O fascismo é a representação do Estado forte, antidemocrático, belicista, sustentado pelo capital monopolista, a burguesia, a classe média e o aparelho de segurança. Usa a violência para manter as elites no poder e glorifica a família, a nação, a propriedade e a tradição. Tem como fachada o uso de grandes espaços para manifestação popular de seu poderio. Pegar apenas um de seus aspectos e generalizar é por demais arriscado. O que se faz em “Tropa de Elite” é denunciar a podridão do Estado nacional, burguês, brasileiro, a partir do uso sistemático da violência pelo aparelho de segurança, simbolizado pelo Bope. Seus métodos são usuais, uma vez que treina seus membros para fazer uso dela, sem restrição alguma.
Uma prática a que já se acostumaram suspeitos, detidos, criminosos, corruptos, submetidos a humilhações, pau-de-arara, tortura, tapas e pontapés. Começa pelos gritos e ameaças dos policiais que abordam os cidadãos nas ruas para pedir documentos e termina nas delegacias, em salas estreitas, úmidas e reacendendo a sangue. Diante deles, o cidadão, suspeito, não tem direito algum. Inexistem direitos humanos, Constituição Federal, senso de dignidade. Só a urgência de atirar sobre ele toda a frustração do baixo salário, da incapacidade de relacionar-se com o próximo e de ter prazer na relação a dois. O capitão Fábio, ao ser chamado para combater o tráfico, vocifera: “Com os quinhentos reais que ganho no fim do mês, pra quê vou subir o morro?”. Acha melhor disputar comerciantes que lhe pagam propina com o capitão Oliveira, seu rival no achaque da pequena burguesia, a cumprir sua tarefa. “É preciso, tenho família!”, se justifica sem cerimônia.
O espectador fica atônito, diante da enxurrada de problemas, conflitos e denuncias que Padilha despeja num encadeado sobre ele. Não lhe dá tempo de respirar. Quando o faz é rindo, se deliciando com o escancarar de situações a que ele se acostumou a comentar em voz baixa. O clima denso do filme, criado pela fotografia granulada, esverdeada, cheia de sombras, de Lula de Carvalho, o leva para o meio da ação. Os raps que a pontuam, acentuam as falas, os tiroteios e o ritmo vertiginoso com que ele se desenvolve. E os atores não destoam, são econômicos em seus gestos, salvo por ele, Nascimento, que a todos se impõe.
Violência do filme não é gratuita
A violência vista ao longo da trama surge de situações que a justificam. Não é coreógrafada como em “Kill Bill 1 e 2”, de Quentin Tarantino. Efeito que só reforça a estética da violência, configurada em belas, porém inócuas cenas. Diferente de “Exilados”, do chinês Johnny Too, sobre o acerto de contas entre dois grupos de mafiosos rivais, em Macao, antiga colônia portuguesa. Nos tiroteios, os personagens dançam, num balé mortal, como se bala de aço não provocasse dor e morte. Too se redime ao transformar uma seqüência de cirurgia para retirar o projétil, numa sessão de realidade cortante. Vê-se o buraco, o bisturi e depois a pinça retirando a bala. O ferido urra. E, no final, há o acerto de contas, em grande estilo. Um grande filme também sobre como a polícia ignora o crime organizado, deixando suas ações correrem soltas.
Em “Tropa de Elite” a montagem enxuta, a ação centrada no confronto entre policiais e traficantes escapam à violência gratuita. Apenas estetizante. Há dor e indignação. Está centrada na ideologia do Estado neoliberal, submersa, cheia de meios tons. Surge da ostentação da burguesia, com seus condomínios fechados, jóias caras e estilo de vida hollywoodiano. Diante da miséria imperante, agride tanto quanto os gritos e socos do capitão Nascimento. Daí a reação do aparelho de segurança, pego em sua prática sistemática. Padilha desnuda as teias que o envolve. Como estão ligadas a vários segmentos sociais, seu filme desencadeou processos incontroláveis, com a efetiva contribuição da pirataria.
Por agradável ironia, os milhões de pontos de venda de DVDs e CDs piratas o transformaram num hit. Fenômeno da economia alternativa, a pirataria atende a uma faixa dos que não integram o mercado de produtos culturais. Ao ter o produto a seu alcance, eles o consomem. Desta forma podem formar sua própria visão dos conflitos sociais, dos quais participam, mas não têm como refletir sobre eles. “Tropa de Elite” lhes permite entender os diversos vértices do processo de violência urbana, centrado na ação do Bope, em particular do Capitão Nascimento. Ele age contra os traficantes, mas também contra a corrupção na polícia. O modo como trata o capitão Fábio bem o demonstra.Transmite a imagem de imparcialidade. E, assim, o consumidor de baixa renda entra no circuito de produto cultural do qual foi excluído pelo alto preço dos DVDs e CDs.
Sistema capitalista cria o mercado alternativo
O sistema capitalista cria vários nichos de mercado para atender às faixas desprivilegiadas. Dentre eles as feiras livres, as bancas de camelôs e os shoppings populares. Ali, de acordo com seu nível de renda, elas podem adquirir os produtos que, em outras circunstâncias, não conseguiriam. Quem atende hoje a esta demanda é a estrutura de produtos piratas. De um lado, o Estado a combate, de outro percebe sua “validade” para evitar a explosão social. As majors da produção cinematográfica não analisam as possibilidades desse mercado. Querem manter seus lucros, hoje centralizados numa multiplicidade de veículos: cinema, televisão aberta, canais fechados, DVDs, internet e, até, celular. O retorno de sua produção sai deste múltiplo mercado. Ganhou, agora, mais um espaço para seu marketing: as bancas da pirataria. E não apenas as bancas de pirataria.
A movimentação gerada pelo mercado alternativo mostrou que há uma faixa de consumidor não atendido. Com valores menores, distribuição racional, ela pode ser atendida, gerar renda e, de forma legal, emprego. Com os preços dos DVDs hoje no país, cada residência tem o seu aparelho de DVD. Quem o abastece de produtos culturais são as bancas alternativas. Quando se fala em “alternativo” não é eufemismo ou forma de burlar a chamada pirataria, pois muitas bancas vendem produtos trazidos de forma legal ou produzidas em forma de cooperativa ou em casa. Se o alternativo pode vender o DVD por R$ 5,00, a produtora de filmes, com tantas opções de mercado, também não o pode?
Polêmica da pirataria pode apresentar soluções viáveis
Esta é uma polêmica agradável para o cinema nacional. Envolve toda a sociedade. Abre espaço para outras produções de maior envergadura. A validade de “Tropa de Elite” está, também, no leque que abre. Mostra que o profissionalismo chegou definitivamente neste segmento. O diretor, embora seu nome apareça em destaque, divide com outros profissionais a produção do filme. Cada um cumpriu a sua parte e o resultado está na tela. “Tropa de Elite”, olhado com atenção não é uma obra-prima, dessas que abrem caminho para uma nova estética cinematográfica. Muitos de seus elementos estão presentes em outros filmes. Seu antecessor imediato é “Cidade de Deus”, embora este tenha outra proposta. E mostre o outro vértice de sua história, a do crime organizado num aglomerado, também do Rio de janeiro.
Mas tem uma força que emana do ordenamento de seus elementos internos de cena. Os personagens se movem, incentivados por razões compreensíveis. Podem ser identificados no leque dos já vistos pelo público. Ele conhece o idealista, o rancoroso, o corrupto, o poderoso e o herói, no caso, anti-herói. E o cenário é o de sua cidade, mesmo que retrate o Rio de Janeiro. O fato de Padilha ser documentarista em muito ajudou nesta composição. Pôde articular as cenas sem se afastar do real. Tem o cheiro de Brasil, o som que se ouve é o das ruas. Seu conteúdo reflete o cotidiano, que aprisiona e faz o espectador querer se distanciar o mais rápido possível dele. E percebe no final que está sentado sobre um barril de pólvora.
Tropa de Elite. Brasil. Drama-policial. 2007. 118 minutos. Direção: José Padilha. Elenco: Wagner Moura, Caio Junqueira, Fernanda Machado, André Ramiro, Milhen Cortaz.