Pesquisador de medicamentos para malária explica perigos da cloroquina

Para especialista em fármacos para malária, a insistência política, e não científica, na cloroquina, ignora os efeitos da droga na arritmia cardíaca e risco de morte súbita.

A interferência da cloroquina no intervalo QT provoca arritmia cardíaca e pode causa morte súbita, diz Luis Carlos Dias, da Unicamp

O pesquisador Luiz Carlos Dias manifestou-se contrário à carta publicada no Conexão Política, no último dia 21, intitulada “A ‘ciência’ da Pandemia”, de autoria de 25 pesquisadores brasileiros, que conforme destacado na carta, juntos somam mais de 69 mil citações. Ele lamenta que, sendo colega do principal autor da carta, leia defesas políticas de algo que, para a ciência, tem claros riscos à saúde de pacientes de covid-19.

Dias é professor titular do Instituto de Química da UNICAMP, e trabalha com o desenvolvimento de novos medicamentos para o tratamento de doenças parasitárias tropicais como malária, doença de Chagas e leishmanioses.

No caso da malária, ele explica que procura desenvolver um novo antimalárico que possa ser usado em dose única, por crianças e gestantes e que seja barato, seguro e eficaz. “Em um dos ensaios obrigatórios que usamos no processo de desenvolvimento de novos medicamentos, é imperativo que estes antimaláricos não provoquem alterações no intervalo QT [o tempo de recarga entre os batimentos], podendo levar a arritmias cardíacas”.

No documento, os autores consideram “pseudocientistas” aqueles que são contra o uso das cloroquinas no combate à covid-19 e que são a favor do isolamento social. Dias conta que vem se manifestando contrário ao uso político das cloroquinas, que vêm sendo usadas sem evidências científicas de sua eficácia no contexto da pandemia, além de ser a favor do isolamento social. “Não aceito ser chamado de ‘pseudocientista’. Tampouco considero meu colega um ‘pseudocientista’, apesar da divergência de posições políticas e religiosas. É preciso mais respeito e lucidez!”

Ele criticou o fato da carta querer se legitimar pelo número de signatários e suas citações. “Também poderia juntar muitos cientistas, com igual número de citações ou talvez mais, mas isto também não seria garantia de bom senso, de ética, de caráter; não é assim que se faz ciência. E pessoas não são números, citações não salvam vidas, mas podem condenar à morte”.

Dias lamento o conteúdo da carta, no que diz respeito à defesa do uso das cloroquinas sem evidências científicas e contra o isolamento social.

Estudos

No tocante às cloroquinas, os autores defendem o estudo do Prevent Senior, que não foi nem sequer publicado, pois este o CONEP já tratou de desqualificar. Defendem o estudo do médico francês Didier Raoult, considerado pela comunidade científica internacional como irregular, muito mal conduzido e muito pouco confiável. E criticam de forma enfática, os resultados publicados no dia 22 de maio na revista The Lancet (https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31180-6), uma das mais importantes revistas médicas do mundo. “Vai entender!”

Ele ressaltou as inconsistências do estudo publicado na The Lancet, e lembrou que, após a divulgação dos dados, a Organização Mundial da Saúde (OMS) suspendeu temporariamente o uso destes medicamentos no estudo clínico Solidarity, para retomá-los pouco depois.

Segundo ele, este é o estudo mais robusto até o momento, e os resultados mostram que, infelizmente, não faz sentido autorizar o uso de cloroquina e da hidroxicloroquina, isoladas ou em combinação com azitromicina, para tratar pacientes infectados com o SARS-CoV-2, seja nos estágios iniciais da doença ou em estágios mais graves.

Assim, Dias mostra que, cada vez que se prova que certo tipo de paciente da covid-19 não pode receber cloroquina ou hidroxicloroquina, os defensores transferem seu uso para pacientes em situação menos grave da doença. “E se também não funcionar, depois será para os assintomáticos e por fim, vão defender o uso como profilático para quem não tem nada, como se fosse uma vacina”, ironizou.

Para ele, faz-se uso político para as cloroquinas compradas pelo governo federal, porque o isolamento social parece não ser uma opção. “E penso que eles querem construir a narrativa de que pacientes infectados que seriam curados pelos próprios anticorpos foram curados pelas cloroquinas”, desconfia, sugerindo, inclusive, que ao final, vão dizer que quem foi curado da doença, o foi pelo uso das cloroquinas, mesmo que tenham sobrevivido por força de seus próprios anticorpos.

Falsa atribuição

De acordo com Dias, no caso do uso das combinações de cloroquina ou hidroxicloroquina com azitromicina ou eventualmente outros medicamentos, a situação é ainda mais grave. Ele então explica um motivo do entusiasmo com as cloroquinas. “Numa estratégia de reposicionamento de fármacos, a ideia é usar fármacos existentes para uma nova ação terapêutica, diferente daquela para que eles foram originalmente desenvolvidos”.

Como estes fármacos já estão há algum tempo no mercado e continuam sendo avaliados com relação à sua segurança (Fase IV, fase de farmacovigilância), o seu emprego para o tratamento de covid-19 poderia pular os ensaios em Fase I, que são estudos iniciais de segurança, realizados em grupos de pessoas sadias e pular para a Fase II, de pessoas confirmadas com a covid-19

Estes medicamentos poderiam passar diretamente para a Fase II, , para estabelecer se tem eficácia e qual a dose segura, ainda investigando segurança e efeitos adversos. Isto deve ser conduzido em um ambiente hospitalar, com acompanhamento médico e uso da infraestrutura hospitalar, com desfibriladores e eletrocardiogramas e médicos à disposição.

As cloroquinas vêm sendo usadas em outras doenças dentro de uma estreita margem de segurança. Assim, não há dados sobre doses seguras para pacientes com covid-19, que é outra doença, que conhecemos pouco e que causa outros problemas ao organismo.

Salto perigoso

Mesmo admitindo que o salto para a Fase II seria uma estratégia válida, em tempos de pandemia, isso só poderia ser feito em caso do medicamento ser usado isoladamente, e não para o uso de combinações com azitromicina, que deveriam passar por ensaios de segurança em Fase I, observando as reações adversas, os efeitos colaterais, a dosagem segura, com uma análise cuidadosa das interações medicamentosas.

Isto sem levar em consideração as comorbidades dos pacientes. “Não sabemos o que acontece nos pacientes com a administração destas combinações, não temos ideia sobre a dose segura. Qualquer indicação é mera especulação, é querer emprestar ou vender o currículo em favor de uma bandeira”, alerta.

Desta forma, ele acredita que a ciência deve dar a resposta. “Estabelecer uma dose como a deste protocolo do Ministério da Saúde, baseada em achismo, não me parece ciência séria”, criticou.

Os autores colocam em sua cartaQUE TODOS, ABSOLUTAMENTE TODOS OS BRASILEIROS QUE ASSIM DESEJEM, TENHAM O DIREITO DE SER TRATADOS COM A HCQ. Decisão jurídica justa. E ponto final.” Diante de tanta polêmica, seria no mínimo autoritário decretar o “ponto final”. O pesquisador defende seu direito “e o de todos aqueles que têm a coragem de se expor, em um momento de tanta irracionalidade”, para alertar a população brasileira dos riscos desta decisão.

A cloroquina é utilizada no Brasil para o tratamento de pacientes com malária causada pelo Plasmodium vivax (parasita prevalente no Brasil). A hidroxicloroquina é um medicamento utilizado para tratamento de artrite reumatoide e lúpus. A azitromicina é um antibiótico utilizado para combater infecções e evitar que bactérias oportunistas se aproveitem do quadro.

Embora a cloroquina tenha sido desenvolvida inicialmente para o tratamento de malária causada pelo Plasmodium falciparum, este parasita esperto já adquiriu resistência e o fármaco não pode mais ser utilizado na África. Além de acumular no organismo, a cloroquina causa arritmias cardíacas, que dependendo da dose utilizada no tratamento, principalmente sem acompanhamento médico, podem ser fatais.

Intervalo QT

Estes medicamentos podem ser altamente tóxicos em doses mais altas, pois interferem no intervalo QT. Para recarregar para o próximo batimento cardíaco, há uma fase de recuperação do coração que, em pessoas sadias, dura em torno de 0,34 a 0,44 segundo. Interferências neste intervalo podem ocorrer em consequência das interações químicas entre a cloroquina, a hidroxicloroquina, a azitromicina e as células cardíacas, levando a um intervalo longo e provocando uma bagunça na condução elétrica do miocárdio, alterando a repolarização ventricular e contribuindo para o desenvolvimento de taquicardia ventricular de alto risco, podendo ocasionar morte súbita.

Os três remédios provocam prolongamento do intervalo QT. As combinações entre eles são ainda mais perigosas e podem ser fatais para um indivíduo sadio, pior ainda em pessoas com histórico de problemas cardíacos e outras comorbidades. “A situação é muito séria.”

Como pode ocorrer acúmulo do medicamento no organismo, doses altas podem levar a morte em poucas horas ou causar efeitos adversos irreversíveis como sintomas cardiovasculares, vasodilatação, arritmias cardíacas, parada cardíaca, confusão mental, convulsões, coma, tontura, náusea, vômito, dor abdominal, diarreia, irritabilidade, visão turva, toxicidade ocular.

Estes remédios apresentam ainda uma série de contraindicações e não podem ser administrados com vários outros medicamentos além de ser contra-indicado para pacientes com várias outras patologias. “A situação real é muito séria e delicada, não é uma questão de direita vs esquerda”.

“Infelizmente, a ciência está sendo atropelada por negacionistas, com colaboração explícita de alguns cientistas e o tratamento está sendo utilizado neste país, mesmo que contra as recomendações da Organização Mundial da Saúde, da comunidade médica nacional e internacional, e contrário ao que defendem aqueles que acreditam que a boa ciência deve ser baseada nas evidências científicas”, lamenta.

Assim, Dias defende o isolamento social, como uma regra sanitária que é comprovadamente eficiente em salvar vidas e que tem possibilitado o tempo necessário para preparar hospitais, comprar respiradores, equipamentos de proteção individual e testes de diagnósticos. “Eu defendo a ciência séria, com ética, não a ciência que lamentavelmente está sendo politizada em defesa de uma opção política”, conclui.

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