García Marquez denuncia o Natal que perdemos na América Latina

O Natal, que deveria ser um canto à simplicidade de um menino nascido em uma manjedoura, tornou-se uma celebração que beira o absurdo

De Tracunhaém, Capital do Artesanato em Cerâmica e terra de santeiros, o presépio clássico do artesão pernambucano Edvaldo da Silva

Então, é Natal… Anunciado como a festa da paz e do amor, mas que, nas crônicas mais sinceras da vida, muitas vezes parece o cenário perfeito para a tragédia humana disfarçada de celebração. Gabriel García Márquez, — que voltou a ser comentado com sua maior obra literária adaptada pela Netflix —, com sua pena precisa e ironia afiada, nos recorda que o Natal, longe de ser um momento celestial, frequentemente se transforma numa noite infernal, repleta de excessos e contradições.

O Natal, que deveria ser um canto à simplicidade de um menino nascido em uma manjedoura, tornou-se uma celebração que beira o absurdo. Gabo, alertou-nos em artigo no espanhol El País, em dezembro de 1980, para as dissonâncias de um Natal que, ao invés de unir, se transforma em palco de contradições e exageros.

Imagine-se, por um momento, em meio à correria de compras natalinas. Entre os flashes de consumo compulsivo, há um paradoxo que é difícil ignorar: o aniversariante, aquele menino de há dois milênios, parece ter sido relegado a um papel coadjuvante.

Presépio nicaraguense

O fim do presépio

Nos presépios — hoje quase esquecidos e relegados aos fundos de igrejas católicas —, havia um toque de humanidade que fazia toda a diferença. Era lá, entre o boi e a Virgem, num estábulo humilde, que se encontrava a beleza da imperfeição.

Gabo lembra-se dos presépios domésticos de sua infância, imperfeitos e desproporcionais, mas cheios de significados. Um pato de pelúcia nadava em um espelho d’água improvisado e os Reis Magos seguiam, sem pressa, uma estrela de papel dourado. Havia, no entanto, uma harmonia desordenada que traduzia nossa própria maneira de enxergar o mundo: errônea, mas sincera. As peças mal feitas, muitas vezes pelas mãos das crianças da época, faziam sentido na lógica da infância e na fé que enchia a sala. Hoje, a fé foi substituída por etiquetas de preços.

Em terras tropicais, onde o sol parece não se intimidar nem mesmo pela proximidade do Natal, algo estranho aconteceu. Sob o olhar vigilante das palmeiras e o aroma das frutas maduras de dezembro, desembarcou um visitante inusitado: São Nicolau, agora transformado em Papai Noel. Com seu trenó imaginário, trouxe uma bagagem incomum para o calor latino-americano — neve artificial, músicas melancólicas em inglês e uma estética que nada tinha a ver com a nossa.

O “Presépio do Reisado”, do artesão Ademilson Eudócio, de Caruaru (PE)

Com o tempo, o menino Jesus foi destronado por essa criatura nórdica vestida com as cores da Coca-Cola Company. Importamos, junto com ele, o peru recheado, as tristes frutas secas do inverno europeu e, mais recentemente, a pressão por um Natal “instagramável”. O que era para ser um momento de espiritualidade e silêncio reflexivo virou um grande evento comercial e barulhento. É preciso correr, antes que comprem todas as aves, panetones, espumantes e lembrancinhas mais baratas. Não há mais tempo sequer para se perguntar o que estamos celebrando.

Cerca de um bilhão de cristãos dizem acreditar que, há dois milênios, Deus veio ao mundo numa manjedoura. García Márquez, em sua análise tão lúcida quanto dolorosa, tocou em algo essencial: o Natal já não reflete a memória daquele menino que, entre animais e palha, carregava um mistério que mudaria o mundo. Ele foi substituído por um senhor gorducho, com nariz de cervejeiro. A troca não é apenas estética, mas simbólica.

A América Latina, que antes fazia de cada casa uma Belém improvisada, importou uma tradição que nunca lhe pertenceu. Perdemos o presépio torto, mas genuíno, em troca de árvores de plástico enfeitadas com luzes intermitentes. E, ao perdermos esses símbolos, talvez tenhamos perdido algo maior: o Natal como espelho da nossa essência. Hoje, ele reflete não o que somos, mas o que desejamos aparentar.

Presépio salvadorenho

As tensões familiares

Entretanto, a noite que prometia paz frequentemente se revela um palco de tensões mal resolvidas. Gabo não poupou, em seu artigo, nem a hipocrisia das reuniões familiares, que tornam-se espaços de compromisso social e abraços protocolares. Tudo sob o verniz de uma alegria que nem sempre convence. Para as crianças, os presentes perderão o encanto ao nascer do novo dia, embalados pelo som de fogos que mal as deixam dormir.

A ceia, preparada com um fervor quase religioso, reúne a família inteira — e outros agregados que não vimos desde o último enterro. Lá estão o tio bêbado flertando com a cunhada casada, a prima depressiva e a avó doente que ninguém queria trazer, mas que veio mesmo assim. Ainda há o desejo tímido de conexão, o esforço desajeitado de estar junto.

O mais cruel, talvez, seja essa obrigação social disfarçada de celebração, em que as pessoas solitárias ficam tristes por não terem com quem passar. Os que se encontram gravitam entre abraços falsos distribuídos entre risos forçados, brindes mecânicos que mascaram os pensamentos perdidos em dívidas acumuladas. As crianças, iludidas por comerciais, acreditam que a felicidade cabe em uma caixa de papelão.

O presépio de cabaça do artesão Marcio Macedo, de Garanhuns (PE)

Nessa atmosfera surreal, não é raro que o Natal termine em brigas. Porque o Natal também é isso: um espelho que reflete nossas fraquezas humanas. O barulho do champanhe sendo aberto pode ser confundido com o de um revólver, porque, como Gabo observou, tiros no Natal não são tão raros quanto gostaríamos de acreditar. Em algum canto da casa, uma criança olha a confusão e pensa, com sua lógica simples: “O menino Jesus nasceu mesmo nos Estados Unidos, porque esse caos aqui não é de Belém”.

As coisas e as narrativas

Gabo não deixou passar despercebida essa invasão cultural que chamava de “contrabando”. Não era apenas a chegada de um personagem do paganismo nórdico; era uma tempestade de símbolos que nos eram alheios. As coroas de flores penduradas nas portas competiam com os galhos secos de nossas árvores tropicais. As cordinhas de luzes piscavam como que desorientadas, incapazes de encontrar sentido no calor de dezembro.

O velho São Nicolau, que antes tinha histórias de milagres — como reconstruir estudantes esquartejados por um urso na neve —, foi refeito e importado como um consumista jovial, pronto para transformar o Natal em um espetáculo de vitrines e embalagens. Mas, como bem apontou García Márquez, o problema não era apenas o consumismo. Era a perda de algo mais profundo: a conexão com o que éramos, com o improviso e a simplicidade que faziam do Natal uma celebração genuína em nossas casas.

Presépio peruano

Ah, se pudéssemos voltar ao tempo dos sonhos, quando acreditávamos que era o menino Jesus quem trazia os presentes, não um sistema voraz disfarçado de boas intenções. Talvez, como García Márquez lamentou, tenhamos perdido algo irreparável — a inocência de olhar para o Natal com os olhos da alma, e não com os do mercado.

A desilusão que começou na infância de García Márquez parece ter se estendido a todos nós. O Natal perdeu sua narrativa original, deixando para trás o improviso e a imaginação que faziam dele algo tão nosso. Talvez, ao recordar essas pequenas quedas — a descoberta de que a magia era uma invenção, o impacto da globalização sobre nossas tradições —, possamos perceber que a verdadeira essência do Natal nunca esteve nos presentes ou nos símbolos.

Ela estava, quem sabe, naquele instante em que acreditávamos, com toda a força de nossa inocência, que o menino Jesus realmente trazia os brinquedos. Porque, no fundo, o Natal nunca foi sobre as coisas, mas sobre a fé que colocávamos nas histórias que contávamos uns aos outros.

O retábulo ayacuchano do Peru

Então, quando o barulho cessar e as luzes coloridas se apagarem, e, na solidão de uma vela acesa, que reste o silêncio para recordar o milagre do menino pobre. Quem sabe, nesse momento de introspecção, possamos enxergar, ao menos por um instante, a manjedoura que teimamos em esquecer.

Afinal, talvez o verdadeiro milagre do Natal seja sobrevivermos a ele ano após ano, sempre prontos para repetir o espetáculo esperando que seja um pouco melhor.

Presépio do artesão pernambucano Nildo Zezinho
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