A Venezuela e a autonomia geopolítica sul-americana

Em artigo recente publicado na Folha de S. Paulo, Mathias Spektor mencionou que a questão da Rússia e da Ucrânia seria uma oportunidade para o Brasil exercitar sua aspiração de uma ordem internacional de caráter “multipolar benigna”. Ou seja, representaria um momento para auxiliar na realização de seu desejo de diversos pólos de poder mundial que estabilizariam o sistema pela existência de organizações internacionais.  

Por Raphael Camargo Lima, na Opera Mundi

O articulista argumentou que há oportunidade para a política externa brasileira definir e auxiliar na construção do tipo de centro de poder desejado, dado o novo status do país no mundo.
 
De acordo com essa perspectiva, diria que emergem também novos desafios no prisma regional que precisam ser observados com cuidado. Analisar a geopolítica das organizações regionais e a interação entre os centros de poder nas Américas incita questionamentos igualmente relevantes sobre a evolução da proposta brasileira de regionalismo para as Américas e sua articulação com aquela dos Estados Unidos. Como colocou recentemente José Luís Fiori em duas análises no jornal Valor Econômico, as posições estadunidenses seriam o maior desafio para as ambições da política externa do Brasil no século 21.
 
Não se trataria, necessariamente, de uma perspectiva de confrontação militar, haja vista que as capacidades dos Estados Unidos são muito superiores às brasileiras. Há desafios de articulação política pelas diferentes visões dos dois países acerca da gestão das questões regionais. Desde o fim da Guerra Fria, observa-se a consolidação de dois projetos complementares, mas que pesam diferentemente na balança dos objetivos políticos dos dois países.
 
De um lado, os Estados Unidos buscaram consolidar as relações hemisféricas por meio de uma agenda política, militar e econômica. As agendas da Organização dos Estados Americanos (OEA), da Cúpulas das Américas, da proposta, da Área de Livre-Comércio entre as Américas  (Alca) e das Reuniões de Ministros da Defesa das Américas são exemplos que ilustravam a busca estadunidense de estabelecer bases hemisféricas para as organizações internacionais, participando ativamente dessas decisões. Nos anos 1990, em especial, com o fim da Guerra Fria, e o decréscimo da centralidade da agenda de segurança, a via hemisférica tinha bastante força pela proposta da Alca.
 
De outro lado, a visão brasileira de integração regional tem outras características. Ao longo dos anos, a diplomacia do Brasil jamais deixou de participar dessas organizações. Mesmo ao discordar de determinadas agendas, como a da Alca, por exemplo, a orientação da política externa brasileira foi de não se ausentar da mesa de negociações. Porém, desde o fim dos anos 1990, o Brasil tem optado por munir a América Latina de recursos próprios para lidar com suas crises, sem a necessidade de intervenção política dos Estados Unidos. O país promoveu a primeira Cúpula de Presidentes Sul-Americanos, em 2000, trabalhou pela construção da Casa, em 2004, por sua consolidação como Unasul, em 2008, e pela Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), em 2010.
 
Se há uma articulação de organizações complementares, há também projetos de integração divergentes. Ao passo que o Brasil influencia a criação de instituições para garantir autonomia de decisão aos países da região, pode, como apontou Fiori, gerar tensões com os Estados Unidos no longo prazo. Por isso, está-se observando um novo tipo de geopolítica na região, a da ocupação dos espaços institucionais e decisórios.
 
A Unasul já demonstrou capacidade de lidar com crises regionais sem a necessidade de intervenção dos Estados Unidos, como no caso da instalação das sete bases estadunidenses na Colômbia e do massacre de Pando na Bolívia. Porém, a atual crise na Venezuela representa um desafio novo, que adianta essas tensões de longo prazo, haja vista que os Estados Unidos participaram ativamente das reuniões da OEA sobre o caso, rejeitaram publicamente a abordagem sul-americana para tratar a questão e ameaçaram adotar sanções contra o governo de Nicolás Maduro. A Venezuela rejeitou a atuação da OEA e apenas aceita mediação da Unasul.
 
Por isso, o Brasil tem diante de si o grande desafio de mostrar o papel da instituição que criou e sua capacidade de gestão de crises. Para isso, porém, precisa atuar mais ativamente na mediação e na sustentação da Unasul, com mais ênfase do que tem feito o atual governo. A política externa brasileira tem diante de si um quadro complexo que pode ser o prenúncio das próximas décadas do século 21. Agora, a capacidade de organizações regionais que não incluem os Estados Unidos, como a Unasul e a Celac, de resolver crises sem discordância com a grande potência, dependerá de como as cartas serão jogadas na mesa dessa nova geopolítica das organizações.
 
*é mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional e do Observatório de Política Externa do Brasil.Por Raphael Camargo Lima, na Opera Mundi
 
O articulista argumentou que há oportunidade para a política externa brasileira definir e auxiliar na construção do tipo de centro de poder desejado, dado o novo status do país no mundo.
 
De acordo com essa perspectiva, diria que emergem também novos desafios no prisma regional que precisam ser observados com cuidado. Analisar a geopolítica das organizações regionais e a interação entre os centros de poder nas Américas incita questionamentos igualmente relevantes sobre a evolução da proposta brasileira de regionalismo para as Américas e sua articulação com aquela dos Estados Unidos. Como colocou recentemente José Luís Fiori em duas análises no jornal Valor Econômico, as posições estadunidenses seriam o maior desafio para as ambições da política externa do Brasil no século 21.
 
Não se trataria, necessariamente, de uma perspectiva de confrontação militar, haja vista que as capacidades dos Estados Unidos são muito superiores às brasileiras. Há desafios de articulação política pelas diferentes visões dos dois países acerca da gestão das questões regionais. Desde o fim da Guerra Fria, observa-se a consolidação de dois projetos complementares, mas que pesam diferentemente na balança dos objetivos políticos dos dois países.
 
De um lado, os Estados Unidos buscaram consolidar as relações hemisféricas por meio de uma agenda política, militar e econômica. As agendas da Organização dos Estados Americanos (OEA), da Cúpulas das Américas, da proposta, da Área de Livre-Comércio entre as Américas  (Alca) e das Reuniões de Ministros da Defesa das Américas são exemplos que ilustravam a busca estadunidense de estabelecer bases hemisféricas para as organizações internacionais, participando ativamente dessas decisões. Nos anos 1990, em especial, com o fim da Guerra Fria, e o decréscimo da centralidade da agenda de segurança, a via hemisférica tinha bastante força pela proposta da Alca.
 
De outro lado, a visão brasileira de integração regional tem outras características. Ao longo dos anos, a diplomacia do Brasil jamais deixou de participar dessas organizações. Mesmo ao discordar de determinadas agendas, como a da Alca, por exemplo, a orientação da política externa brasileira foi de não se ausentar da mesa de negociações. Porém, desde o fim dos anos 1990, o Brasil tem optado por munir a América Latina de recursos próprios para lidar com suas crises, sem a necessidade de intervenção política dos Estados Unidos. O país promoveu a primeira Cúpula de Presidentes Sul-Americanos, em 2000, trabalhou pela construção da Casa, em 2004, por sua consolidação como Unasul, em 2008, e pela Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), em 2010.
 
Se há uma articulação de organizações complementares, há também projetos de integração divergentes. Ao passo que o Brasil influencia a criação de instituições para garantir autonomia de decisão aos países da região, pode, como apontou Fiori, gerar tensões com os Estados Unidos no longo prazo. Por isso, está-se observando um novo tipo de geopolítica na região, a da ocupação dos espaços institucionais e decisórios.
 
A Unasul já demonstrou capacidade de lidar com crises regionais sem a necessidade de intervenção dos Estados Unidos, como no caso da instalação das sete bases estadunidenses na Colômbia e do massacre de Pando na Bolívia. Porém, a atual crise na Venezuela representa um desafio novo, que adianta essas tensões de longo prazo, haja vista que os Estados Unidos participaram ativamente das reuniões da OEA sobre o caso, rejeitaram publicamente a abordagem sul-americana para tratar a questão e ameaçaram adotar sanções contra o governo de Nicolás Maduro. A Venezuela rejeitou a atuação da OEA e apenas aceita mediação da Unasul.
 
Por isso, o Brasil tem diante de si o grande desafio de mostrar o papel da instituição que criou e sua capacidade de gestão de crises. Para isso, porém, precisa atuar mais ativamente na mediação e na sustentação da Unasul, com mais ênfase do que tem feito o atual governo. A política externa brasileira tem diante de si um quadro complexo que pode ser o prenúncio das próximas décadas do século 21. Agora, a capacidade de organizações regionais que não incluem os Estados Unidos, como a Unasul e a Celac, de resolver crises sem discordância com a grande potência, dependerá de como as cartas serão jogadas na mesa dessa nova geopolítica das organizações.
 
*é mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP). Membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional e do Observatório de Política Externa do Brasil.