Ainda sobre os “mandatos coletivos”

A expressão “co-candidatos(as)” é, sinceramente, um mistério linguístico. Se a expressão quiser designar um conjunto de apoiadores de uma candidatura, isso já existe em partidos, notadamente naqueles, como o nosso, em que o método de construção partidária é o centralismo democrático

No início da tarde do dia 30 de julho de 2020 publiquei um texto neste espaço, Vermelho, “Mandatos coletivos: novidade ou pleonasmo”, prontamente (na noite do mesmo dia) objeto de uma crítica respeitosa por parte do camarada Theófilo Rodrigues (“Candidaturas coletivas: novidades para reforçar os partidos”). No mesmo diapasão do debate pautado pelo respeito a ideias contrárias, embora sem a impressionante rapidez da réplica, apresento aqui uma tréplica.

Neste sentido, inicio por apontamentos que rebatem as críticas ou comentários sobre autores e obras por mim citados.

Em primeiro lugar, Umberto Cerroni não anda sumido das grades curriculares. Em vários cursos sobre sistemas políticos, em Ciências Sociais, Economia e Relações Internacionais, continua a ser leitura obrigatória. Mesmo que estivesse desaparecido, isso não deveria ser relevante no plano da argumentação. Do contrário, Lênin, um autor proscrito da vida acadêmica, com honrosas exceções, poderia ser desconsiderado por nós, do PCdoB, como referência de fundo? Claro que não. Além do mais, neste quesito, há de se valorizar a autoridade do argumento e, no caso em tela, como a análise do Umberto Cerroni lança luzes acerca da origem do partido político em sentido moderno (dimensão programática + máquina administrativa para mobilização) que permanecem válidas.

Um segundo aspecto ainda introdutório nesta tréplica diz respeito ao que Rodrigues afirmou ser meu posicionamento: “Graciolli elogia como possibilidade de reforma política a implementação do chamado “voto distrital misto” no Brasil, tendo como modelo o sistema alemão” e, na sequência, “…Graciolli não dá um passo além na qualificação de nosso sistema eleitoral. No Brasil temos um sistema que é utilizado em pouquíssimos países do mundo, qual seja, o voto proporcional de lista aberta”, sendo estas as duas críticas apresentadas ao meu artigo.

Recoloquemos, adequadamente, os termos da minha manifestação sobre voto distrital e o destaque que dei ao caso alemão, citando uma obra fundamental. Disse, em meu texto, o seguinte:

A lógica da representação proporcional se desmorona se o sistema eleitoral for o distrital. Mesmo assim se pode pensar, como no caso do sistema político alemão pós-1945, em votação em listas fechadas (a mais robusta forma de se garantir, proporcionalmente, a vontade de maiorias, simples ou absolutas, em relação a programas partidários ou de coligações partidárias), combinando isso com candidaturas distritais, modalidade mista (sistema proporcional e sistema distrital) que tem se mostrado muito interessante. Um ótimo livro sobre o tema é o de Gianfranco Pasquino, Sistemas políticos comparados.

Na esteira do que tal autor analisa acerca do sistema alemão pós-1945, entendo que o sistema eleitoral para o Legislativo valoriza sobremaneira exatamente o voto em lista fechada, diferentemente do que Rodrigues parece deduzir acerca do que é meu posicionamento. O voto para o parlamento, no caso em questão, é dado na lista fechada de um partido (ou coligação/federação de partidos), definindo-se, com isso, o percentual de cadeiras que cada partido terá. É um sistema proporcional, repito, com base em lista fechada, que é o que defendo! Ao lado desse voto substancial, cada eleitor pode também votar em algum nome que dispute vaga pelo critério distrital, mas, atenção, do mesmo partido que escolheu inicialmente. Assim, por hipótese, se o partido “A” fez 20% das cadeiras pelo primeiro voto (que é o fundamental), mas obteve apenas metade dessas cadeiras com vitórias pelo critério distrital, a outra metade será preenchida pela sequência de nomes da lista fechada. É a única possibilidade de voto misto que admito e até vejo como interessante, pois se permite a cada partido (ou coligação/federação).

Assim sendo, quanto ao que uma reforma política deveria incluir para aperfeiçoamento do sistema eleitoral tenho plena concordância em relação ao voto em lista fechada. A inclusão, ou não, de uma modalidade de voto distrital é, para mim, aspecto secundário e somente aceitável nos termos que aqui reitero e tento, digamos, detalhar.

A expressão “co-candidatos(as)” é, sinceramente, um mistério linguístico. Se a expressão quiser designar um conjunto de apoiadores de uma candidatura, isso já existe em partidos, notadamente naqueles, como o nosso, em que o método de construção partidária é o centralismo democrático, pilar que garante, também, os instrumentos necessários para que decisões em instâncias partidárias sejam seguidas por todos os militantes, de que não são exceção os que obtém mandato. Da atuação parlamentar, à composição de assessoria, passando pelas bandeiras e planos de governo, tudo isso está, conforme tal método, subordinado ao partido.

Por outro lado, candidaturas sempre são coletivas pelos argumentos que sistematizei no texto que deu origem a este debate: vínculo com um programa, submetidas ao quociente eleitoral e, há muito, pelo menos desde a Comuna de Paris, alvo de ações para um controle sobre o que se faz delas, na campanha e nos mandatos eventualmente obtidos.

Qual, portanto, a novidade trazida por “mandatos coletivos”? A disputa por direção moral, intelectual e política (hegemonia, em termos gramscianos) que um partido precisa empreender na sociedade civil é tarefa posta pelo menos deste os anos 1930, quando Gramsci percebeu, como ninguém, que é na sociedade civil que visões de mundo são elaboradas, difundidas e disputadas por meio dos aparelhos “privados” de hegemonia. Cerroni, ao elaborar sua pertinente teoria de partido, mostrou que, com o desenvolvimento da sociedade capitalista (sempre uma contradição em movimento), os partidos passam a ter que dialogar com temas e interfaces que, originalmente, não faziam parte de sua constituição, tais como a cultura, a ciência, a crescente complexidade da totalidade social, sob pena de, se não o fizerem, se isolarem e se constituírem como guetos no sistema político.

Quais são as evidências de que “… as candidaturas coletivas não estimulam disputas intrapartidárias” (Rodrigues), se elas, como regra, estão vinculadas a pautas identitárias (“racismo”¹, feminismo, luta contra a lgbtfobia e meio ambiente), todas assentadas em opressões realmente existentes que precisam, indubitavelmente, ser enfrentadas e superadas, mas que possuem, sob diversas abordagens, a pretensão de se converter em “questões únicas” (István Mészáros)? Estas, em partidos organizados em correntes e, principalmente, em coletivos, funcionam como partidos dentro de partidos, num processo preocupante de estilhaçamento por dentro dos… partidos. Dessa pulverização e fragmentação do sistema partidário até a fragilização do sistema de representação política se está a um passo.

Por fim, dois comentários sobre parte do parágrafo final do texto de Rodrigues. Nele se diz que “há mandatos e mandatos. Uns mais próximos da sociedade civil, outros mais distantes. O que as candidaturas coletivas fazem é aproximar essas duas pontas. Só por isso, essa inovação institucional já deveria merecer nossos aplausos. A democracia agradece”.

Nosso Partido é um partido classista, cujo objetivo estratégico supõe, inclusive, a separação entre governados e governantes, se considerarmos que esta é o resultado de um longo e dramático processo histórico intrínseco ao fenômeno fundante, a divisão das sociedades em classes. Tal aproximação entre sociedade civil e sociedade política, que Gramsci denominava de sociedade auto-regulada (expressão com que buscou driblar a censura de Mussolini, em face da qual falar em comunismo traria graves consequências) exige muito mais do que o enfrentamento da crise por que passa a democracia.

Não é, entretanto, irrelevante enfrentar as fragilidades da democracia representativa, combinando-a com a democracia participativa e formas de democracia direta. Tudo isso requer, sim, inovações institucionais. Mas “mandatos coletivos” não correspondem a essa pretensão ou necessidade. Nenhuma candidatura logrará sucesso em se registrar como “co-candidatura”, nem encontrará respaldo em, caso obtenha sucesso nas eleições, um revezamento entre os responsáveis pelo mandato. Este sempre estará vinculado a um(a) mandatário(a), que, se for de um partido forte, como o PCdoB, dentre outros, estará subordinado ao programa, ao estatuto, ao controle de instâncias e ao acompanhamento e cobrança dos militantes que o viabilizaram.

Notas:
1 – A ressalva designada, aqui, pelas aspas evidentemente não desconsidera, de forma alguma, a discriminação que, em países como o Brasil, pretos e pardos (negros, segundo a classificação do IBGE) sofrem há séculos. O que se destaca é a improcedência da própria noção, ou conceito, de raça, nos termos desenvolvidos por Claude Lévi-Strauss em Raca e História, segundo os quais as culturas não podem ser deduzidas de supostas aptidões fisiológicas ou anatômicas de negros, amarelos ou brancos.

Edilson José Graciolli – Professor de Ciência Política e Sociologia na Universidade Federal de Uberlândia; presidente do PCdoB em Uberlândia, cidade na qual é vereador e pré-candidato a prefeito para as eleições 2020.