“Mandatos coletivos”: novidade ou pleonasmo?

Seja pela natureza historicamente determinada da agremiação pela qual se disputa uma eleição (partidos), seja pelo sistema eleitoral proporcional, ou, por fim, pela secular busca por controle sobre o exercício de mandatos, estes são, sempre, coletivos.

A ideia de “mandatos coletivos” tem ocupado espaço na mídia e em partidos políticos (notadamente PCdoB, PDT, PSOL e PT – citados em ordem alfabética), sendo apresentada como novidade na vida política em face da crise por que passa a democracia representativa brasileira. Analisar a procedência desse alegado ineditismo é o objetivo destes apontamentos.

Como bem registra e analisa Umberto Cerroni¹, partido político em sentido moderno surgiu apenas no século XIX como resultado e mediação das lutas socialistas por reivindicações políticas, principalmente o sufrágio universal, o direito de trabalhadores poderem disputar e assumir mandatos eletivos e destes serem remunerados. Segundo o autor, partido político moderno se definiu pela articulação de duas dimensões inseparáveis: programa e máquina administrativa, ambas inerentemente expressões de um projeto coletivo, o de uma parte da sociedade que, em torno de uma ideologia ou de uma pauta de reivindicações, se põe em movimento e, para tanto, necessita desempenhar tarefas.

Nosso sistema proporcional de escolha de parlamentares, por sua vez, é estruturado em pilares intrinsicamente de conjunto. Ninguém se elege isoladamente, de que é demonstração cabal o quociente eleitoral (atualmente estabelecido pela divisão entre votos válidos pelo número de cadeiras em disputa – no passado, o numerador dessa operação matemática incluía votos brancos). Assim, ao percentual correspondente de 1 vaga para o conjunto de vagas de cada esfera do Poder Legislativo se apura o equivalente ao número de votos que possuem a mesma representatividade no universo dos votos válidos, daqueles atribuídos a alguma candidatura ou legenda no mesmo agrupamento, o partido político.

São raros os casos em que alguma candidatura consegue obter ou até mesmo ultrapassar, apenas com seus votos, o quociente eleitoral. Além do mais, na reforma eleitoral de 2017 se introduziu mais um aspecto que visa fortalecer o peso desse coletivo moderno, o partido, para a definição de quem se elege, ou não. Uma candidatura para poder ser empossada necessita alcançar pelo menos 10% do quociente. Sem a força da chapa, ou seja, apenas com a pujança de algum(a) puxador(a) de votos, a própria representatividade do eleitorado ficará prejudicada.

Por tudo isso há de se reconhecer que a democracia representativa, nascida em meio e por obra do socialismo no século XIX e modificada ao longo dos últimos quase 200 anos, consagra a noção elementar de parte legítima aos partidos que tiverem pelo menos a representatividade junto ao eleitorado que uma cadeira possui em relação ao total de vagas em disputa.

A lógica da representação proporcional se desmorona se o sistema eleitoral for o distrital. Mesmo assim se pode pensar, como no caso do sistema político alemão pós-1945, em votação em listas fechadas (a mais robusta forma de se garantir, proporcionalmente, a vontade de maiorias, simples ou absolutas, em relação a programas partidários ou de coligações partidárias), combinando isso com candidaturas distritais, modalidade mista (sistema proporcional e sistema distrital) que tem se mostrado muito interessante. Um ótimo livro sobre o tema é o de Gianfranco Pasquino, Sistemas políticos comparados.

O mesmo século XIX, com a Comuna de Paris (fugazes dois meses e meio, aproximadamente, mas muito intensos na concepção política, fortemente referenciada nas contribuições de Rousseau e de Marx), nos ofereceu a mais contundente crítica às eventualidades em que mandatários não cumpram os programas ou compromissos pelos quais obtiveram mandatos. Ao invés do voto ser fiduciário e por tempo determinado (como nas democracias que conhecemos na contemporaneidade), a Comuna de Paris ousou – aí sim, de forma inédita – com o mandato imperativo e revogável a qualquer momento, exatamente em face de eventuais rupturas pelos seus delegados em relação ao que deles era esperado.

Portanto, falar em “mandatos coletivos” como se isso fosse portador de inovação democrática é um equívoco. Seja pela natureza historicamente determinada da agremiação pela qual se disputa uma eleição (partidos), seja pelo sistema eleitoral proporcional, ou, por fim, pela secular busca por controle sobre o exercício de mandatos, estes são, sempre, coletivos.

Como todo equívoco, entretanto, a tese de mandatos coletivos subsiste por ter uma tangência com a realidade. Não é incomum parlamentares, após a conquista de vagas no Poder Legislativo, virarem as costas aos programas ou ideologias pelas quais se elegeram e até mesmo levarem a termo, por anos a fio, uma forma de exercer a representação política sem vínculo orgânico com quem é representado, bem como se distanciarem dos estatutos, decisões e exigências partidárias.

Há quanto a esse conjunto de rupturas vários procedimentos ou instrumentos a serem adotados. Um deles é a ampliação e o aprofundamento da fidelidade partidária, fortalecendo, com isso, o controle partidário daquilo que se faz com os mandatos conquistado.

Outra perspectiva para a reforma política que valorizaria a relação com o eleitorado é a coibição das famigeradas legendas de aluguel, estas sim muito dadas à política da barganha que corrói todo o sistema político.

Mas o próprio eleitorado contribui para a constituição de práticas individualistas por parte de quem exerce cargo eletivo no Legislativo. Nesse sentido, a ideologia antipartidária, que criminaliza os partidos e que se manifesta pela máxima vulgarizada segundo a qual “não voto em partido, voto em pessoas”, é forte indicação de que também quanto a isso é na sociedade civil que se encontram as raízes de todo e qualquer processo presente no Estado (sociedade política).

Na esteira da ideologia antipardária se inserem organizações que se mostram como apartidários, ou acima dos partidos, embora, por constituírem base de racionalidade para segmentos na sociedade civil sejam, em termos gramscianos, plenamente partidos políticos, em relação aos quais seria importante haver investigação sobre suas fontes de financiamento. Em geral, suas plataformas programáticas são de inspiração liberal e de um certo gerencialismo como rumo para a administração pública.

Partidos que se organizam em correntes, tenham o nome que tiverem tais frações internas (como, por exemplo, coletivos), são mais afeitos à tradução, para campanhas e exercícios de cargos eletivos, dessa lógica de “mandatos coletivos”. Qual a garantia de que coletivos intrapartidários sejam mais eficazes do que os partidos para que programas, compromissos e estatutos tenham pleno cumprimento pelos eleitos?

Quanto falta para se chegar à disseminação de candidaturas avulsas, ou da tese do distritão, como supostos remédios à crise por que passam as instituições da democracia representativa que conhecemos?

Decididamente, não precisamos inventar a roda. Modismos, ainda mais se forem pleonasmos e decorrerem de insuficiente conhecimento histórico e teórico, podem até surfar em ondas, mas não nos garantirão um sistema político adequado ao que alguns partidos buscam, o de um controle social da economia e da política pela maioria social, tendendo à superação do modo de produção capitalista, no âmbito do qual se encontram as determinações para o próprio sistema político.

Notas:
1 – CERRONI, Umberto.   Teoria de partido político.   São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1982.

Edilson José Graciolli – Professor da Universidade Federal de Uberlândia, Cientista Político e Sociólogo, Presidente do PCdoB em Uberlândia, cidade em que é vereador e pré-candidato a prefeito.