Contra o dólar, a China aposta na sua própria moeda internacional

Um país verdadeiramente soberano exerce as suas prerrogativas sem pedir licença para ninguém

Na última terça-feira, 28/3, Helen Davidson, a correspondente do Guardian na Austrália informou, citando a imprensa chinesa, que a China vai começar a testar na próxima semana o renminbi ou yuan digital em quatro de suas principais cidades, Shenzhen, Suzhou, Chengdu e Xiong’an, um distrito ao Sul de Beijing.

Funcionários públicos dessas localidades passarão a receber os salários na nova moeda, também referida como DCEP (Moeda Digital/ Pagamento Eletrônico), na sigla em inglês. Em Suzhou, o renminbi digital seria introduzido no sistema de transporte público, mas em Xiong’an serviria para comprar alimentos e artigos de varejo.

print de um aplicativo que seria usado nas transações está circulando desde meados de abril. A McDonald’s já teria concordado em participar da experiência, mas a Starbucks, não.

Segundo a matéria de Helen Davidson, várias plataformas de pagamento digital já se difundiram pela China, como a Alipay, da Ant Financial da empresa chinesa Alibaba, e o WeChat Pay, da Tencent, mas não substituem a moeda corrente. O novo renminbi digital, por outro lado, seria lastreado no renminbi, a moeda oficial chinesa, também conhecida no Exterior como yuan, que é a sua unidade básica, dividida em 10 jiaos, cada jiao valendo 10 fens.

Nada a ver com o bitcoin 

Alguns artigos da imprensa internacional, repercutindo a decisão do governo chinês, compararam a nova moeda digital chinesa às criptomoedas como o bitcoin. Nada mais falso. O renminbi digital terá como lastro a moeda corrente chinesa e será controlado pelo Banco Central. É dinheiro atrelado a um sistema de geração de valor, portanto. E está entrando em cena, declaradamente, para competir com o sistema internacional de pagamentos em dólar. Em contrapartida, o bitcoin e as outras criptomoedas só podem ser comparadas aos esquemas de pirâmide financeira, tendo os seus supostos valores baseados apenas na crença e confiança de seus portadores. Por isso é que elas são adequadas às transações efetuadas por esquemas mafiosos e terroristas, além do alcance e controle dos bancos centrais.

A nova moeda digital soberana chinesa, informa a correspondente do Guardian, vem sendo desenvolvida há alguns anos, e estava “quase pronta”, como se noticiou em agosto passado. Na semana passada, o jornal China Daily informou que “uma moeda digital soberana fornece uma alternativa funcional ao sistema de liquidação do dólar e atenua o impacto de quaisquer sanções ou ameaças de exclusão, tanto em nível de país quanto de empresa”. O jornal afirmou ainda que a nova moeda “pode facilitar a integração nos mercados de moedas negociadas globalmente, com um risco reduzido de perturbações de inspiração política”.

É exatamente disso que se trata. Diante das renovadas ameaçadas comerciais do presidente Donald Trump, a China resolveu pagar para ver, mas está botando na mesa as suas próprias fichas digitais. 

Respostas da China

Daryl Guppy, colunista financeiro australiano e autor de vários livros sobre a Bolsa e o comércio internacional, publicou na semana passada um artigo no China Daily, analisando os possíveis impactos dos mais recentes ataques dos americanos à República Popular da China. Uma das respostas dos chineses é exatamente a adoção do renminbi digital. A outra será o fortalecimento do Cinturão Econômico da Rota da Seda, destinado a desenvolver projetos de infraestrutura e investimentos em países da Europa, Ásia e África.

Os Estados Unidos, diz o analista australiano, estão numa situação bem pior do que aquela do pós-Crash de 2008. O petróleo está sendo negociado a preços negativos, o desemprego é nove vezes maior do que naquela época, o mau gerenciamento do sistema de saúde durante a pandemia do coronavírus, que favorece os ricos, provocou a morte de até duas mil pessoas por dia e, no entanto, o mercado de ações americano subiu cinco semanas seguidas. “Essa é uma desconexão impressionante entre a realidade econômica e o mercado financeiro”, escreveu Guppy. “Foi necessário um colapso no preço do petróleo para fazer o mercado americano acordar e se reconectar com a realidade econômica”.

Diante de um quadro de “hibernação deliberada da atividade econômica”, que expõe e mata as empresas que dependiam de crédito, e que não oferece qualquer perspectiva para a classe média e pobre, que vem se endividando cada vez mais nos últimos 20 anos, o que faz o governo americano? Renova as ameaças à China e aos países que fazem negócios com ela, colocando-se no caminho da sua recuperação. Como se a adoção de novas sanções contra a China não fosse provocar um efeito bumerangue, atingindo os próprios Estados Unidos…

A moeda digital chinesa já está sendo testada no mercado interno e logo deverá entrar no mercado internacional

Três impactos 

Daryl Guppy menciona três impactos possíveis decorrentes desse quadro. O primeiro seria o “armamento do dólar, para que ele possa ser usado como braço forte da política externa americana. Isso seria executado através da imposição de sanções punitivas unilaterais, com a ameaça de excluir empresas do sistema de liquidação do dólar SWIFT. O presidente Trump mostrou uma crescente disposição de usar o acesso ao sistema de liquidação do dólar como arma de política externa”, diz Guppy.

SWIFT é a sigla de Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunications (Sociedade de Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais), da qual participam 11 mil casas financeiras que processam quase 34 milhões de transferências transnacionais de dinheiro diariamente.

É muito fácil você enviar hoje até mesmo pequenas somas de dinheiro entre países diferentes. Digamos que você queira remeter mil reais para alguém na França. Você baixa um aplicativo, por exemplo, da TransferWise, que é filiada à SWIFT. Indica a conta bancária do recebedor e o valor a ser transferido. A TransferWise emite um boleto para você pagar, no Banco Itaú, por exemplo. O valor é convertido na moeda local do destinatário, no caso, euros, remetido e recebido em um ou dois dias. A moeda de referência geral dessa liquidação é o dólar.

Armamento do dólar

Segundo Daryl Guppy, os Estados Unidos já usaram o “armamento do dólar” contra o Irã, em 2019, ameaçando com a exclusão do sistema de transferências da SWIFT as empresas europeias que faziam negócios com aquele país em conformidade com as resoluções da ONU. As sanções americanas, impostas unilateralmente, previam a exclusão do sistema de liquidação em dólar não apenas o Irã mas todas as firmas negociavam com o país. Sanções parecidas foram aplicadas à Venezuela e, mais recentemente, à Austrália, forçada pelos americanos a descartar um acordo com a empresa chinesa Huawei, em processo de contratação para fornecer serviços a sua nova rede ferroviária.

Guppy levanta a hipótese de que talvez seja impossível aplicar o “armamento do dólar” a toda a China, mas isso é factível contra empresas individuais, como já aconteceu com a Huawei, que está na vanguarda da tecnologia de comunicação 5G, e é alvo de ataques semanais por parte dos americanos.  

Resposta soberana

É aqui, segundo Daryl Guppy, que entra a resposta chinesa, projetada para combater o “armamento do dólar”, ao oferecer aos investidores e às empresas um sistema alternativo de liquidação comercial baseado no renminbi. A moeda digital soberana na China atenuaria o impacto de quaisquer sanções ou ameaças de exclusão, tanto ao país quanto às empresas. E, segundo Guppy, facilitaria a integração dos mercados que negociam moedas em todo o mundo, “com um risco reduzido de perturbações de inspiração política”.

O analista australiano diz que a estabilidade do yuan durante a crise da COVID-19 aumentou seu apelo para muitos investidores, e que os dois sistemas de liquidação, um, baseado no dólar americano, o outro, no renminbi digital, poderiam operar paralelamente ou, se necessário, de forma mutuamente exclusiva.

O terceiro impacto a ser provocado por mais sanções ou pelo afastamento dos americanos dos negócios com a China seria, segundo Guppy, o fortalecimento do Cinturão Econômico da Rota da Seda “como defensor do livre comércio e do comércio livre do comportamento agressivo de grandes nações que pouco se importam com os interesses de outros”.

Será preciso aguardar algumas semanas para julgar a performance da moeda digital chinesa no mercado interno e, depois, nas primeiras transações internacionais. Já é possível dizer, porém, que um país verdadeiramente soberano exerce as suas prerrogativas sem pedir licença para ninguém. A nova moeda nacional digital da China é uma das expressões da soberania daquele país. E ponto!

Fonte: Brasiliários

Autor

4 comentários para "Contra o dólar, a China aposta na sua própria moeda internacional"

  1. Marcio disse:

    Muito bom seu artigo e obrigado pelas dicas

  2. Aqui é a Camila parabéns pelo conteúdo do seu site gostei muito deste artigo, tem muita qualidade vou acompanhar o seus artigos.

  3. HERMES DAGOBERTO disse:

    Gostei do tema de sua divulgação, gostaria de ver se é pertinente para meu site.

    Sds.

  4. Rafael disse:

    A China deve continuar crescendo (o que, aliás, é ótimo para o Brasil), mas achar que o yuan será reserva global e meio de troca é bem diferente.

    Como acionista da PETR prefiro que as exportações brasileiras para China sigam sendo pagas em dólares americanos, mas se vc prefere yuan paciência…?‍♂️ https://www.infomoney.com.br/stock-pickers/na-disputa-comercial-entre-eua-e-china-empresas-brasileiras-podem-ser-as-perdedoras/amp/?__twitter_impression=true

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *