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Como 007 despertou o desejo da Bolívia por um litoral

O deserto de Atacama, no norte do Chile, é o mais seco do mundo. Segundo os geólogos, ele não teria recebido uma gota de água sequer nos últimos quatro séculos. Num dos seus planaltos áridos estão erguidos os telescópios gigantes do observatório europeu d

 


 


Longe de toda atividade humana, o agente 007, encarnado pelo ator Daniel Craig, enfrenta, de maneira solitária, o todo-poderoso traficante de drogas Dominic Greene, interpretado por Mathieu Amalric, que instalou a sua fortaleza nesta paisagem lunar. Greene tenta fomentar um golpe de Estado na Bolívia com o objetivo de se apoderar das riquezas naturais deste país turbulento e vulnerável. Para tanto, Greene conta com a ajuda de dois narcotraficantes repulsivos que são os seus aliados, o “general Medrano” e o “tenente Orso”, que vêm a ser súditos bolivianos.


 


Esta última característica não passou despercebida na Bolívia, onde ela provocou uma reação enfurecida, dirigida contra os roteiristas do 22º filme da saga de “James Bond”. Numa carta que ele enviou para o produtor do filme, Michael Wilson, o vice-ministro do desenvolvimento das culturas, Pablo Groux, se insurge contra a “difamação preocupante” da qual o seu país está sendo alvo. “O fato de identificar como bolivianos traficantes de drogas”, acrescenta o ministro, “mesmo dentro de um contexto de ficção”, “permanecerá presente no imaginário coletivo” de milhões de pessoas que assistirão ao filme a partir de novembro.


 


É justificável achar ligeiramente excessiva a indignação do governo deste país, que está classificado como o 3º maior produtor mundial de coca, depois da Colômbia e do Peru. Embora a coca seja uma coisa, e a cocaína, outra, a segunda não deixa de ser fabricada a partir da primeira, e, de fato, uma boa parte da produção local da planta tem sido transformada ilegalmente no famigerado pó branco. O presidente boliviano, Evo Morales, um antigo “cocalero” (plantador de coca), continua sendo o melhor defensor das cerca de 30.000 famílias que, tal como ele no passado, vivem desta cultura. Quando a ONU pediu recentemente à Bolívia para que esta reduzisse o consumo de coca, o país respondeu de maneira unida e solidária, organizando uma “jornada da mastigação” da “folha sagrada”.


 


Do ponto de vista dos dirigentes bolivianos, a equipe do novo “James Bond” cometeu um outro pecado: ela está filmando no Chile seqüências que supostamente estariam ambientadas no seu país. E não é apenas pelo fato de ser no Chile, como também, no que vem a ser uma circunstância agravante, precisamente na região de Antofagasta, na parte mais nobre deste litoral que a Bolívia fora forçada a ceder ao Chile durante a guerra do Pacífico (1879-1884). Em conseqüência deste conflito armado entre um Chile conquistador e os seus dois vizinhos do Norte, o Peru e a Bolívia, está última se vira retirar a sua soberania sobre uma faixa costeira de 400 km e perdera, por conta disso, todo e qualquer acesso para o mar. Desde então, a Bolívia tem sido, junto com o Paraguai, o único Estado desprovido de todo acesso ao mar na América do Sul.


 


Cerca de 120 anos mais tarde, esta profunda ferida deixada pela História permanece aberta. Toda e qualquer irritação a desperta. Em sua carta, o vice-ministro boliviano da cultura deplora “a ignorância” da qual os produtores do filme deram mostras ao “apresentarem Antofagasta como se ela ainda fosse uma cidade boliviana”, e acrescenta: “Esta ficção reaviva a nossa reivindicação marítima histórica”. Mas a crítica vai mais longe: o ministro lamenta também que o filme não tivesse sido rodado na Bolívia: “Em nosso país, nós temos as paisagens e os recursos que poderiam ter atendido às exigências do roteiro”.


 


Os produtores reconhecem ter situado esta nova aventura de Bond na Bolívia, o que corresponde às próprias necessidades do roteiro. Alguns dos personagens trajam uniformes militares bolivianos, enquanto a bandeira de três cores boliviana aparece em alguns caminhões. “Nós sabíamos que houvera uma guerra nesta região, há mais de um século”, declarou Michael Wilson. “Mas nós não sabíamos que este fato ainda constituía um problema até hoje”.


 


De fato, é um problema e tanto! Com efeito, como um país poderia se esquecer de uma humilhante amputação territorial que exacerba de maneira permanente as frustrações nacionais? Todo ano, no dia 23 de março, o país comemora “o Dia do Mar”. São organizadas manifestações nas ruas, bandeiras são içadas ou erguidas, declarações marciais são proferidas. Em La Paz, o chefe do Estado sempre pronuncia um discurso na Praça Abaroa, que leva o nome do mais importante herói nacional.


 


O dia 23 de março é o aniversário da morte deste último. Durante a primeira grande batalha da guerra do Pacífico, Eduardo Abaroa recusa-se a se render às tropas chilenas no momento em que o seu exército defende uma ponte sobre o rio Topater. Ferido, cercado, ele interpela o inimigo, antes de ser morto, com uma frase que desde então permaneceu gravada na memória coletiva: “Me render, eu? É a vez da sua avó se render, seu cretino!”


 


Neste ano, a alocução de Evo Morales foi mais conciliadora e mais otimista. Ele se disse muito satisfeito por ver que a confiança predomina atualmente entre a Bolívia e “a República irmã do Chile”, as quais são governadas por duas equipes socialistas. Esta mudança de tom por parte da Bolívia corresponde a um reconhecimento de vários gestos de conciliação que foram empreendidos pela presidente chilena, Michelle Bachelet.


 


Pela primeira vez, o Chile aceita que a questão do acesso ao mar seja incluída como parte de uma negociação entre os dois Estados. Em dezembro passado, Michelle Bachelet esteve pessoalmente em La Paz, ainda que os dois países não estejam mantendo relações diplomáticas, as quais foram suspensas em 1978. Um acordo prevê a abertura, no final de 2009, de uma auto-estrada transoceânica, que conduzirá do porto brasileiro de Santos até o porto chileno de Arica, passando pela Bolívia. Apenas o prosseguimento deste processo de aproximação bilateral permitirá que o povo boliviano se mostre menos obcecado pela nostalgia do seu mar perdido.


 


Fonte: Le Monde / Jean-Pierre Langellier
Tradução: Jean-Yves de Neufville / UOL Mídia Global