Uma tarde com Amaury Menezes

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Cheguei no penúltimo dia da mostra que reúne a diversidade do trabalho pictórico de Amaury Menezes. Desfrutei de relativa solidão. Era fim de tarde com chuva e os visitantes já tinham se esgarçado. Parecia uma ilha de tempo, um écran para o desfile gestual do pintor. Amaury é mestre. Não sucumbe ao apelo fácil ou esotérico das vanguardas. Carrega a serenidade plástica do contemporâneo, como se sempre estivesse permeável ao novo, firme na sabedoria da experiência. Caminhei em silêncio entre momentos criativos que perpassam meio século. Quando se trata de Amaury Menezes não fica bem a sinalizar sua trajetória em fases. O artista é um peregrino aprendiz da luz e da forma, pastor de cores e ritmos. Sua temática é a vida presente, escorrendo lassa ou em vertigem. Sobre as coisas simples depõe seu olhar de inocências. É preciso parar para contemplar as cenas cotidianas das bancas de frutas, de revistas, da paisagem goianiense, onde a testemunha dá lugar ao convivente. O artista vê por dentro e aí a pintura também comunica. É apenas metafórica a neutralidade. A sutileza espraiada da aquarela liquefaz instantes da vida em celebrações fugazes. É um ir passando para sempre marcado por essas cenas, salvas sem retórica em suas ocorrentes permanências. Amaury não é enfático, não seqüestra nossa atenção, não impõe. Vai desenhando o presente, o que ainda estará, quando vier a sombra unificadora. Faltam pessoas nas bancas de frutas, faltam rostos nos grupos ocasionais, faltam passageiros nos continentes marinhos, mas não se pode negar a emergência de passos, gestos, acenos reveladores da ocupação e assenhoramento daqueles espaços de fosforescência humana. Os fregueses das frutas ainda não chegaram, a motocicleta paciente espera à porta do Café Central, tudo vai invocando uma presença temporariamente afastada. A cadeira de praia no crepúsculo guarda a ondulação do corpo demorado. A toalha vermelha sobre a cadeira no jardim, ou um canto de banco oferecido a uma ausência. A tudo veste de natural liberdade e sereno rigor. Sua estética é uma pedagogia da cor, um olhar que ensina a não perder o momento da instauração apoteótica da luz. A dança e a contradança dos esfumados e os dourados verdes álacres servem á envolvência, à coexistência de um mundo vário. Estampa a paisagem no horizonte, desdobrada em movimento, como na série ferroviária, onde os resquícios rasgados dos casebres apontam roteiros para além de curvas. A pintura também fala e seu vocabulário não oferece estratagemas. A metáfora é limpa. Eleva o flagrante em ícone decifrável, lugar para onde sempre se pode voltar a olhar, a interessar, a fruir. A captação serena do temporal faz do artista um viajante ao revés. Sentado à beira do cais, à beira da estrada, á margem do rio, por ele passam todos os destinos. Simplesmente fixa em matéria móvel rostos, objetos, gestos, a tudo concedendo a dignidade máxima de acolher a incidência da luz e do olhar. Quase me esqueci navegando naquele tempo resumido. Tempo que Amaury soube conter sem aprisionar, como se fosse levando na manhã solar de Goiânia um vôo de borboleta. Isso comove o cronista e incita o flaneur. Quase me ia esquecendo do outro lado da vida.

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