Aspectos Filosóficos e Sociológicos da Tortura

Pediram-me para debater os aspectos sociológicos da tortura, mas vou incluir também os seus aspectos filosóficos. Na preparação desta palestra, optei por tratar a tortura, esta forma extremada de violência da perspectiva sociológica e filosófica. E tam

Talvez não haja muito a dizer, do ponto de vista de uma conceituação, já que são tão variados os enfoques e as compreensões. O procedimento que adotei foi o seguinte: selecionei uma bibliografia de referência, que gostaria de estar apresentando aqui e que serviu de base para minhas reflexões. Isso é muito importante, porque, no decorrer da exposição vou me manifestar como impossibilitado de compreender a tortura, como fenômeno social, científico, sociológico.


 


Estou tomando como referência textos e documentos que são conhecidos das pessoas que estão aqui, militantes de movimentos sociais, de movimentos de defesa dos direitos humanos, MNDH. O documento chave é o conhecido Brasil Nunca Mais, que já se tornou um livro clássico, elaborado na década de oitenta, sobre acontecimentos ocorridos na década de sessenta e setenta e que se baseia nas denúncias dos próprios presos políticos, que foram encarcerados, seviciados e torturados. O título do texto, organizado pela Arquidiocese de São Paulo, Brasil Nunca Mais, é muito expressivo e aponta para a idéia de que precisamos lembrar para que não voltem a acontecer a experiência da ditadura militar a tortura, os assassinatos, as perseguições políticas. O prefaciador, Dom Paulo Evaristo Arns, afirma que o livro é bastante doloroso de ser lido, pois relata as experiências dos próprios presos políticos, das sevícias e torturas que sofreram. Ao mesmo tempo, descreve os métodos cruéis  utilizados nos porões da ditadura militar. Outro livro indispensável é Tortura Nunca Mais que contém depoimentos, debates e análises de  Marilena Chaui, Chico Buarque, Hélio Pelegrino, Frei Betto, Nilo Batista.


 


Vou tomar a reflexão da professora Marilena Chaui como base para esta palestra e também os livros de Antônio Carlos Fon, História da repressão Política no Brasil, de Glauco Matoso O que é Tortura,  de Brian Innes, Tortura: na Política, na Religião, da Antiguidade aos nossos dias. Quero ressaltar o aspecto da tortura como impossibilidade da política, da perspectiva de Marilena Chaui.


 


Assim, o ponto de partida será uma discussão conceitual, mas que não descamba para o nominalismo. Concebo a tortura como um crime, uma violência essencialmente humana contra a humanidade. E aqui quero propor a rejeição radical dessa forma extremada da violência que é a tortura pensada como algo “desumano”, “bárbaro”, “selvagem”. Como vamos concebê-la em termos de selvageria, barbarismo e explicar a sua permanência, a sua persistência nas sociedades “civilizadas”? A tortura é marca também da nossa sociedade civilizada, intelectualizada, científica, tecnológica. Desse modo, sendo contra a humanidade, mas praticada por membros dessa mesma humanidade, não pode e nem deve ser considerado como ato desumano. A tortura deve ser concebida, ao contrário, como essencialmente humana.


 


As atividades, as ações humanas, quaisquer que elas sejam, nenhuma delas, estão dispensadas de serem invadidas por processos de falseamento, de fraudes, de plágio. Atividades como arte, esporte, ciência, religião,  têm como limite a própria existência da humanidade. Quando nos horrorizamos com relatos de tortura capitaneados pela Igreja  da Idade Média, através do Santo Ofício, da Santa Inquisição, não podemos conceber como atos “demoníacos”, mas como atos religiosos, praticados pela Santa Madre Igreja, pois os torturadores, os mentores da tortura são o bispo, o papa, a freira, o sacerdote.


 


Brian Innes, no citado estudo tipifica a tortura (na política, na religião, da antiguidade aos nossos dias) a partir de quatro tipos de aplicação: 1) o uso da força bruta do corpo; 2) o uso do fogo; 3) o uso da água, que seriam as três formas mais diretas; 4) há, ainda,  uma quarta forma, mais sutil e refinada, que é a tortura psicológica, com a utilização de insetos e animais, com o objetivo de amedrontamento para causar pânico, uma forma mais sutil de tortura.
Durante a ditadura militar, período em que a tortura foi intensamente utilizada no Brasil, em São Paulo ocorria uma espécie de disputa entre o DOPS e o DOI-CODI, essas duas organizações sinistras. Enquanto o DOPS aplicava a tortura da “caserna”, o DOI-CODI utilizava métodos tidos como da “sorbonne”.   O método “caserna” bruto machucava, vertia sangue, moía os ossos, enquanto que o formato “sorbonne” era sutil uma tortura psicológica e geralmente não incluía o seviciamento direto, corporal.


 


Para além da sua banalização, sabemos que a história da tortura é muito antiga. Existiu da Idade Antiga, chegando à Idade Contemporânea. Se os reis e governantes tiranos a praticavam, também civilizações respeitáveis, como a França em relação à Argélia o fizeram Nos dias de hoje, as civilizações  alcançaram o mais alto índice do domínio da ciência, da técnica, da tecnologia.  Este é o caso da potência imperialista nos dias de hoje produzindo a guerra, com objetivos de obtenção do lucro.  Trata-se da produção da guerra como negócio com a venda de armas. E não pára aí porque esta potência imperialista pensa também no negócio da reconstrução do país destruído, como no caso do Iraque.


 


Podemos pensar a violência na sua origem, acompanhando a história da humanidade. Uma boa maneira é partir de dois paradigmas clássicos da filosofia política do século XVIII. Para Thomas Hobbes a humanidade é essencialmente má. “O homem é uma fera envernizada”. Quanto mais próximos da natureza, mais cruéis e violentos seríamos. A solução apresentada para resolver o problema da violência é a realização do Pacto Social, a construção da sociedade civilizada. Aqueles que vinculam a violência à “selvageria”, à “barbárie”, sabendo ou não, expressam uma concepção hobbesiana. Outra explicação para o fenômeno da violência pode partir de Jean-Jacques Rousseau. Segundo Rousseau, ao contrário de Hobbes, a sociedade, quanto mais próxima da natureza, menos violenta será. “O homem natural é bom”. Entre nós, temos um representante ilustre da teoria do “bom selvagem”,  José de Alencar.


 


Diante dos paradigmas da maldade universal implícita ou da bondade universal, ficamos em um beco sem saída. Por isso torna-se necessário buscar outras formas de explicação. A partir do momento em que a humanidade optou pela cultura, deixa de existir a “natureza humana”. Embora, enquanto espécie, continuamos essencialmente ligados á natureza, já que conservamos os fundamentos da natureza, que são os instintos de sobrevivência: comer, beber, repousar, trocar afeto, essenciais para a própria conservação da espécie. Somos animais, na concepção darwiniana e na concepção reincorporada por Marx e Engels. A construção do materialismo dialético propõe que as verdades não são nem absolutas e nem infinitas. Podemos pensar em algumas verdades, duas, no limite: a verdade da burguesia e a verdade da classe operária; a verdade dos patrões e a verdade dos trabalhadores, a partir do interesse de classe. Do ponto de vista da compreensão a partir do materialismo dialético, a violência surge desde o momento em que há a apropriação dos bens coletivos, quando um grupo se apropria da propriedade comum. Foi Rousseau, antes mesmo de Marx, que vinculou a origem da desigualdade ao surgimento da propriedade privada. E a frase famosa “a propriedade é um roubo” é de Proudhon. No caso brasileiro, isso se deu com a chegada dos portugueses, com a invasão européia, denominada pela história oficial de “descobrimento”. A invasão portuguesa, abençoada pelo papa, pelo Tratado de Tordesilhas e “otras cositas más”,  teve como conseqüência, a destruição das sociedades tribais e o início da propriedade privada, da desigualdade e da violência.


 


Para bem entender as sociedades antes do patriarcado, convém estudar e ler os textos de autoras feministas, como Simone de Beauvoir, Marilena Chauí, Heleieth Saffioti, Heidi Hartmann, Juliet Mitchell, Elisabeth Badinter entre outras, que nos ensinam que o matriarcado é um mito, nunca existiu. Antes do Neolítico, as sociedades humanas eram complementares, solidárias e a divisão do trabalho (sexual, gerontológica) não fundava a dominação. Como diz Françoise D’Eaubonne, eram sociedades baseadas na complementaridade, na solidariedade. As mulheres eram responsáveis pela agricultura e os homens pela caça e não havia dominação a partir da divisão sexual do trabalho. E, a partir do momento em que os homens se apropriam, tomam, roubam a agricultura das mulheres, vai surgir a dominação, a violência fundada na desigualdade. E surge também a divisão entre o mundo privado, o lar (das mulheres) e o mundo público, a rua (dos homens).


 


Como se vê, podemos explicar a violência, a origem da violência. Marx e Engels e antes deles Rousseau, como vimos, vinculam a violência com a origem da desigualdade, da propriedade privada. Já as feministas denunciam o patriarcado como tendo dado início à opressão. É possível também explicar algumas das formas mais extremadas de violência, como a guerra, a dominação política econômica e ideológica. Como lembra Hannah Arendt, a guerra, essa forma de violência tem regras, embora nem sempre cumpridas: seria a continuação da política por outros meios.


 


Mas o que gostaria de ressaltar aqui hoje, é a impossibilidade de explicar essas formas mais extremadas de violência como a tortura, o estupro, os linchamentos. Talvez por isso, algumas tentativas equivocadas de explicação, frente ao escândalo, falem de atos “bárbaros”, “selvagens”, “incivilizados”. Esses são termos imprecisos, no meu entender, carregados de preconceito e que não conseguem dar conta da continuidade, da persistência dessas formas de violência em nossas sociedades “civilizadas”.


 


A tortura, no dizer de Marilena Chauí transfigura, transforma a relação do torturador e do torturado como se fosse numa representação dramática, num teatro. O torturador se comporta como se fosse um deus e o torturado fica reduzido a uma coisa, sub-humana. É um teatro do absurdo, porque a identidade desaparece, tanto a do torturador, como a do torturado. Durante a ditadura militar você não tinha nome, tinha sim, um nome fictício, um “nome de guerra” e o torturador também tinha a sua identidade clandestina, expressa por nomes fictícios. No DOI-CODI os mais cruéis eram o JC e o Capitão Albernaz. A tortura é o impedimento da política. Na tortura não há negociação e visa a redução e a destruição do eixo mesmo de uma pessoa, através do medo e do pânico.


 


Eu quero concluir este depoimento relatando um fato. No decorrer do meu processo, um companheiro do nosso grupo político foi morto na tortura e depois foi dado como tendo se suicidado. Então dizíamos que esse companheiro “foi suicidado” pelos torturadores da ditadura militar. Então, como que por obra do imponderável, o processo relaxou. Sim, porque eles não querem matar, eles querem a confissão, eles querem a construção de uma confissão. Assim foi também o caso do jornalista Wladimir Herzog, que era diretor da TV Cultura de São Paulo. Wladimir Herzog foi espontaneamente prestar depoimento no DOI-CODI e foi morto na tortura porque, sendo inocente, realmente nada sabia, não tinha o que declarar! Foi morto, foi “suicidado”!


 


Para concluir esta reflexão, quero declarar a minha descrença na justiça humana. Certamente é uma conclusão dramática a que fui levado pela minha própria existência e de reflexões e do conhecimento que venho adquirindo com pesquisas e leituras no campo da Sociologia, da Filosofia, da Teologia. Eu não acredito em uma natureza humana e não acredito na justiça. Não há uma justiça em geral, pois  ela tem que ser construída socialmente. Se a ciência pode ser fraudada, se a arte é passível de falsificações, se em nome da religião, em nome do amor e do temor a Deus, se tortura, e se mata, também não acredito em uma justiça divina. Quem passa por essas experiências tem vontade de pedir a desfiliação da espécie humana! Se a humanidade tolera e continua insensível à existência da tortura, como crer na justiça humana, como acreditar em uma justiça divina? Não encontrando respostas às dúvidas e interrogações e diante da crueldade e da injustiça reinantes e, principalmente diante de uma humanidade que convive com a tortura, optei pelo ateísmo, por não acreditar na justiça, nem na  justiça dos homens e nem na justiça divina!


 


*Thimoteo Camacho é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espítito Santo e este texto foi publicado  na Revista Eletrônica do Núcleo de Estudos da Violência da UFES (NEVI/UFES).


 




* Opiniões aqui expressas não refletem, necessariamente, a opinião do site e são de responssabilidade de seu autor.