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Christina Aguilera, porta-voz dos transtornos (bipolares) dos EUA

Como eram os Estados Unidos da América em 2010? Um dos modos de responder essa pergunta daqui a 20, 50 ou 90 anos haverá de ser indo assistir no YouTube (ou coisa que o valha) ao videoclipe Not Myself Tonight, de uma artista popular chamada Christina Aguilera.

Por Pedro Alexandre Sanches, em Opera Mundi

A afirmação pode parecer exagerada, mas pense por outro ângulo: o pop só é o pop graças à capacidade que possui de condensar, refletir e extrapolar o espírito do tempo e do lugar em que está imerso. E há muito da perplexidade norte-americana do início do século XXI estampado nas imagens fugidias do clipe de Christina.

Para começar, há uma guerra civil em curso no pop estadunidense, e o nome da commander-in-chief da revolução é Lady Gaga. A jovem cantora e compositora eclodiu para o mundo há pouco mais de dois anos e virou de cabeça para baixo o mundo pop como o conhecíamos – a música (banal) de Gaga é seu suporte, mas a artista chama menos atenção pela música que pelo modo de se apresentar e de se vestir, pelo tratamento visual que dá a seus clipes, shows e aparições púbicas, e assim por diante.

“Eu não sei quem é essa pessoa. Não sei nem se é um homem ou uma mulher”, desdenhou uma Christina irritada, ainda em 2008, quando instigada a falar sobre a rival que despontava, talvez, como sua imitadora descarada.

Num piscar de olhos, a criatura ficou dez vezes maior que qualquer possível criadora, e um climão belicoso se instalou nos perímetros do pop ultracomercial. Gaga tem deixado incomodadas algumas das (centenas de) estrelas que ela de fato imita, desde ícones do pretérito perfeito como Grace Jones até jovens como Aguilera, que, aos 29 anos, é apenas cinco anos mais velha que a ex-discípula.

Acompanhar a ciumeira que a noviça causa em suas antecessoras seria divertido se não fosse dramático, e se não desse dimensão constrangedora da hipercompetitividade banhada em sangue, suor e lágrimas instalada no país de aparentes maravilhas que é o show business dos EUA.

Not Myself Tonight é Aguilera acusando o golpe de Gaga e tentando revidar em evidente desvantagem. Ali, ela imita penosamente aquela que até outro dia era a imitadora, entre imagens de bissexualidade agressiva e afirmações como “estou um pouco fora de controle”, “não sou a mesma esta noite” e “alguém chame o médico, eu perdi a cabeça” – a cantora se chama Christina, mas não lhe custaria muito se autobatizar de América (do Norte).

Gênese

Explique-se melhor a transformação. Em 1992, uma Aguilera toda cor-de-rosa estrelava ao lado de crianças de sua idade hoje mundialmente conhecidas como Britney Spears e Justin Timberlake, a versão anos 1990 do Clube do Mickey, do canal de TV da Disney.

Quase 20 anos depois, Not Myself Tonight anula qualquer memória (ou anularia, se não houvesse o YouTube logo ali na esquina), todo carregado de tons vermelhos e negros e inspiração abertamente sadomasoquista.

Christina se exibe em figurinos e trejeitos que evocam ora uma dominatrix, ora o fantasmagórico astro punk/heavy metal Marilyn Manson; ora uma espiã nazista, ora um travesti de olhos fumegantes; ora uma torturadora a arder nas chamas do inferno – ou o próprio diabo em pessoa loura de olhos azuis.

Em todas as ocasiões, parece mais Lady Gaga do que ela mesma. Para qualquer daquelas caracterizações, a base naval norte-americana de Guantánamo, em Cuba, serviria de cenário de fundo, digamos, perfeito. Fosse senhora da guerra em vez de cantora pop, talvez Christina se chamasse Hillary.

É sexy a mulher altiva que evolui entre lingéries vermelhos e coreografias-padrão? É. Mas, antes de sexy, sua imagem é vendida ali como essencialmente belicosa – o sexo comparece em forma de raiva, tanto quanto a raiva exala cheiro de sexo em Not Myself Tonight. O mundo róseo de Walt Disney, Mickey e Minnie Mouse cresceu sombrio, fuliginoso, esfumaçado de pólvora por ataques aéreos anti-Gaga.

Menos feliz, luminoso e harmonioso que os “art videos” feéricos da “fame monster” Lady Gaga, o clipe de Christina vale como um grito por socorro travestido de artilharia bélica de mulher-bomba. Não é à toa que seu novo disco, ainda não lançado, se chamará Bionic e virá estampado por uma linda imagem que revela engrenagens de robô por baixo da pele da ex-garotinha do Clube do Mickey.

Além de toneladas de medo, há uma ponta trágica de doçura no fundo do olho de Christina, uma (ex-)menina que jamais pediu para ser porta-voz do radicalismo e dos transtornos (bipolares?) do país em que nasceu.

Veja abaixo o clipe: