Um pouco mais sobre candidaturas coletivas

Das mais diversas formas observadas, a característica principal de um modelo de candidatura coletiva é obviamente a ideia de um projeto coletivo mínimo, compartilhado por aqueles e aquelas que aceitam fazer parte da candidatura.

É com muito apreço que venho acompanhando o debate nesse portal, Vermelho, acerca das candidaturas coletivas. Os textos publicados pelos camaradas Edilson Graciolli (“Mandatos coletivos: novidade ou pleonasmo” e Ainda sobre os “mandatos coletivos”) e Theófilo Rodrigues (“Candidaturas coletivas: novidades para reforçar os partidos”), ambos cientistas políticos de longa trajetória, trazem pontuações importantes. Em tempos de “cancelamentos”, espaços de reflexões coletivos são cruciais para produção de sínteses.

Me recuso aqui, enquanto uma recém-intitulada mestra em Ciências Sociais, debater acerca do uso ou não uso de Umberto Cerroni ou de qualquer outro marxista nas grades curriculares das graduações brasileiras. Cerroni é um importante estudioso marxista-gramsciano, certamente admirado por Rodrigues tanto quanto por Graciolli. Também sequer tenho a pretensão de debater sobre a necessidade da reforma do sistema político-eleitoral brasileiro no que se refere ao voto proporcional. O meu foco enquanto cientista social neste texto é debater alguns dos pontos suscitados – ao meu ver, incompreendidos – sobre as candidaturas coletivas.

Como apontado, a “novidade” das candidaturas coletivas para as eleições de 2020 não é bem uma novidade. Rodrigues recorda bem que esse modelo de candidatura surgiu no Brasil em 2016, surfando na onda dos “sem partido”. A primeira candidatura coletiva foi eleita neste mesmo ano  na cidade de Alto Paraíso, em Goiás, defendendo o apartidarismo e o ecofederalismo. Nem mesmo esse modelo é novidade dentro da esquerda: o PSOL em 2018 elegeu duas candidaturas coletivas (Bancada Ativista em São Paulo, e Juntas em Pernambuco). Logo, não há nada de ineditismo nesse modelo, senão ser a primeira vez que um Partido Comunista neste país passa a ter suas próprias candidaturas coletivas.

Das mais diversas formas observadas, a característica principal de um modelo de candidatura coletiva é obviamente a ideia de um projeto coletivo mínimo, compartilhado por aqueles e aquelas que aceitam fazer parte da candidatura. Tenho acordo com tudo o que Graciolli aponta como “expressões de um projeto coletivo”: o partido político moderno. Teoricamente, as dimensões citadas por Cerroni, autor utilizado por Graciolli, são o que torna o partido político instrumento fundamental para o funcionamento do nosso sistema político-eleitoral. Contudo, o ser desafia o dever ser. Rodrigues traz uma reflexão sobre o processo de voto proporcional de lista aberta no Brasil abraçada pelo senso-comum: “consequência desse processo é a personalização da política e o enfraquecimento dos partidos que se distanciam do eleitorado, não obstante a alta disciplina partidária no Congresso Nacional”. Graciolli também aponta o mesmo sobre políticos que se distanciam dos programas e até mesmo de decisões partidárias. Ouso a dizer que essa consequência não é necessariamente consciente, mas é atrelada aos valores impulsionados pela sociedade capitalista. Logo, me custa a acreditar que é aguardando uma reforma que aponte a “ampliação e o aprofundamento da fidelidade partidária” que resolveremos essas consequências danosas ao sistema eleitoral democrático.

Então, sustentados no materialismo histórico-dialético, cabe aos comunistas analisar o processo do sistema político-eleitoral burguês ao qual estamos inseridos, inclusive a própria instituição de partido político, a partir de premissas leninistas fundamentais: a tática política e a estratégia política. Não pretendo divagar aqui sobre a estratégia política dos comunistas neste tempo histórico – aos que desconhecem, recomendo a leitura dos documentos políticos do Comitê Central do PCdoB -, e sim debater os apontamentos feitos nos últimos três textos à luz desta estratégia. Entendendo o tamanho do desafio apontado para o primeiro Partido Nacional do país nesta primeira eleição municipal com a proibição de coligações para o pleito proporcional, é tática a construção de candidaturas coletivas ao PCdoB.

Por que é tática? Pelos motivos que o próprio Graciolli apresenta em seu texto: o PCdoB, diferente da quase totalidade de partidos de esquerda, é regido pelo centralismo democrático na sua construção política, possui estratégia política una, sem correntes internas, que traduz em seus documentos orientações políticas para aqueles e aquelas que se tornam mandatários de cargo eletivo no  poder público, e que não tem receio em expulsar quem contraria esses documentos. Não há coletivos intrapartidários dentro do PC do Brasil, logo não há qualquer risco de que o programa dos comunistas não tenha que ser plenamente cumprido também pela candidatura coletiva.

A candidatura coletiva comunista não é outra coisa, senão a tradução mais recente do combate ao personalismo na política! E não há outro partido, pelos motivos citados, que possa cumprir melhor a essência da candidatura coletiva que o PCdoB. E isso não é sobre “inventar a roda”, mas é sobre utilizar como tática um modelo que poderia ter sido perfeitamente criado pelos e pelas comunistas, para apresentar através de uma nova forma de propaganda as suas ideias coletivas. 

Graciolli apresenta uma questão, que nos remete àquela já conhecida dicotomia pautas identitárias – pautas econômicas: 

Quais são as evidências de que “… as candidaturas coletivas não estimulam disputas intrapartidárias” (Rodrigues), se elas, como regra, estão vinculadas a pautas identitárias (“racismo”¹, feminismo, luta contra a lgbtfobia e meio ambiente), todas assentadas em opressões realmente existentes que precisam, indubitavelmente, ser enfrentadas e superadas, mas que possuem, sob diversas abordagens, a pretensão de se converter em “questões únicas” (István Mészáros)?

O que foi chamado de pautas identitárias é entendido enquanto questões estratégicas pelos e pelas comunistas. Não há primazia da classe, como também de nenhuma característica em específico quando se trata de analisar e construir a forma de enfrentamento às desigualdades referidas. Quando estudamos os textos sobre a teoria socialista-emancipacionista, construídas pelas comunistas, de pronto aprendemos sobre a importância do exercício do entrelaçamento das características subjetivas e os impactos dialéticos na materialidade. O questionamento que deveria ser feito é: por que as mulheres, brancas, negras ou LGBTs, são aquelas que acionam o modelo de candidatura coletiva? Será que a resposta ‘porque são identitárias, pós-modernas’ ou até mesmo, afirmar que querem estilhaçar os partidos por dentro responde a este questionamento?

Eu acredito que não. A literatura da Ciência Política que traz para o centro o estudo de gênero aponta o quanto o campo da política é hostil às mulheres. Manchetes a cada dois anos inundam a grande mídia demonstrando como o Brasil ainda é sub representado quando analisamos a quantidade de mulheres e negros nos espaços de poder. O que torna tão difícil cogitar a hipótese de que a candidatura coletiva é um instrumento estratégico para que uma mulher fortaleça a outra a estar no espaço da política? Se mulheres dedicam mais tempo ao trabalho doméstico, se mesmo com a reserva de porcentagem do fundo eleitoral o dinheiro é insuficiente para que ela dedique todo seu tempo à campanha política, e sabendo que quando alinhamos o gênero à classe e à raça os indicadores pioram, por que desconsiderar a hipótese de que essa pode ser sim uma forma de garantir mais “minorias” dentro do espaço da política?

Acredito que já amadurecemos teoricamente o suficiente para não concluir ou induzir que tudo que envolve mulher, negro, LGBT é uma trama da Fundação Ford para acabar com o debate da luta de classes ou “partido classista”. Por isso mesmo, é louvável todo o esforço envidado pelas direções municipais do PCdoB de todo país na construção das nominatas para eleição de vereança, entendendo as candidaturas coletivas como tática. A primeira pré-candidatura lançada foi em Porto Alegre, cidade em que temos Manuela D’Avila como pré-candidata à prefeitura. Depois dela surgiram pré-candidaturas desse formato nas capitais São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, e em cidades importantes como Santos, Passo Fundo e Ouro Preto. Todas elas com presença de conhecidos quadros do partido, que assumiram tarefas importantes nas organizações e entidades dirigidas pelos comunistas. Ignorar isto é tratar essas iniciativas como mero capricho individualista fruto do voluntarismo típico do esquerdismo – o que definitivamente não são.

Por fim, não há mistério linguístico algum na expressão “cocandidatas” (sim, tudo junto, conforme o atual acordo ortográfico vigente). Como bem diz o significado do prefixo “co”, o seu uso traz a palavra candidata a ideia de junção, união, companhia, força, ou seja, exatamente a ideia de uma candidatura coletiva. Uma cocandidata não é uma apoiadora apenas, que vai montar comícios domiciliares ou panfletar. Ela é parte integrante da cara e cabeça da candidatura: participa inteiramente do processo de construção da candidatura, e caso eleitas, partilham das decisões do mandato. É claro que há questões no ordenamento jurídico que não se pode ignorar: registro da candidatura em um CPF apenas, a foto de uma só pessoa na urna, ao passo que há também uma lacuna no ordenamento jurídico que não obriga que o nome da candidatura registrada seja de uma pessoa física. Mas esse é um outro debate. Neste texto, o importante é saudarmos àquelas e àqueles comunistas que toparam o desafio de serem cocandidatas em um formato novo de candidatura, que não foge à subordinação “ao programa, ao estatuto, ao controle de instâncias e ao acompanhamento e cobrança dos militantes que o viabilizaram”, assim como aquelas candidaturas decorrentes de filiação democrática pelo Movimento 65. Táticas políticas importantes para o tamanho do desafio do PCdoB nas eleições 2020.

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