“Presepe”, de Guimarães Rosa, é uma bela alegoria sobre a vida

Ao decidir criar o Presépio, Tio Bola resolve lutar contra a solidão utilizando as práticas religiosas enraizadas no coletivo

Guimarães Rosa - Ilustração: Olavo Costa

O escritor Guimarães Rosa nos brinda com o conto Presepe, da coletânea Tutaméia, uma bela alegoria sobre a vida. De modo insólito, o autor coteja as peripécias do octogenário Tio Bola, que resolve encenar um Presépio, com o nascimento de Jesus.

A família do Tio Bola resolve deixá-lo para trás e ir à vila para a tradicional Missa do Galo de Natal. Na companhia da cozinheira Nhota e do imbecil empregado Anjão, ele tem uma ideia que vai desembocar fatalmente no leitor numa reflexão sobre a vida, do nascimento a velhice.

Isso contado numa linguagem bem própria de Guimarães. Estão lá “o burro e o boi – à manjedoura – como quando os bichos falavam e os homens se calavam”. Era o Natal de “animação para surpresas”.

Pode-se se dizer também que é uma reverência à solidão. “Deitava-se no cocho? Não como o Menino, na pura nueza… O voo de serafins, a sumidez daquilo. Mas, pecador, numa solidão sem sala. E um tiquinho de claro-escuro”.

Ao decidir criar o Presépio, Tio Bola resolve lutar contra a solidão utilizando as práticas religiosas enraizadas no coletivo.

Trata-se, sem dúvida, de um dos melhores contos do escritor de Grandes Sertões Veredas, todos ambientados no sertão.

Também estão presentes os elementos que marcam as suas obras como “realismo mágico, regionalismo e liberdade de invenções linguísticas e neologismos”.

Presepe

(João Guimarães Rosa)

Todos foram à vila, para missa-do-galo e Natal, deixando na fazenda Tio Bola, por achaques de velhice, com o terreireiro Anjão, imbecil, e a cardíaca cozinheira Nhota. Tio Bola aceitara ficar, de boa graça, dando visíveis sinais de paciência. Tão magro, tão fraco: nem piolhos tinha mais. Tudo cabendo no possível, teve uma ideia.

Não de primeira e súbita invenção.

Apreciara antes a ausência de meninos e adultos, que o atormentavam, tratando-o de menos; dos outros convém é a gente se livrar. Logo, porém, casa vazia, os parentes figuravam ainda mais hostis e próximos. A gente precisa também da importunação dos outros. Tio Bola, desestimado, cumpria mazelas diversas, seus oitenta anos; mas afobado e azafamoso. Quis ver visões.

Seu espírito pulou tão quanto à vila, a Natal e missa, aquela merafusa. Topava era tristeza – isto é, falta de continuação. Por que é que a gente necessita, de todo jeito, dos outros? Velho sacode facilmente a cabeça. A ideia lhe chegou então, fantasia, passo de extravagância.

– “Mecê não mije na cama!” – intimara a Nhota, quando, comido o leite com farinha, ele fingia recolher-se. Não cabia no quarto. Natal era noite nova de antiguidade. Tomou o aviso e voltou-se: estafermado, no corredor, o Anjão fazia-lhe pelas costas gesto obsceno. Ordenou-lhe então – trouxesse ao curral um boi, qualquer!

Saiu o Anjão a obedecer, gostava do que parecesse feitiço ou maldade. E no pequeno cercado estava já o burro chumbo, de que os outros não tinham carecido. Sem excogitamento, o burrinho dera a Tio Bola o remate da ideia.

Lá fora o escuro fechava. O Anjão no pátio acendera fogo, acocorava-se ante chama e brasa. Esse se ria do sossego. Também botara milho e sal no cocho, mandado.

Natal era animação para surpresas, tintins tilintos, laldas e loas! O burro e o boi – à manjedoura – como quando os bichos falavam e os homens se calavam.

Nhota, em seus cantos, rezava para tomar ar, não baixando minuto, e tudo condenava. Tio Bola esperava que o Anjão se fosse, que Nhota não tossisse mas adormecesse.

Estava de alpercatas, de camisolão e sem carapuça, esticando à janela pescoço e nariz, muito compridos. Os currais todos ermos, menos aquele… Tremia de verdade.

Veio, enfim, à sorrelfa; a horas. Pelas dez horas. Queria ver. Devagar descera, com Deus, a escada. Burro e boi diferençavam-se, puxados da sombra, quase claros. Paz. Sem brusquidão nem bulir: de longe o reconheciam.

Os olhos oferecidos lustravam. Guarani, boi de carro, severo brando. Jacatirão, prezado burrinho de sela. Tio Bola tateou o cocho: limpo, úmido de línguas.

Empinou olhar: a umas estrelas miudinhas. Espiou o redor – caruca – que nem o esquecido, em vivido. Tio Bola devia distrair saudades, a velhice entristecia-o só um pouco. Riu do que não sentiu; riu e não cuspiu. Estava ali a não imaginar o mundo.

Por um tempo, acostumava a vista.

Nhota dormia, agora, decerto; até o Anjão. Os outros, no Natal, na vila, semelhavam sempre fugidos… Quem vinha rebater-lhe o ato, fazer-lhe irrisão? De anos, só isto, hoje somente, tinha ele resolvido e em seu poder: a Noite, o curralete, cheiro de estercos, céu aberto, os dois dredemente – gado e cavalgadura. Boi grosso, baixo, tostado, quase rapé. Burro cor de rato. Tão com ele, no meio espaço, de-junto. Caduco de maluco não estava. Não embargando que em espírito da gente ninguém intruje. Apoiou-se no topo do cocho. Bicho não é limpo nem sujo. Ia demorar lá um tanto. Só o viço da noite – o som confuso?

O Anjão, rondava. Nhota, também, com luz em castiçal, corria a casa; não chamava alto, porque lá a doença não lhe dava fôlego. Turro, o boi ainda não se deitara, como eles fazem – havia de sentir falta do Guaraná, par seu de junta. Burro não deita: come sempre, ou pára em pé, as horas todas. A gente podia esperar, assim como eles, ocultado num ponto do curral. Tudo era prazo.

Deitava-se no cocho? Não como o Menino, na pura nueza… O voo de serafins, a sumidez daquilo. Mas, pecador, numa solidão sem sala. E um tiquinho de claro-escuro.

Teve para si que podia – não era indino – até o vir da aurora. Que o achassem sem tino perfeito, com algum desarranjo do juízo!

Tão gordo fora; e, assim, como era, tinha só de deixar de fora seus rústicos cotovelos. Agora, o comichar, uma coceira seca. Viu o boi deitar-se também – riscando primeiro com a pata uma cruz no chão, e ajoelhando-se – como eles procedem. O mundo perdeu seu tique-taque. Tombou no quiquiri de um cochilo. Relentava. Ouviu. O Anjão estava ali, no segundo curral, havia coisa de um instante. Que se aquietasse, pelo prazo de três credos.

Manteve-se. A hora dobrou de escura. Meia-noite já bateu? Abriu olhos de caçador. Dessurdo, escutou, já atilando. Um abecê, o reportório. Essas estrelas prosseguiam o caminhar, levantadas de um peso. Fazia futuro. O contrário do aqui não é ali… – achou. O boi – testo lento, olhos redondos. O burrinho, orelhas, fofas ventas. Da noite era um brotar, de plantação, do fundo. A noite era o dia ainda não gastado. Vez de espertar-se, viver, esta vida aos átimos… Soporava. Dormiu reto. Dormindo de pés postos.

Acordou, no tremeclarear. Orvalhava. A Nhota dormia também, ali sentada no chão, sem um rezungo. O Anjão, agachado, acendera um foguinho. Conchegados, com o boi amarelão e o burro rato, permaneciam; tão tanto ouvindo se passarinhos em incerta entonação.

A estrela-d’alva se tirou. Já mais clareava. As pretas árvores nos azulados… O Anjão se riu para o sol. Nhota entoava o Bendito, não tinha morrido. Cantando o galo, em arrebato: a última estrelinha se pingou para dentro.

Tio Bola levantou-se – o corpo todo tinha dor-de-cabeça. Deu ordens, de manhã, dia: o Anjão soltasse burro e boi aos campos, a Nhota indo coar café. Os outros vinham voltar, da vila, de Natal e missa-do-galo. Tio Bola subiu a escada, de camisolão e alpercatas, sarabambo, repetia:

– Amém, Jesus!

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