Uma bomba nuclear sobre o Recife e Olinda

E como a bomba caiu no chão de Água Fria, em plena Avenida Beberibe, a destruição dos lugares queridos foi mais apocalíptica

O simulador de bomba nuclear do site NuclearSecrecy ganhou fama mundial depois do lançamento do filme Oppenheimer. A ferramenta calcula qual seria o estrago de uma explosão semelhante em qualquer lugar do mundo.

Então eu fui no site que simula a explosão em outras cidades. Lá digitei Recife.

Pra quê? Uma bomba Castle Brave, dos Estados Unidos, de 15.000 kilotons foi lançada no bairro de Água Fria, no Recife.

Seus efeitos atingiriam do Cabo de Santo Agostinho a Itamaracá, detonando o Recife, Olinda, pessoas e lugares mais queridos do subúrbio onde nasci.

Raio da bola de fogo de 3,71 km ( 43,2 km²). Se a bomba tocar o solo, a quantidade de precipitação radioativa aumenta significativamente. Qualquer coisa dentro da bola de fogo é efetivamente vaporizada. edifícios de concreto fortemente construídos são severamente danificados ou demolidos; mortes se aproximam de 100%. A maioria dos edifícios residenciais desaba, as lesões são universais e as fatalidades são generalizadas. As chances de um incêndio começar em danos comerciais e residenciais são altas, e os edifícios danificados correm alto risco de espalhar o fogo.

De imediato, 52.230 mortes e 1,070 feridos “estimados”. Muito estimados. Mas esses são as vítimas de imediato. As que morrerão por efeito ao longo de meses serão bem muito maiores.

Lugares amados do Recife sumiriam. A linda rua do Bom Jesus mais a Kahal Zur Israel, a primeira sinagoga das Américas, e a estátua do cronista Antônio Maria viriam abaixo. E lá se foi o Mercado da Boa Vista, aquele em que todos os dias eram de sol, em que não se conseguia imaginar um minuto sequer de tempo sombrio, de inverno pesado, de toró brabo ou de noite soturna. Partiu, partiu-se.

E o Bar Savoy? Aquele que ficava na Avenida Guararapes, número 147. O que foi o primeiro bar do Recife no afeto, o primeiro sem segundo. Certo que ele já estava morto antes da bomba. Mas precisava matar o lugar onde ficava? A Igreja de São Pedro dos Clérigos, então, subiu numa nuvem. Ela irradiava uma luz no Pátio de São Pedro de outra maneira. Nos anos sombrios da ditadura, Soledad Barrett fala em “Soledad no Recife” no trecho: “É tão bonita esta praça! Eu passaria aqui o resto de minha vida. Que igreja linda”. Pedra seculares viraram pó. Que infelicidade é essa?  O pintor Cícero Dias já havia falado antes em forma poética: “Eu vi o mundo… ele começava no Recife” Mas a sua felicidade não imaginou que terminasse assim.

E como a bomba caiu no chão de Água Fria, em plena Avenida Beberibe, a destruição dos lugares queridos foi mais apocalíptica.

O Colégio Professor Alfredo Freyre, meu Deus, nem sombra do que existiu. O próprio sol se escondeu porque o dia da sua vida se apagou da história.

Para a primeira geração de alunos de 1962, o Alfredo Freyre sempre seria o Colégio. Ele foi O colégio. Se houvesse em algum país uma academia de notáveis anônimos, de homens e mulheres que ninguém conhece, mas que viveram um vida exemplar, digna de uma antologia de heróis sem rostos gravados, haveria um educandário semelhante ao Colégio Professor Alfredo Freyre. Para quê? Agora, pra nada agora.

E o Mercado Público de Água Fria?! O que seria dele? Para onde foi o cheiro denso, perfumado, das noites em frente ao mercado? Ali, o abacaxi trescalava, amadurecia no sereno. Era um vento que soprava no calor e trazia para a infância desejos de sexo e ternura impossíveis.

Para mim, de um ponto de vista íntimo, a mais linda é a Rua Japaranduba. Ela, tão simples e desprovida de tudo, sem casarões e sem mais antiga historia, corre curta em metros vizinha ao Mercado Público de Água Fria. Desde os anos 50, havia em seu pequeno território a paisagem de vendedores ambulantes. Onde estão Cecília, Cristina, irmãs do mudo da leiteria da Rua Japaranduba? Os meninos, ali, amavam as moças grandes. Nós tínhamos a triste sina de amar as namoradas que já tinham namorados.

E por falar em Japaranduba, a rua foi arrasada. Nem sinal de pó  da casa número 49, onde nasci. Nada. Eram dois cômodos feitos para o comércio, que habitávamos mais sonho que corpo. Na frente, o mercado público. Ao redor, uma série de pontos de pequenos comerciantes, que não tiveram o privilégio de se instalar dentro do mercado. Tudo sumiu.

E de Olinda? Ah, além do fim de Jardim Atlântico, cujo canal viraria rio, que virou ausência de tudo, Olinda nem existe mais como  lugar de sítio histórico. A-hstórico, à margem do que foi. Alto da Sé? Nem Alto nem Sé. Ali, onde se via o mar azul e o cais do porto lá no Recife, fiou impossível falar como antes, “o meu coração está lá e cá em dois movimentos”. Onde a luz do céu descia para o mar, e nos sentíamos em uma ilha privilegiada, entre o mar, o céu e a humanidade perto. Mas que humanidade existe onde explode a bomba nuclear?

O Bar do Peneira desapareceu. Nos Quatro Cantos de Olinda, o seu bar que possuía desenhos de J. Borges nas paredes e pintores de talento que frequentam suas mesas e quadros à vista de todos, onde? Aquele bar solar, de domingo, mesmo que fosse outro dia e à noite, para onde foi o Bar de Peneira, que entrou no meu romance “A mais longa duração da juventude”? Onde estará o violonista e compositor Talis Ribeiro, com quem fiz parceria na Canção do Amanhã? De que adiantaram os versos “Sempre teremos novos amores / Lindas vidas virão outras cores”? Amor, arte, sentimento, inteligência, sensibilidade, engenho e história empurrados para o nada.

Dirá uma lenda dos sobreviventes de outro tempo que o Peneira, torcedor doente do Sport Club do Recife, pôs a cabeça para fora entre os escombros. E perguntará no meio de toda a desgraça:

– O Sport ganhou o jogo na Ilha?

Os mutilados, sangrando, a se contorcer de dor, responderão:

– Peneira, a Ilha do Retiro não existe mais. Nem a grama ficou. 

E Peneira:

– Ah, foi? Então ganhamos. O adversário desistiu de jogar.    

No fim, talvez, só algum humor nos salva. Se houver salvação.  

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