Bolívia: eleição amarga, acusações de fraude e uma reconsideração
Um minucioso exame dos dados da eleição boliviana sugere que a análise inicial da OEA que levantou dúvidas sobre fraude eleitoral – e ajudou a derrubar um presidente – foi uma falha.
Publicado 08/06/2020 13:40 | Editado 12/06/2020 16:33
Foi a eleição mais disputada em décadas: Evo Morales, o primeiro presidente indígena. Da Bolívia, se postulava para um quarto mandato, enfrentando uma oposição que o via como um líder autoritário e relutante em renunciar ao poder.
Com o começo da contagem preliminar de votos, em de 20 de outubro de 2019, as tensões aumentaram. Quando a recontagem foi interrompida – de repente e sem explicações – e logo se reiniciou no dia seguinte, mostrou que Morales tinha os votos suficientes para ganhar as eleições a duras penas.
Entre suspeitas de fraude estouraram protestos em todo o país e a comunidade internacional recorreu à Organização dos Estados Americanos (OEA), que havia sido convidada a observar as eleições, para que a avaliasse.
A declaração da organização, que destacava “uma mudança inexplicável” que “modifica drasticamente o destino da eleição”, levantou suspeitas sobre a votação e provocou uma série de eventos que mudou a história da nação sul-americana. A oposição aproveitou o relatório para intensificar protestos, reunir apoio internacional e, semanas depois, tirou Morales do poder com apoio militar.
Agora, um estudo de investidores independentes, que utiliza dados obtidos pelo New York Times das autoridades eleitorais da Bolívia, descobriu que a análise da OEA tinha falhas. Os investigadores descobriram que a conclusão de que os votos a favor de Morales aumentaram inexplicavelmente uma vez que a contagem foi retomada estava baseada em dados incorretos e técnicas estatísticas inapropriadas.
“Examinamos cuidadosamente a evidência estatística da OEA e encontramos problemas com seus métodos”, disse Francisco Rodríguez, um economista que ensina estudos latino-americanos na Universidade de Tulane, nos EUA. “Uma vez que corrigimos estes problemas, os resultados da OEA desaparecem, sem deixar evidência estatística de fraude”.
Rodríguez realizou o estudo com Dorothy Kronick, especialista em política latino-americana na Universidade da Pennsylvania, e Nicolás Idrobo, estudante do doutorado na mesma universidade e coautor de um livro sobre métodos estatísticos avançados. Seu estudo é um documento de trabalho que ainda não foi submetido à uma revisão de seus pares.
Certamente, os autores dizem que sua análise foca só na análise estatística da OEA sobre os resultados da votação, e não prova que a eleição tenha sido livre e justa. De fato, foram registrados muitos problemas com a votação.
Na tentativa de sufocar os protestos que começaram ao anunciar sua vitória, Morales pediu à OEA para conduzir uma auditoria eleitoral “obrigatória”.
O informe de 100 páginas, publicado em dezembro, contém a evidência de erros, irregularidades e “uma série de operações maliciosas” destinadas a alterar os resultados. Isso inclui servidores ocultos de dados, comprovantes de votação manipulados e assinaturas falsificadas, que segundo a organização impossibilitaram validar os resultados das eleições.
A OEA encontrou evidência de modificação de pelo menos 38 mil votos. Morales proclamou sua vitória com uma margem de 35 mil.
“Houve fraude, simplesmente não sabemos onde e quando”, disse CAlla Hullum, uma especialista em Bolívia da Universidade de Miami, que presenciou a eleição e analisou os resultados da OEA.
“O problema com o informe da OEA é que o fizeram muito rápido”, disse Hullum. Isso configurou a narrativa das eleições antes que os dados pudessem ser analisados de forma adequada, explicou. Essa afirmação inicial da OEA é o que os investigadores independentes especificamente questionaram em seu estudo.
A queda de Morales abriu caminho para um governo provisório de extrema-direita, liderado por Jeanine Áñez Chávez, que ainda não cumprir o mandado de supervisionar novas eleições. O novo governo tem perseguido os partidários do ex-presidente, silenciando à dissidência e trabalhado para consolidar seu controle de poder.
Sete meses depois da queda de Evo, a Bolívia não tem um governo eleito, nem uma data oficial para as eleições.
A OEA disse que respalda sua análise estatística, porque havia detectado com êxito os primeiros indícios de fraude.
“É um ponto discutível”, disse o chefe de observadores eleitorais, Gerardo De Icaza, em resposta às dúvidas levantadas pelo pelo novo estudo. “As estatísticas não provam nem refutam a fraude. As evidências concretas, como declarações falsas e pesquisas de TI [Tecnologia da Informação] ocultas o fazem. E foi isso que encontramos”.
A acusação inicial da organização foi feita justamente depois das eleições mais disputadas da Bolívia desde a volta da democracia na década de 1980. Para se postular ao quarto mandato, Morales modificou leis, encheu o conselho eleitoral de pessoas que eram leais a ele e ignorou os resultados de um referendo que o proibiu de buscar a reeleição.
Ao afirmar que não se podia confiar nas eleições de outubro, alguns líderes da oposição disseram que paralisariam o país se Morales declarasse a vitória. Por sua vez, os partidários de Morales, em grande parte indígenas, por temer a volta dos políticos conservadores que haviam sido a regra no país antes que Evo assumisse o poder em 2006, juraram defender suas conquistas políticas a todo custo.
O Departamento de Estado dos Estados Unidos reagiu rapidamente à declaração da OEA, acusando aos funcionários eleitorais de tentar “perturbar a democracia da Bolívia”. Carlos Mesa, o principal candidato da oposição, e Luis Fernando Camacho, um dos principais líderes dos protestos, citaram a afirmação da organização ao justificar suas convocatórias para ações nas ruas.
“A OEA, como observador, ratificou as dúvidas que todos os bolivianos tínhamos e essa preocupação de que nos haviam deturpado o voto”, disse Camacho em um vídeo de 22 de outubro.
As manifestações se intensificaram nas semanas seguintes, Morales começou a perder o apoio das forças de segurança. A gota das deserções do governo se converteu em uma inundação.
Visivelmente abalado, Morales, foi à rede nacional de TV para chamar novas eleições, mas já era tarde. Nesse mesmo dia, os militares pediram a Morales que se retirasse do governo. Ele fugiu para o exílio logo em seguida.
“A OEA acabou afundando qualquer legitimidade que os resultados eleitorais poderiam ter”, afirmou o analista político e destacado colunista boliviano Gonzalo Mendieta.
Em sua auditoria das eleições, a organização disse ter encontrado “uma tendência altamente improvável nos últimos 5% da contagem” que levou Morales acima do limiar da vitória definitiva, sem um segundo turno.
Os autores do novo estudo disseram que não foram capazes de replicar as descobertas da OEA usando suas técnicas prováveis. Eles disseram que uma mudança repentina na tendência apareceu apenas quando excluíram resultados das cabines de votação processadas manualmente e com relatórios tardios.
Isso sugere que a organização usou um conjunto de dados incorretos para chegar à sua conclusão, disseram os investigadores. A diferença é significativa: as 1500 urnas de votação que foram excluídas representam a maior parte dos votos finais que a análise estatística da OEA afirmou que eram suspeitos.
Além disso, os acadêmicos disseram que a organização usou um método estatístico inapropriado que criou artificialmente a aparência de uma ruptura na tendência da votação.
O consultor da OEA que fez essa análise estatística, o professor Irfan Nooruddin, da Universidade de Georgetown, disse que o novo estudo deturpou seu trabalho e estava errado. Não deu detalhes nem compartilhou seus métodos ou dados com os autores do estudo, apesar das reiteradas solicitações.
Icaza, da OEA, por sua vez, disse que, em termos gerais, os dados das eleições mais recentes da Bolívia eram muito cheios de falhas para tirar conclusões significativas. “Estão fazendo um exercício estatístico em cima de documentos falsos. A pergunta não é se números falsos se somam. A pergunta é se são falsos ou não – e são”.
Fonte: The New York Times