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Milton Hatoum: O grande tema da vida moderna é a solidão

O escritor Milton Hatoum se considera um “paulistano de Manaus”. Estranha forma de localizar uma origem, não fosse o fato de revelar logo de cara a ideia de um país marcado por realidades socioculturais e econômicas muito distintas, porém simultâneas no tempo e no espaço, separadas sobretudo pela nossa “narrativa política esquizofrênica”.

Não dá mais para pensar numa Amazônia desvinculada das questões urbanas de forma geral, ou pensar o Norte como um Oriente longínquo, uma massa verde povoada de apenas índios, esse nome genérico que designa “muitas vontades”. Também nos lembra que na época da ditadura militar, o movimento estudantil em Manaus, Belém e outras cidades amazônicas era muito ativo, e que ali foi um ponto de encontro privilegiado de culturas de muitos lugares do mundo. Nos mostra uma Manaus que passou dos milhares de habitantes para a casa dos milhões, e que enfrenta problemas socioeconômicos que não são exclusividade dessa região, mas que precisam ser pensados nas suas especificidades.

Em suma, Hatoum nos convoca – por suas palavras nessa entrevista, mas principalmente por meio de sua literatura – a prestar mais atenção na Amazônia, ainda desconhecida não porque a floresta é profunda, mas porque o olhar viciado construiu discursos e mitos que contribuem para ignorância que ainda impera sobre a região. Veja abaixo o primeiro trecho da entrevista em tópicos:

Paulistano de Manaus

Geralmente me apresento como um brasileiro de Manaus. Minha relação com a cidade onde nasci é muito forte e talvez seja, das muitas cidades em que vivi, a que mais me sensibiliza. Porém, sou um brasileiro de Manaus que já tem uma parte considerável de sua vida em São Paulo. Na verdade, sou paulistano de Manaus. Morei toda a década de 1970 aqui, depois morei em outras cidades, na Europa, voltei para Manaus, morei nos Estados Unidos. As duas cidades brasileiras com as quais tenho uma relação mais íntima, onde estão meus amigos, são Manaus e São Paulo.

São Paulo tem muitas atividades literárias, é onde as coisas acontecem, é aqui que estão meus leitores, ou a maioria deles. Por outro lado, tornou-se uma cidade muito cara, caríssima. É uma cidade cujo urbanismo é burro, não foi planejada – apesar de que poucas cidades brasileiras o foram –, a questão do transporte urbano é muito mal pensada. Tem 12 milhões de habitantes, é enorme, e tem pouquíssimas estações metro, por exemplo. É uma aberração.

Manaus de 68

Estudei no Colégio Amazonense Dom Pedro II, uma escola estadual do Amazonas em edifício neoclássico, enorme. É um colégio muito combativo. Durante o Regime Militar, criamos um jornalzinho chamado “O Elemento 106”. Na natureza, são 105 elementos químicos, nós criamos o elemento 106. Participava desse jornal com uns amigos, dois deles saíram de Manaus em 68. Esse jornal já expressava a participação de um movimento estudantil naquela região, depois em Manaus houve uma série de protestos e resistência. As pessoas pensam que só houve manifestações e resistência nas grandes cidades. Não, lá também teve, em Belém, na Amazônia toda

Experiência e cidade

A diferença é fundamental para quem escreve romance. Hoje, a vida de uma criança em São Paulo pode ser muito limitada a uma balada, um bairro, um shopping, e eu não vivi isso. Minha infância foi em Manaus, mas não na beira do rio, como um ribeirinho de família cabocla. Foi uma infância mais urbana. Depois me mudei para Brasília muito jovem. Então vivi em Manaus, que é uma cidade portuária, numa época em que ainda era razoavelmente pequena, tinha uns 300 mil habitantes. De todos os modos, sempre foi uma cidade muito misturada, cheia de aventureiros, viajantes, imigrantes de vários lugares. Convivi um pouco com imigrantes do Líbano, da Síria, judeus marroquinos; foi uma experiência muito rica nesse sentido, fundamental para quem escreve.

Meu avô me levava para a cidade flutuante, que era um bairro proletário, com uma vida muito intensa, me levava às vezes para o interior. Ele era um contador de histórias, não havia televisão, então a relação com a cidade, com as pessoas, era muito mediada por narradores. As pessoas contavam histórias.

Mito, história, literatura

A literatura é mito, porque a literatura surgiu da narrativa e qualquer narrativa pode se transformar num mito. Há mitos positivos e mitos negativos. Hoje, o Brasil é um mito positivo no exterior, mas isso oscila muito, pode ser visto também com um mito negativo ou clichê, ou como um conjunto de clichês. E há sempre um momento em que mito deixa de ser uma crença e se transforma em história. Como o mito da Cidade Encantada, de Órfãos do Eldorado. O narrador lembra das histórias que ele ouvia de uma índia quando ele era criança na beira do rio, e depois essas histórias rebateram na vida dele. A literatura pode ser explorada em quatro ou cinco grandes mitos, mas a questão é como narrar.

Narradores da vida moderna

Acho que a literatura se revela na forma, na linguagem. Na narrativa, a principal questão é encontrar a voz do narrador, pois é a partir dela que vai se configurando a historia, as relações estabelecidas entre o narrador e os outros personagens. A escolha do narrador tem implicações até ideológicas. Se você construir um narrador cínico, completamente cínico, certamente está aí algum traço que você quis dar ao narrador que pode ter uma conotação ideológica. É como o discurso jurídico, uma arte, sem dúvida – mais ou menos explícita, mais ou menos oculta. É assim também no discurso político. O tom da voz narrativa pode deixar entrever posições ideológicas.

O gênero romance, de maneira geral, é escorado na trajetória de vida de um indivíduo, em torno do qual transitam outras personagens, podem ser parentes, desconhecidos, relacionados por encontros e desencontros. Nesse sentido, com exceção de Relato de um certo Oriente – que foi pensado como um coral de vozes, como uma história construída por diversos narradores e múltiplos pontos de vista –, meus livros se aproximam desse grande gênero da vida moderna.

O grande tema da vida moderna é a solidão, que por sua vez faz parte da própria história da narrativa, se pensarmos que ela passou das vozes coletivas para a história do individuo, e do espaço coletivo para o espaço sobretudo da família burguesa. Em Dois irmãos e Cinzas do Norte, os que sobrevivem para contar a história são esses narradores solitários, ambíguos porque contam a história da qual eles mesmos fazem parte.

Contudo, muitas vezes, a partir dessas relações entre as personagens, é possível construir um mundo maior que elas. Essas personagens estão num espaço que é político, cultural, geográfico, e que extrapola suas vidas. Então, o romance abarca desde a visão mais microscópica de um individuo, ou um par de indivíduos, até um movimento que sai da luneta e vai para uma tela, um afresco, um movimento social mais significativo. É o caso do romance histórico do século XIX, por exemplo, em que figuram escritores como Balzac, Sthendal.

Agora, isso é muito diferente do blog que fala do individuo o tempo todo, e um indivíduo que passa o dia em frente ao computador. “Eu faço isso, eu faço aquilo”. Não tem conflito, não tem personagem, nada intriga. Parece uma historia qualquer que poderia ter acontecido com qualquer um e nesse sentido reduz muito a ideia de experiencia. E dela depende muito o romance, a literatura de forma geral.

Quem é:
Milton Hatoum é de família de origem libanesa e nasceu no dia 19 de agosto de 1952 em Manaus, Amazonas. Considerado um dos principais escritores brasileiros vivos, Hatoum escreveu quatro romances: Relato de um Certo Oriente, de 1990, Dois Irmãos, de 2000, Cinzas do Norte, de 2005, (todos os três primeiros ganhadores do Prêmio Jabuti de melhor romance) e Órfãos do Eldorado, de 2008. Em 2009 lançou o seu primeiro livro de contos Cidade Ilhada.

Fonte: Brasil de Fato