Clima: quem vai pagar pela limpeza da atmosfera?

Quem vai pagar a conta de limpar a atmosfera e reverter a tendência de aquecimento global que ameaça a Terra neste século? Esta foi uma das principais polêmicas do Painel Intergovernamental para a Mudança Climática (IPCC, na sigla em inglês), promovido pela ONU e encerrado dia 4, em Bangcoc, Tailândia.



O IPCC é uma rede mundial que envolve cerca de dois mil cientistas; o encontro de Bangcoc reuniu, entre os dias 30 de abril e 4 de maio, cerca de 400 delegados de governos de 150 países que, ao final, chegaram a um consenso – difícil – registrado no relatório que indica medidas para atenuar o aquecimento global. Eles debateram a divisão do corte nas emissões dos gases nocivos; o custo dessas medidas; a necessidade da mudança da matriz energética mundial, diminuindo o uso de combustíveis fósseis (petróleo e carvão) e valorizando alternativas limpas (biocombustível, energia eólica e mesmo nuclear); o controle do desmatamento; a modernização da indústria, do transporte e da agricultura, para que poluam menos; mais energia solar e uma construção civil mais racional, e menos uso de ar condicionado. 



As conclusões do relatório são aterradoras por um lado e otimistas por outro. Os três relatórios divulgados pelo IPCC este ano (em Paris, em fevereiro; em Bruxelas, em abril; e este, aprovado em Bangcoc) desenham um quadro catastrófico para as próximas décadas. O relatório de Paris referiu-se ao caráter “inequívoco” das alterações climáticas, enquanto o de Bruxelas advertiu que se durante este século a temperatura aumentar dois graus centígrados (a previsão é de que poderá ficar entre 1,1 e 6,4 graus) acima da média mundial do tempo da revolução industrial, há dois séculos e meio atrás , cerca de 30% das espécies vivas poderão desaparecer.



Se o cenário mais pessimista se realizar, e a temperatura subir seis graus até 2100, o derretimento das geleiras vai elevar o nível dos oceanos, provocando catástrofes nas regiões do litoral, devastação econômica nas regiões tropicais e emigrações em massa.



Entretanto – e este é o dado otimista -, o documento garante que existem tecnologia e recursos para manter as emissões dentro de limites que assegurem um aumento máximo de 2 graus até o final do século.



As florestas, assegura, podem contribuir para reduzir as emissões de dióxido de carbono, o principal responsável pelo efeito estufa, e também para limpar a atmosfera pois as árvores absorvem carbono.



Fontes alternativas de energia, como os biocombustíveis (o etanol, por exemplo), poderão ter importante papel na redução das emissões de gases ambientalmente agressivos; elas poderão representar de 3% a 10% da demanda total de energia para transportes em 2030. O texto adverte, contudo, para os riscos ambientais relacionados com sua produção, que pode ameaçar a produção de alimentos e aumentar o consumo uso da água. Foi citada ainda a energia nuclear como uma fonte limpa que pode ser responsável por até 18% da geração mundial de eletricidade até 2030, embora existam preocupações com a segurança, proliferação de armas e do lixo atômico.



A emissão de gases nocivos cresce aceleradamente; aumentou 70% entre 1970 e 2004, chegando a 49 bilhões de toneladas por ano de dióxido de carbono; só entre 1990 e 2004, o aumento foi de 28%. E pode crescer ainda mais, entre 25% e 90% até 2030, em comparação com os níveis de 2000.



Os cientistas consideraram “baixo” o custo do controle ambiental para manter o aumento da temperatura em até 2 graus centígrados até o final do século; esse custo poderá chegar a 2% do PIB mundial (cerca de 862 bilhões de dólaresl), ou entre 0,1% a 0,2% do PIB mundial por ano (entre 19 a 38 bilhões de dólares), até aquela 2030.



Outro aspecto fundamental envolvido na questão é a soberania nacional; há quem defenda, por exemplo, a criação de mecanismos internacionais de controle dos desmatamentos, uma idéia que dá urticária na diplomacia brasileira, que não aceita nenhuma forma de controle ou vigilância internacional sobre a Amazônia para monitorar sua preservação. E é apoiada pelos setores progressistas e patrióticos, destacando-se a defesa enfática que os comunistas fazem da soberania nacional.



Para os peritos reunidos em Bangcoc, se os governos adotarem as medidas recomendadas, a emissão de gases que provocam o efeito de estufa poderá ficar estabilizada em 2030, evitando que o aumento da temperatura ultrapasse 2 graus Celsius.



É neste quadro que a disputa se acentua entre os países ricos e os países pobres, cujo pano de fundo são as relações assimétricas, de poder e de dominação, entre os  industrializados e ricos, e os demais. Prevê-se que mais de dois terços do aumento das emissões poderá ocorrer nos países pobres, mesmo que elas fiquem abaixo do nível per capita dos países ricos que, em 2004, tinham apenas 20% da população mundial, mas eram responsáveis por quase metade (46%) das emissões. Cálculos apresentados pelos chineses mostram que em 2030 as emissões per capita dos ricos poderão chegar algo entre 9,6 e 15,1 toneladas de carbono por habitante, enquanto nos pobres serão muito inferiores, ficando entre 2,8 a 5,1 toneladas por habitante. Outros números eloquentes dizem respeito à matriz energética: os ricos têm apenas 3% de energia limpa; os pobres tem o dobro: 6%. E o Brasil, neste quesito, é campeão: 45% da energia aqui produzida é limpa.



A polêmica voltou a opor estes dois blocos em Bangcoc; o dos ricos, liderado pelos EUA, e o dos pobres, liderados por China, Brasil, Índia e México. Além das disparidades apontadas, outra questão é a já tradicional cobrança, pelos pobres, do passivo histórico de emissões das nações ricas, cujas emissões descontroladas, que já tem mais de dois séculos (elas vêem desde a revolução industrial do século XVIII), jogaram o maior estoque de carbono presente na atmosfera. É preciso colocar o aquecimento global “em uma perspectiva histórica e quantificar a responsabilidade de cada país nesse processo”, disse um delegado que preferiu manter o anonimato.



O ponto em disputa é o mesmo que se repete desde a década de 1960: quem vai pagar pela limpeza, que é necessária e urgente? Ou seja, quem vai conter seu próprio desenvolvimento para proteger a humanidade das catástrofes anunciadas?



Os países ricos já deram inúmeros sinais de não aceitar mudanças e, a pretexto de defender seu modo de vida, preservam os interesses das grandes empresas capitalistas. É notório, por exemplo, que os EUA tenham se recusado sistematicamente em assumir compromissos internacionais para conter suas emissões de carbono devido às pressões das indústrias automobilística, petroleira e termoelétrica. Os países pobres, por sua vez, não aceitam renunciar ao seu próprio desenvolvimento e à busca de melhores condições de vida para suas próprias populações.



A defesa urgente do planeta é enfatizada pelos dados apresentados pelos cientistas. Mas ela passa pelo questionamento das relações de poder e de dominação que divide o mundo em países ricos, consumistas e esbanjadores, e países pobres cuja necessidade de desenvolvimento envolve alterações ambientais que os ricos dizem querer evitar.