“Um Crime de Mestre”: Retrato da arrogância burguesa

A arrogância de um burguês e de um promotor de justiça que se enfrentam para provar a si próprios e aos outros que são superiores, são o tema central do filme do diretor americano Gregory Hoblit.

A arrogância como centro do crime perfeito. Não poderia haver tema mais inusitado para um filme de suspense. Ainda mais se a ele for acrescentado o batido duelo de tribunal. Entre a busca de uma  abordagem original e as tentativas de driblar os clichês pode sobrar alguma coisa. Principalmente se a eles forem acrescentados dois personagens igualmente arrogantes que, de tão confiantes em sua inteligência, não acreditam que o outro vá desmontar suas tramas e artimanhas. O embate entre eles é que fará a diferença neste “Um Crime de Mestre”, do diretor norte-americano Gregory Hoblit. De um lado está o burguês Theodore Crawford (Anthony Hopkins) e de outro o jovem advogado Wiilly Beachum(Ryan Gosling); ambos lutam para mostrar a si próprios, à polícia, ao juiz e aos jurados o quanto são geniais.
                


 


O motivo do embate é um crime cometido por Crawford em sua mansão e a conseqüente designação de Willy como promotor, para incriminá-lo. No caso, vale a máxima, o Estado tem de provar que o réu é o culpado e colocá-lo na cadeia. Ocorre que Crawford é cheio de manias, de truques, inclusive assume a sua própria defesa para espanto  de Willy. Fato que destoa do comum nos tribunais, embora não seja inédito. E se constitui no fator surpresa para o jovem advogado que, por acreditar demais em sua capacidade, não se prepara o suficiente para o caso e termina enredado na teia montada pelo burguês, de sorriso zombeteiro, sarcástico, arrogante. Quando percebe está a nocaute, não tem como se safar, ainda mais que dependia deste caso para manter o emprego na promotoria e ser promovido para outro com salário astronômico.
               



Os roteiristas Daniel Pyne e Glenn Gers, com base numa história do primeiro, permitem a Hoblit apontar fragilidade dos contendores. Willy tem a juventude como atenuante para suas investidas, com a vantagem de quem ganhou 97% dos casos em que esteve na acusação. Está a ponto de ser temido pelos advogados de defesa. Até ser-lhe oposto um velho burguês, marido da bela Jennifer Crawford (Embeth Davidtz), que tem um caso com alguém que deveria protegê-la ao invés de com ela se envolver. Então, ele, Willy não tem saída senão defrontar-se com um homem que, ao vê-lo, o escolhe como contendor por ver nele imaturidade, autoconfiança e, sobretudo, alguém que não poderia enfrentá-lo. O que nele é tido como virtude, Crawford vê como fragilidade. Enquanto que, para Willie, o velho burguês deve ter errado em algum movimento na hora do crime e que terminará por pegá-lo.
              


 


Os dois se enfrentam no tribunal não apenas para provar que estão certos, mas para flagrar o outro num movimento em falso. Em outros filmes de suspense, notadamente os de tribunais, as testemunhas são o principal centro da atenção, são personagens decaídos, vivendo em situações limite. Em “Um Crime de Mestre”, elas são figuras secundárias, o que dizem não influi na condução do julgamento. O vale ali é o que os contendores questionam. Crawford não se presta a interrogatório, não faz perguntas. Acha-se na condição de dispensá-las, pois seu álibi é perfeito. Willy, por seu turno, aguarda o instante em que terá a prova cabal, aquela que irá desmascarar o réu Crawford. E no meio, unindo-os inexiste a figura da mulher-fatal, da causadora do incidente que provocou o crime. As mulheres em “Um Crime de Mestre” são  figurações, salvo por Nikkie Gardner (Rosamund Pike), supervisora de Willie na promotoria, cuja importância é secundária e não faz o filme andar.
               



Despido dos personagens clássicos do filme-noir e do filme de suspense, sem estar calcado na sordidez, na decadência, nas sombras que povoam estes tipos de filmes, “Um Crime de Mestre” se vale de cenários deslumbrantes, de esculturas circulares, douradas, de movimentos de câmera cronometrados, para atrair o público. Os grandes planos destacam gestos, detalhes, sem demorar-se neles. São acessórios importantes para chamar atenção do público de algo que, mais à frente, serão relevantes para elucidação do caso. Ainda mais que Hoblit encena um crime supostamente perfeito, cometido por uma “mente superior”, acostumada a grandes lances. Crawford é provocador, cínico, capaz de tentar passar o promotor para o seu lado, à custa de dinheiro, de suborno. E Willy debocha de sua proposta, pois se acha acima da corrupção.
               



Interessante é que a ação não é ditada por lances grandiosos, violência desmedida, com os personagens se enfrentando a todo instante: tudo é medido, em detalhes, mínimos, para se chegar ao desfecho. O enfrentamento se dá na medida em que ambos, réu e promotor, acreditam em sua capacidade de domar o outro, levando-o a contradições inesperadas. Quando isto não acontece, Willy se vê desmoralizado. E o filme cai na vale comum, de o herói tentar sua superação, sua volta por cima para compensar a queda adiante. Neste ponto Pyne, Gers e Hoblit não conseguem manter a originalidade: Willy é o herói e como tal passa a se comportar. È o lugar comum dos roteiros hollywoodianos em que, em certo momento da trama, o herói cai nas garras do bandido e tem de se superar para domar a besta-ferra.
                



Esmagado por Crawford, Willy se vê diante de um dilema: aceitar a derrota para seu contendor ou tentar encontrar algo que o incrimine. Passa ser previsível a forma como faz porque o filme, nesta altura, deixou de ser entre duas pessoas arrogantes para ser um embate entre o bandido e o herói. E o público espera que esta sina se cumpra, com todo maniqueísmo exigido para tal. São os vinte minutos finais que derrapam. A bela fotografia de Kramer Mongenthau com seus tons azulados, de sombras bem delineadas, contribui para o clima destes instantes. Mesmo que se perceba que o prólogo (que define o que vem depois, no desfecho, com uma elipse, por si banal) vem apenas para cumprir o papel do triunfo do bem sobre o mal e o crime perfeito se esboroe.
                



No entanto, não é destituída de interesse a forma como ele se dá. Tem muito de inesperado, porque o público não se dá conta do truque engendrado por Hoblit e seus roteiristas. Tudo havia se passado diante dele, está muito claro e não há como descobrir o que ocorrera para Crawford ter tanta certeza de que ninguém o levará às grades. De novo, os detalhes, a trama urdida pela mente do velho burguês, casado com uma mulher bem mais jovem do que ele. E saí-se do cinema com o quebra-cabeça ainda por montar. Diante das seqüências de violência extrema da maioria dos filmes, “Um Crime de Mestre” cumpre seu papel de divertir e nada mais do que isso. É um entretenimento ao estilo de Hollywood, sofisticado que transmite o clima reinante na mansão de Crawford, em que só de ver o ambiente e a decoração, o público se convence de que seu morador é rico.
               



O personagem não precisa dizer que é milionário, seus gestos, seu comportamento, sua fala o transmite. E tampouco, Willy, promotor em ascensão, não necessita dizer que está bem de vida, basta seu terno bem cortado, sua sala e o ambiente em que trabalha para provar isto. E também os demais cenários em que ambos transitam dão a idéia de riqueza, de elevado nível social. Os diálogos, por seu turno, indicam conhecimento do que está em jogo – todos têm muito a perder. É muito bonito de se ver e ajuda a passar duas horas na sala escura. Só que se trata de cinema voltado para a classe média e a burguesia. São eles que lotam as salas de exibição, porque são conhecedores daqueles ambientes. Aos demais espectadores resta apenas o “deslumbre” com a ostentação da riqueza.
                 



No final, ao deixar o cinema, classe média e burguesia  terão exorcizados alguns demônios, mas não todos. Muitos continuarão a cultivá-los, lutando contra aqueles que Crawford cultua até ver-se frente a frente com alguém que também acredita estar acima dos pobres mortais. Afinal, a arrogância não é apenas uma maneira de ver os outros, mas também um jeito de escapar, de ver-se inteiramente no espelho.


 



“Um Crime de Mestre”. Suspense. EUA. 2007. Diretor de fotografia: Kramer Morgentahu. Roteiro: Daniel Pyne, Glenn Gers, baseado em história de Pyne. Direção: Gregory Hoblit. Elenco: Anthonny Hopkins, Ryan Gosling, Davi Strathairn, Rosamunde Pike.

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