Unidade Básica – “Carol e Joana”

O Dia da Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe ocorre todo 28 de setembro, desde 1990, e chama atenção para a luta de diversas organizações feministas contra a histórica opressão e violência às mulheres

Série "Unidade Báscia" I Foto: Reprodução

O Dia da Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe ocorre todo 28 de setembro, desde 1990, data definida no 5º Encontro Feminista Latino-americano (EFLAC), ocorrido na Argentina. Ela assinala e chama atenção para uma luta de longa duração de diversas organizações feministas contra a histórica opressão e violência às mulheres, notadamente as pobres, negras e periféricas. A luta feminista busca mostrar que a criminalização não evita que os abortos aconteçam; pelo contrário, apenas camufla um problema de saúde pública e que afeta principalmente mulheres negras e de baixa renda. Elas utilizam métodos agressivos de abortamento que colocam suas vidas em risco (por sangramento grave ou infecções), enquanto mulheres com condições financeiras pagam para realizar o procedimento de modo seguro, protegido, em clínicas com equipamentos e equipes especializadas.

O 7º episódio da segunda temporada de Unidade Básica, série do canal Universal de TV a cabo (hoje também disponível no streaming da Globoplay), com o título Carol e Joana, retrata esse dilema sobre o direito ou não de as mulheres serem mães e a prática do aborto que é marca na vida de mais de 500 mil mulheres brasileiras que fazem de modo clandestino o procedimento. (Dados do site exame).

A série brasileira, que terminou sua segunda temporada em 2020, é protagonizada por Ana Petta (“Dra. Laura”) idealizadora do projeto (com assessoria de sua irmã médica Helena Petta), Caco Ciocler (“Dr. Paulo”), Carlota Joaquina (“Beth”), mostrando a rotina e os desafios de médicos(as), enfermeiros(as) e agentes comunitários trabalhando em Atenção Primária num postinho de saúde da periferia. O pessoal de Saúde tem que lidar com os problemas médicos, mas também frequentemente se envolvem com outros aspectos da vida dos pacientes. Ao menos nesse episódio citado, a gestora do posto, Cilene (Fabiana Gugli), contrapõe à Dra. Laura e ao Dr. Paulo uma atitude fria e insensível quanto a como enfrentar duas situações opostas em relação à gestação – uma moça que quer abortar e outra que, embora muito pobre, faz questão de levar adiante sua gravidez. A série tem por cenário um bairro periférico de São Paulo, mas a realidade ali descrita é certamente – em variáveis tons aflitivos ou muito angustiantes – vivenciada nos 5.570 municípios brasileiros.

Esse episódio registra duas situações de jovens mulheres que sofrem com a questão da possível maternidade. Joana, negra, muito pobre, cuida de quatro irmãos menores e, descobrindo-se grávida, sabendo-se sem condições financeiras nem o pai (que sumiu), tenta abortar, mas acaba somente conseguindo provocar grave hemorragia uterina, que a leva ao postinho, onde é atendida pela Dra. Laura. O sangramento é contido, mas Joana mantém a firme convicção de interromper a gravidez, e suplica à médica que a ajude no intento. Laura entre num dilema – o lado ético-profissional e legal, pelo qual não pode fazer ou auxiliar num procedimento ainda hoje considerado ilegal (exceto em circunstâncias muito restritas) e o lado médico humano, que sabe pelo que passa sua paciente e se preocupa com nova situação de risco de morte de Joana. A médica angustia-se com o sofrimento de Joana, diz que ela tem direito de decidir sobre seu corpo e ainda revela a Paulo que ela mesma, Laura, já realizara aborto quando estudante, mas numa clínica confiável. Outro ingrediente no impasse de Laura é que a mãe de Joana, muito religiosa, é terminantemente contra o aborto e ameaça a médica de que a denunciará se ajudar a filha na interrupção da gravidez.

Cena do episódio “Carol e Joana” I Foto: Reprodução

Em contraste, Carol, usuária de drogas, em situação de rua, deseja muito ter seu bebê, como um impulso para mudar, ao lado do companheiro, e partir para outro modo de vida. Os três filhos anteriores foram pela justiça retirados da guarda dela, com o motivo de que, na condição de drogadita, não poderia cuidar dessas crianças. O mesmo se coloca agora, em sua quarta gestação. Carol e seu companheiro querem esse filho, no que são apoiados pelo médico sensível e pela enfermeira Beth, demonstrando humanismo e solidariedade. Ambos conseguem junto a gerente da Unidade permissão para dialogar com o juiz para que o bebê fique com Carol. Cotidianamente, mulheres em situação de rua ou pelo uso de substâncias psicoativas sofrem esse arbítrio do Estado, na medida em que não há, ou há poucos, programas de atendimento que auxiliem a mudar a situação. Geralmente a mulher usuária de drogas está representada como alguém que oferece perigo e que não tem controle de si, com base em elementos pautados por normas sociais que delimitam determinado comportamento padrão uniformemente para todas as mulheres.

O tema da série é polêmico, fator de ansiedade e agonia para muitas meninas e mulheres. O aborto é parte da existência de muitas mulheres brasileiras, seja quando decorre de abusos sexuais, estupro ou mesmo gravidez indesejada. O episódio de 25 minutos passa rápido mas dá um grande alento e esperança na constatação da ligação sentimental e senso de justiça de muitos profissionais de saúde. São trabalhadores que criam vínculos com a comunidade atendida – um dos fundamentos no conceito de Atenção Primária/Saúde da Família. Nesse episódio, por algumas vezes os profissionais argumentam a importância do Consultório da Rua, instituído pela Política Nacional de Atenção Básica, em 2011, no governo Dilma Roussef, para atendimento à população em situação de rua com a finalidade de ofertar atenção integral à saúde para esse grupo populacional.

No continente latino-americano, o aborto legal é garantido sem restrições apenas em seis países: Cuba, Uruguai, Guiana, Guiana Francesa, Porto Rico; recentemente na Argentina foi aprovada a descriminalização do aborto até a 14a. semana de gestação. Ainda hás territórios específicos, como no México, onde o procedimento, sob cobertura legal, está autorizado na capital do país e no estado de Oaxaca.

No Brasil, milhares de mulheres morrem ou ficam mutiladas pela prática do aborto. A Organização Mundial da Saúde reconhece o aborto como um serviço de saúde essencial desde 2012.

Foto: Fernando Aragão/Agência Brasil

No artigo 128 do Decreto Lei nº 2848, de 07 de dezembro de 1940, define-se que o aborto é considerado legal quando a gravidez é resultado de abuso sexual ou põe em risco a saúde da mulher. Além disso, em 2012, um julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu que é permitido interromper a gestação quando se verifica que o feto é anencéfalo. A gestante que estiver em um desses três casos tem direito de realizar gratuitamente o aborto legal por meio do SUS (Sistema Único de Saúde).

Em 2019, o SUS registrou, por dia, uma média de cinco internações de crianças de 10 a 14 anos por aborto (tanto os abortos previstos em lei quanto os espontâneos). Em um mês, são 150 crianças internadas por aborto, enquanto a taxa mundial é estimada em 46 nascimentos para cada mil meninas entre 15 e 19 anos; no Brasil são 68,4 nascimentos para cada mil jovens.

Há um estudo da Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos (RFS) sobre meninas menores de 14 anos que tiveram filhos nascidos vivos no Paraná nos últimos 10 anos, caracterizando a exposição dessas meninas à atividade sexual, configurando assim o crime de estupro de vulnerável, independentemente de ter havido ou não o consentimento da menina (artigo 217-A, Lei 12.015/2009). Esse estudo foi apresentado ao Conselho dos Direitos da Mulher do Paraná, ao Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente e a conselhos profissionais com o pedido urgente de medidas preventivas dessa realidade dramática vivida por tantas crianças e seus bebês. Trata-se de violência e de crime, prejudicando o desenvolvimento psicológico e autonomia sexual da menor de idade, além do risco grave à sua saúde devido à gestação precoce num corpo ainda em formação, incluindo problemas de ordem emocional, de abandono escolar e outros, conforme destaca o estudo da RFS publicado no site do Conselho Estadual de Direitos da Mulher.

Aproximadamente 80% das vítimas de violência sexual são mulheres, e mais de 50% tem menos de 13 anos. Segundo dados de 2018 da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), ligada à Organização Mundial da Saúde (OMS), a gravidez na adolescência é um grave problema de saúde pública no Brasil. O caso recente da menina estuprada por um tio, que enfrentou vários obstáculos inclusive do Estado, por meio da ministra Damares, que deveria defendê-la, é emblemático. Ela conseguiu o direito de abortar, mesmo assim em outro estado brasileiro que não o seu de origem – mais uma mostra da barbárie instalada no Brasil de Bolsonaro.

Segundo análise de Camurça (2021) os países da nossa região estão marcados pelo processo colonial com hegemonia da Igreja Católica, com normas de dominação dos corpos das mulheres e da população indígena e negra, denotando o traço fortemente patriarcal do Estado brasileiro.

Foto: Getty Images

Uma das lutas centrais para a retomada da democracia no Brasil está na defesa do SUS, contra a EC86. O acesso de todas e todos a uma politica de saúde com serviços de planejamento familiar, a exames pré-natais regulares e de qualidade, a serviços eficazes de emergência obstétrica, bem como atendimento competente para tratar complicações decorrentes de aborto provocado ou espontâneo – estes elementos devem compor a pauta de um novo projeto nacional de desenvolvimento.

Neste 28 de setembro de 2021, é preciso reafirmar a superação da “natureza” reprodutora posta sobre a mulher e respeitar seu desejo e sua autonomia. Cumprir o que legisla a Constituição de 1988 do planejamento familiar, que preconiza o direito de decisão, cabendo ao Estado prover meios para o cumprimento do direito. Assim também o direito ao aborto, uma luta árdua neste período obscurantista de intensa investida contra os direitos das mulheres, que ignora a laicidade do Estado.

As duas temporadas de “Unidade Básica” causaram repercussão ampla, com cobertura de imprensa no Brasil e no exterior. Ela expõe as principais mazelas da Saúde nacional, abordados de maneira realista, dramática, envolvente, humanista. E defendendo esse gigantesco patrimônio que é o SUS. Merece ser assistida e reassistida por todos que querem conhecer melhor a realidade de vida da maioria esquecida do povo brasileiro. Aguardemos a 3a. Temporada!

  • Unidade Básica
  • Série da produtora Gullane (duas temporadas, em 2015 e 2020)
  • Disponível no canal Universal da TV a cabo e no serviço de streaming Globoplay
  • Elenco: Ana Petta, Caco Ciocler, Carlota Joaquina, Vinicius de Oliveira
  • Direção: Carolina Fioratti, Carlos Cortez

Referência:

Aborto clandestino é drama para mais de meio milhão de mulheres no Brasil. https://exame.com/brasil/aborto-clandestino-e-drama-para-mais-de-meio-milhao-de-mulheres-no-brasil

Os abortos diários no Brasil – Revista Piauí. https://piaui.folha.uol.com.br/os-abortos-diarios-do-brasil/

Dia da Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe: entenda!https://www.politize.com.br/dia-da-luta-pela-descriminalizacao-e-legalizacao-da-aborto-na-america-latina-e-caribe-entenda/

SOARES. Vania Muniz N. & Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos – Regional Paraná:http://www.cedm.pr.gov.br/sites/cedm/arquivos_restritos/files/documento/2020-11/caracteristicas_de_maes_meninas_no_parana_2010-19_31.pdf

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