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Publicado 07/03/2007 21:19 | Editado 13/12/2019 03:30
Era sempre noite no cais de Joana Maria. Ela, encolhida num canto qualquer,
quase paisagem. Mas os olhos, pralá-e-pracá, fitavam as cores do mundo.
Quando tudo cessava, pernas, faróis e barulhos, chegava a hora de tingir os
lábios pra falar mais bonito. Naquele íntimo e solitário ritual, baixava-lhe
uma altivez estranha. Joana Maria, de boca vermelha, virava outra.
Mulher velha, seca de corpo e de sorrisos, mal sucedida no viver. Isso seria
até o fim. Mas, naquele instante, o que importava é que Joana Maria era
gente. Deixava de ser um bicho enroscado e disforme, no qual se identificava
às vezes uma perna, outras uma mão, entre entulhos e panos velhos. Uma vez
por dia ela existia.
Do chão brotava a mulher repugnante, suja, desleixada. Um borrão vermelho a
destoar no conjunto marrom-acinzentado. E ela ia em direção aos bares, uns
dois quilômetros de passadas convictas. Começava sussurrando, depois erguia
a voz, até que fosse ouvida.
A mãe da louca é a noite. A noite da louca é a mãe. A louca da mãe é a
noite. A mãe da noite é a louca
Andava, andava, até não agüentar mais. Toda a sorte de gente via a
peregrinação, acompanhava com descaso, e depois já nem lembrava. E Joana
Maria era a doida, que causava constrangimento. Depois virou piada, diversão
da boemia. E, aos poucos, foi promovida a mais um elemento típico das noites
recifenses, assim como a cerveja gelada, o copo sujo, os batuques e o ir e
vir das meninas de pernas de fora.
A mãe da noite é a louca.
Era como se aquela aparição cotidiana demarcasse fusos, convidasse todos às
folias do noturno – a confirmação de que tudo estava ali, igual, como as
estrelinhas e o barulho distante do mar, como sempre. Chegaram até a cogitar
que era toda marketing, uma performance ensaiada, personagem construído para
marcar um tempo.
A mãe da louca é a noite.
Uns observadores apostavam na doidice, outros na necessidade da mulher de se
impor, ser notada. Mas as palavras vermelhas, da boca de Joana Maria, eram
também da sua cabeça e do seu penar, os mais sensíveis sabiam. Todos tinham
uma teoria e era como se cada um, ao seu jeito, entendesse um pouquinho
daquela história. Vários cúmplices e muitos juízes.
A noite da louca é a mãe.
Até a madrugada em que alguém fez vazar os lábios da mulher, tingindo todo
seu corpo de encarnado, borrando a paisagem do cais, que, dizem, nunca mais
anoiteceu.