Velha-guarda conta a história dos 80 anos da Vai-Vai
“A primeira vez que vi o Vai-Vai, eu senti qualquer coisa dentro de mim, que eu não podia ver”. Era o início da década de 1930. Diamantino José Pinto Barbosa, o Seu Nenê, não podia nem notar o cordão que já corria atrás. Se estivesse estudando ou fazendo qualquer outra coisa, “largava tudo e saía cantando Vai-Vai”. Esse cordão de foliões se transformou na escola de samba de São Paulo (SP) Vai-Vai, que, em janeiro, completou 80 anos de fundação.
Publicado 20/05/2010 13:08
Em torno de 1928, um grupo de amigos, liderados por Livinho e Benedito Sardinha, ajudava a animar os jogos e festas realizadas pelo Cai-Cai, um time de futebol e grupo carnavalesco bastante popular no bairro do Bixiga. Porém, eram sempre vistos como arruaceiros, apelidados como "a turma do Vae-Vae". Expulsos por causa dos entreveiros musicais nos treinos, criaram o "Bloco dos Esfarrapados", e paralelamente, o Cordão Carnavalesco e Esportivo Vae-Vae, oficializado em 1930.
O primeiro desfile oficial do cordão foi em fevereiro de 1930, o tema era São Paulo e o samba foi feito por Henrique Filipe da Costa, o Henricão. Nos desfiles sucedidos no bairro do Bixiga, alguns foliões se encarregavam de proteger a ala dos instrumentos, formada sobretudo por bumbos, caixas e taróis.
“Tinha o Sardinha que me via magrinho, baixinho e falava, alguém vai acabar pisando nesse moleque, vai matar ele; aí me puseram para dentro, do lado da bateria”, ilustra Seu Nenê, morador do bairro da Bela Vista, integrante da velha-guarda da escola, a atitude de um dos fundadores do cordão. Desde que colocaram o “magricela” para dentro da bateria, ele nunca mais saiu. Na época com nove anos de idade; hoje, um menino de 85 anos.
O "Vae Vae" circulava pelas principais ruas do Bixiga cantando as marchinhas, jogando serpentinas e fazendo batalha de confetes nos passantes: Treze de Maio, São Vicente e Rui Barbosa. “Naquele tempo o cordão era uma coisa de vagabundo, era mal-visto; a polícia batia na gente, botava pra correr”, indigna-se Seu Nenê.
Antes do Carnaval, os componentes arrecadavam dinheiro para costurar fantasias e comprar instrumentos. Nos dias de folia, o caminho do cordão obedecia os endereços das famílias que contribuíram financeiramente com a festa. Com o passar dos anos e o excesso de pessoas, também receberam os desfiles da Vae-Vae outras localidades da cidade de São Paulo, como o Vale do Anhangabaú e bairros como Penha, na Zona Leste e a Lapa, Zona Oeste da cidade. Outros famosos cordões dos anos 1930 era o Fio de Ouro e o Campos Elísios.
Bixiga “sagrado”
Há duas tradições preponderantes no bairro do Bixiga: Nossa Senhora Achiropita e a Vai-Vai. As festas de Achiropita ocorrem no último domingo de agosto ou no primeiro de setembro. Depois, a agremiação do samba recebe o sinal verde para ir às ruas.
A Bela Vista, região que abrange o Bixiga, serviu como um refúgio, um quilombo para escravos. A partir da imigração italiana, oriundos principalmente da Calábria, sul da Itália, os negros passaram a compartilhar o espaço com os europeus e seus decentes.
Diamantino, o Seu Nenê, nasceu na rua Santo Antônio, num cortiço de família italiana. Após o falecimento de sua mãe, a família “Mirabile” ajudou o pai do menino magricela a criá-lo. “Uma das filhas do senhor Mirabile acabou de me criar depois que minha mãe morreu”, conta. Segundo ele, a família italiana possuía uma venda de carne na região no bairro. Ele recorda que o “caminhão” dos açougueiros de sua família adotiva ainda era puxado por um burro.
A influência italiana sobre Diamantino não para aí. Por causa da influência de todo o bairro do Bixiga, Diamantino teve de se “italianar”. Ele foi batizado, fez primeira comunhão e se casou na igreja de Nossa Senhora Achiropita. Seu Nenê tentou ser coroinha, mas não deu certo. “A gente era mais interessado em comer os chocolates e os pães que a igreja nos dava”.
A procissão saía e as famílias disputavam quem colocava mais dinheiro no estandarte de Nossa Senhora Achiropita (até cem mil réis), principalmente os açougueiros e os batateiros. Na metade da procissão o estandarte ficava coberto de dinheiro.
Segundo Diamantino, os mais pobres jogavam moedas de mil réis. Seu Nenê que conta após cumprir sua função de recolher o dinheiro que caía no chão e devolvê-lo à santa, só pensava no cordão. “A procissão e, depois, o cordão eram sagrados”, afirma.
A mistura acontecia sem celeumas. “A única coisa que difere o italiano calabrês e o negro é a cor da pele. Os dois são festeiros, falam alto, gesticulam”. Segundo Valdir de Oliveira, o Peninha, integrante da Velha Guarda da escola, o italiano aceitou a cultura já presente no bairro e se adaptou e os negros também aceitaram a cultura dos imigrantes. “Aqui você vai encontrar muito negro com sotaque italianado, por causa da convivência”, lembra.
“É povão”
Em 1972, a Vai-Vai torna-se oficialmente uma escola de samba, denominando-se Grêmio Recreativo Cultural e Escola de Samba Vai-Vai, estreando logo no Grupo Especial. Com 13 vitórias, a Vai-Vai é a recordista de campeonatos da primeira divisão. Porém, o primeiro título como escola de samba chegou em 1978.
Foi justamente nesse ano que Valdina Soares, também integrante da velha-guarda da escola, vinha pela Praça da República dentro do ônibus, e o trânsito estava ruim. “Aí eu perguntei para o cobrador, por que está assim? Ele falou, é a Vai-Vai que está passando. O barulho foi aumentando. Eu desci, e entrei no meio. Onde esse povo for eu vou porque está muito bom”, conta. E foi cair na Bela Vista.
Com o passar dos anos vieram os nordestinos para o bairro. Entretanto, a Vai-Vai ganhou proporções gigantescas e ser da comunidade ganhou um significado maior que simplesmente morar próximo à sede da agremiação. “A Vai-Vai é povão, emociona, a gente não acostuma”, reforça Valdina. Além disso, fora do Carnaval, ela revela que muitos integrantes da comunidade permanecem no mesmo convívio há anos, “seja no velório, seja no bar”.
Ao realizar ensaios na ruas do Bixiga, a Vai-Vai é vista como uma das escolas de samba mais receptivas de São Paulo. Ela agrega, a cada ano, novos “vai-vaienses”. “Quem forma a comunidade não são aqueles que nascem e moram na Bela Vista, mas são aqueles que estão no dia-a-dia com a gente; tem gente de Zona Leste, Oeste, de tudo quanto é lugar, de Santos”, reforça Baiana, que mora no bairro do Jardim Miriam, Zona Sul da capital paulista, e faz parte da ala dos compositores da escola.
Baiana, que é pernambucana, por exemplo, chegou à escola em 1977. “Antes de vir, eu tentei outras escolas, só que senti aqueles bolinhos [panelinhas]”, diz. Também conhecida como Rosineide Monteiro Nunes, Baiana havia tentado desfilar na ala das baianas em outras escolas, mas sem êxito. Mesmo jovem, com seus 25 anos, pôde desfilar por essa ala na agremiação. Hoje, com 33 anos de escola, tem seis filhos e cinco netos que desfilam na agremiação.
Valdina leva mais de uma hora para chegar à sede da Vai-Vai, na Bela Vista. Ela reside há 20 anos na cidade de Embu das Artes, região metropolitana de São Paulo, mas vê essa condição apenas como um detalhe fácil de superar. “Não dá para viver sem”, conclui.
Estandarte
O primeiro estandarte que o Grêmio Recreativo Cultural Social Escola de Samba Vai-Vai teve como símbolo no centro foi o desenho de uma coroa com dois ramos de café. Abaixo dos ramos, o nome agremiação, seguido de sua data de fundação. De acordo com a escola, os ramos foram escolhidos para destacar o apogeu da cultura do café em São Paulo. A coroa simboliza a realeza e grandeza da negritude.
Fonte: Brasil de Fato