A Lava Jato e as cascas obscuras do Ministério Público Federal

“Chamou a atenção no debate os dados trazidos pelo Dr. Augusto Aras. Dava para ver, nitidamente, a surpresa dos debatedores com algumas revelações que mostraram uma espécie de Dark Side da Instituição”

Augusto Aras - Foto: Marcos Brandão/Agência Senado

Dezenas de manchetes possíveis. 38 mil pessoas arapongadas, por exemplo. Enfim. Ah: por que palimpsesto? Simples: porque Aras vai tirando camada por camada, casca por casca, (d)as pinturas escondidas…!

Ao trabalho. No dia 28 de julho de 2020 ocorreu um debate histórico. Um grupo de advogados e professores discutiu com o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, acerca dos grandes temas de sua gestão e das providências que estão sendo tomadas para corrigir os rumos da Força Tarefa da “lava jato”, alçada, por seus integrantes, à uma entidade supra institucional e supranacional. O Grupo Prerrogativas já havia feito debates desse jaez com o Presidente do STF, da Câmara e com o Ministro Gilmar Mendes.

Chamou a atenção no debate os dados trazidos pelo Dr. Augusto Aras. Dava para ver, nitidamente, a surpresa dos debatedores com algumas revelações que mostraram uma espécie de Dark Side da Instituição.

Primeira advertência: não briguem com o mensageiro. Sou apenas alguém que está contando as coisas. O mensageiro só carrega e entrega a mensagem.

Então. O próprio PGR falou em MP do B que se formou no decorrer do tempo. Bom, ninguém melhor do que o Procurador-Geral para vir a público, de cara limpa, mostrar tudo isso.

Entre tantas revelações, contou Aras que todo o Ministério Público Federal, no seu sistema único, tem 40 terabytes. Curitiba [Força Tarefa da Lava Jato] tem 350 terabytes.

Mais: nesses terabytes estão enterrados dados de 38 mil pessoas. Motivo? Ninguém sabe. É o que Aras chama de antirrepublicanismo.

A operação “lava jato” foi importante, diz Aras. Porém, criticou o consumo de recursos financeiros pela força-tarefa e insistiu sobre a necessidade de corrigir desvios e superar o chamado ‘lavajatismo’. O custo de Curitiba sozinho dá mais do que o custo mais de 20 unidades do MPF.

Em alto e bom tom, disse Aras: “Agora é a hora de corrigir os rumos para que o lavajatismo não perdure, mas a correção de rumos não significa redução do empenho no combate à corrupção. Contrariamente a isso, o que nós temos aqui na casa é o pensamento de buscar fortalecer a investigação científica e, acima de tudo, visando respeitar direitos e garantias fundamentais.”

O PGR denunciou que existem — pasmem — 50 mil documentos ‘escondidos’ da Corregedoria, o que levou o MPF a mudar regras de acesso a processos disponíveis no sistema eletrônico interno da instituição.

O PGR também criticou supostos casos de forças-tarefas que escolhem processos por ‘juízos de valores ideológicos’, rompendo com o instituto do Procurador natural, coisa que sempre foi “sagrada” no seio do PJ e do MP. Lembro-me de tantos congressos em que defendi teses sobre o Promotor Natural. Parêntesis: saudades dos congressos do MP.

Já na fala inicial na webinar, Aras disse dos objetivos da sua gestão:

“Não permitir que haja um aparelhamento desta instituição, que importa em segregação de muitos membros que não concordam com esse modo de fazer política institucional que privilegia poucos, somente aqueles que fazem parte de um determinado grupo, e ignora direitos e garantias fundamentais fora e dentro da casa.”

Simples. Duro. No ponto. Aras afirmou ainda que os dados obtidos por membros do MP não podem servir a ‘propósitos anti-republicanos’ e que ‘não se pode imaginar que uma unidade institucional se faça com segredos’.

Mais uma vez, não matem o mensageiro:

“A meta é abrir esta instituição para que jamais se diga que esta instituição possa ter caixas-pretas. A meta é dizer: lista tríplice fraudável nunca mais, porque nós temos relatórios de perícia, um da CGU (Controladoria Geral da União), um do órgão interno e um que ainda não foi entregue pelo Ministério do Exército, que falam que eram fraudáveis. Não posso dizer fraudadas, porque o mecanismo era tão poderoso que não deixava rastros.”

Demais questões podem ser colhidas nas reportagens amplas que foram feitas sobre o debate e a própria webinar.

E, para quiser ir mais a fundo, Reinaldo Azevedo publica conversas entre os procuradores Pozzobon e Dallagnol sobre criar uma empresa de eventos no embalo da “lava jato”. Leiam aqui.

Para mim, que atuei por 28 anos na Instituição do Ministério Público, foi doloroso ouvir algumas coisas. O MP é maior do que isso. Despiciendo repetir e repelir o papel exercido por procuradores como Carlos Lima, quem confessou ao vivo, sem ficar vermelho de vergonha, que a FT tinha tomado lado nas eleições de 2018. Foi na GloboNews.

Fiz várias indagações ao Dr. Aras. E recebi respostas animadoras, como a de que esta gestão da Procuradoria Geral da República não compactua com o lema “os fins justificam os meios”; também foi alvissareiro ouvir que o MP deve agir de forma imparcial — aliás, dias atrás o advogado da CONAMP, ex-PGR Aristides Junqueira, da tribuna do STF, disse a mesma coisa.

Prego há décadas que o MP deve agir como uma magistratura. Quando fui candidato a Procurador-Geral de Justiça no RS, minha plataforma era nessa linha. Ninguém quer ser processado por uma Instituição não isenta. Há um direito fundamental do réu a ser acusado por um órgão imparcial.

O MP tem as mesmas garantias da magistratura. Por quê? Para quê? Simples. Para agir como um magistrado. Fosse para ser um acusador sistemático (antigo Promotor Público), seria mais barato contratar escritórios privados, como em parte ocorre nos EUA.

Augusto Aras colocou o dedo na ferida. Dói. Mas espero que disso se tire lições. Não há espaço para a formação de ilhas dentro do MP. Não há espaço para coisas secretas. Não há espaço, na República, para arapongagem, como denunciou o PGR Aras.

Accountabillity: eis a palavra chave. República e republicanismo — eis o que Aras promete. Cumprimentos ao modo aberto e disposto ao debate público do PGR.

Post scriptum 1. E a mídia critica debate às claras e prefere conjuminações

A mídia brasileira é previsível. Vi e li comentários de Alexandre Garcia e gente da Globonews dizendo-se “surpresos” pelo fato de Aras debater com juristas contrários e críticos à “lava jato”. Ora, ora. Os mesmos jornalistas acharam, à época, que as conversas secretas entre Moro e os Procuradores eram “normais”. Coisa normal entre juiz e membros do MP, bradavam. Normal? Pois é. Agora o PGR vem ao debate público, aberto e transparente e é criticado. Já as conjuminâncias de Moro e a Força Tarefa denunciadas pelo Intercept eram “coisa normal”. Esse Brasil… Se não existisse, teria que ser inventado.

Post scriptum 2. — Advocacia criminal é câncer, diz promotor!

Vejam as distâncias que separam um MP de outro. Enquanto o chefe do Ministério Público Federal diz, claramente, que o MP deve abandonar o punitivismo, que rejeita a tese de que “os fins justificam os meios”, e que as garantias processuais são inegociáveis, um membro do MP-GO, absolutamente na contramão e com farol apagado, diz que a advocacia criminal é um câncer. Dizem que, coincidentemente, foi no mesmo dia 28.

Por isso, também na webinar indaguei de Aras uma urgente reformulação dos concursos públicos. Há que fazer um filtro mais sofisticado e consistente. Afinal, jabuti não sobre em árvore.

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados

Fonte: Conjur

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