Estados Unidos x China: nova Guerra Fria?

“A primeira reunião oficial entre representantes dos dois governos na era Biden deixou evidente o limitado espaço existente para a melhora das relações bilaterais entre China e Estados Unidos.”

Já era sabido que a área do governo Biden que apresentaria menos mudanças em relação à orientação dada no governo Trump seria a das relações com a China. O amplo consenso bipartidário anti-China e a visão majoritariamente negativa do público norte-americano em relação àquele país não deixam muito espaço para mudanças radicais na orientação de política externa dos Estados Unidos em relação ao seu principal competidor estratégico. Também contribui para isso a estratégia dos republicanos de colocar a questão das relações com a China no centro de sua disputa política com os democratas. Qualquer piscadela que Biden der em direção à China será interpretada como demonstração de fraqueza da administração democrata e explorada politicamente pelos republicanos.

A primeira reunião oficial entre representantes dos dois governos na era Biden, realizada no Alasca, na cidade de Anchorage, nos dias 18 e 19 de março, deixou evidente o limitado espaço existente para a melhora das relações bilaterais entre China e Estados Unidos. Pelo lado americano estiveram presentes Antony Blinken, secretário de estado dos EUA, e Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional. Pelo lado chinês, Yang Jiechi, membro da cúpula do PCCh e principal dirigente chinês para a área de política externa, e Wang Yi, ministro das relações exteriores. Uma reunião que, em princípio, deveria servir para recolocar as relações bilaterais em um novo diapasão, mais diplomático e institucional, e tentar reconstruir as pontes implodidas por Trump, serviu mais para reafirmar diferenças e destilar acrimônias e recriminações mútuas.

Mesmo tendo frustrado as expectativas iniciais, principalmente para o lado chinês, não se pode dizer, entretanto, que o encontro tenha sido um fracasso completo. Ao contrário, ao final os dois lados fizeram questão de frisar seus aspectos positivos, nomeadamente a concordância em cooperar na questão das mudanças climáticas.

A política externa anti-chinesa dos Estados Unidos é o traço comum entre republicanos e democratas.

O fato de o governo americano ter imposto sanções a dirigentes da China e de Hong Kong dois dias antes da reunião já sinalizava que, pelo menos do lado americano, não havia interesse em retomar o diálogo bilateral em novas bases. Como afirmou Elizabeth Economy, uma das maiores especialistas em China nos Estados Unidos: “Não vamos voltar aos dias do diálogo estratégico e econômico”.[1]

Ao fazer um balanço do encontro no Alasca, o centenário jornal de Hong Kong “South China Morning Post” afirmou que “os dois lados estão em desacordo em temas como Hong Kong e Xinjiang, que Pequim insiste não serem da conta de Washington, mas concordaram em trabalhar juntos em temas como mudanças climáticas e estabilidade regional”[2].

Ao fazer uma análise mais detalhada do evento, o jornal enumera os aspectos em que houve acordo: a cooperação para o combate às mudanças climáticas e à pandemia da Covid-19; melhora no intercâmbio de pessoas (facilitação de vistos) e as questões regionais nas quais os interesses estão alinhados (Irã, Coréia do Norte, Afeganistão e Myanmar).

Os pontos em que não houve acordo são Hong Kong e Xinjiang, que a China considera assuntos domésticos e Taiwan, para quem a China exige que os Estados Unidos parem de vender armas e se abstenham de apoiar as forças separatistas. Com relação aos ataques dos Estados Unidos ao Partido Comunista Chinês, o representante chinês afirmou que o partido desfruta de amplo apoio da população e que os Estados Unidos deveriam parar de interferir em negócios internos da China, uma vez que eles não tinham nada do que se orgulhar em um momento em que os negros norte-americanos estavam sendo assassinados. “Não acho que a esmagadora maioria dos países do mundo reconheceria que os valores universais defendidos pelos Estados Unidos ou que a opinião dos Estados Unidos poderia representar a opinião pública internacional”, disse Yang Jiechi, o diplomata mais graduado da China, em uma longa declaração na abertura da sessão[3].

As questões econômicas ficaram fora da discussão, uma vez que os Estados Unidos não pretendem retirar as tarifas impostas por Trump às exportações chinesas e nem as restrições impostas pelo governo Trump às empresas chinesas de alta tecnologia. Das seis grandes empresas de tecnologia na China – Huawei, ZTE, Xiaomi, Alibaba, Baidu e Tecent – as três primeiras, que atuam na produção de equipamentos de telecomunicações sofreram os maiores impactos.  Segundo o jornal Valor Econômico, “No mundo, [a Huawei] teve queda de 11% na receita do quarto trimestre [de 2020], para 220,1 bilhões de yuans (US$ 33,5 bilhões), em relação a igual período de 2019. No acumulado de 2020, o efeito da pressão política foi diluído, uma vez que as vendas haviam sido mais fortes no início do ano – a receita cresceu 3,8%, para 891,43 bilhões de yuans (US$ 136,71 bilhões)”[4]

Mas nem por isso se observam sinais de que a economia chinesa esteja sendo afetada de forma significativa. Segundo previsões da OCDE, a China deverá crescer 7,8%, em 2021 e 4,9%, em 2022.   Ao tentar cortar os laços econômicos com a China, os Estados Unidos correm o risco de serem eles próprios os maiores prejudicados.

Como lembra matéria publicada na edição de 20 de março da revista inglesa The Economist, “A China é o maior parceiro comercial de bens de 64 países, contra apenas 38 da América. Em vez de isolar a China, a América e seus aliados podem acabar se isolando. No longo prazo, ao contrário da União Soviética, encharcada de petróleo, a China é grande, diversa e inovadora o suficiente para se adaptar às pressões do exterior. Ela está testando uma moeda digital, que pode eventualmente rivalizar com o dólar como forma de liquidar o comércio. Tem como objetivo ser autossuficiente em semicondutores”[5].

A agressividade norte-americana aproxima cada vez mais a parceria entre China e Rússia.

Na mesma matéria, a The Economist, lembra que “se poderia pensar que a morte do liberalismo no centro financeiro da Ásia, que hospeda US $ 10 trilhões em investimentos internacionais, provocaria pânico, fuga de capital e um êxodo de negócios. Em vez disso, Hong Kong está passando por um boom financeiro. As ofertas de ações [na Bolsa de Hong Kong] dispararam com a listagem das principais empresas da China. As empresas ocidentais estão no meio disso: os principais subscritores são Morgan Stanley e Goldman Sachs. No ano passado, o valor dos pagamentos em dólares americanos compensados em Hong Kong, um centro para a moeda de reserva mundial, atingiu um recorde de US $ 11 trilhões”.

A matéria lembra ainda que, apesar de todas as acusações, as empresas ocidentais estão muito felizes na China. “Muito feliz”, diz Siemens; “Fenomenal”, avalia a Apple; e “notável”, diz Starbucks. A China continental atraiu US $ 163 bilhões em novos investimentos multinacionais no ano passado, mais do que qualquer outro país. Ela está abrindo os mercados de capitais do continente para estrangeiros, que investiram US $ 900 bilhões, em uma mudança marcante para as finanças globais”.

Além disso, continua a matéria, “a atração que a China exerce não é mais apenas uma questão de tamanho – embora, com 18% do PIB mundial, ela também tenha. O país também é onde as empresas descobrem tendências e inovações de consumo. É cada vez mais onde os preços das commodities e o custo de capital são definidos, e está se tornando uma fonte de regulamentações. Lembra ainda que “A América liderou uma campanha de três anos contra a Huawei, empresa que acusa de espionagem. Dos 170 países que usam seus produtos, apenas uma dúzia ou mais o proibiram. Enquanto isso, o número de empresas chinesas de tecnologia com valor superior a US $ 50 bilhões aumentou de sete para 15”.

Talvez o aspecto que mais diferencie a abordagem do governo Biden da administração anterior em relação à China seja a sua tentativa de construir uma ampla coalizão internacional anti-China. Diferentemente de Trump, que abriu simultaneamente várias frentes de conflito com a maioria dos parceiros comerciais e aliados dos Estados Unidos, Biden quer seguir um caminho diferente.

A movimentação das autoridades norte-americanas, antes e depois da reunião com os chineses no Alasca, evidencia essa nova estratégia. Alguns dias antes da reunião em Anchorage, o secretário de Estado Antony Blinken fez visitas ao Japão e à Coreia do Sul. Na visita ao Japão, Blinken acusou a China de realizar “coerções e agressões” contra seus vizinhos e avisou que os Estados não iriam permitir. Conseguiu uma declaração conjunta ao final da visita ao Japão, afirmando que a conduta internacional da China é inaceitável. Na visita à Coréia do Sul, a declaração final não faz nenhuma menção à China, mas o propósito da visita era o mesmo. É interessante ver os norte-americanos falarem em coerção por parte da China, quando quem tem exercido a “diplomacia da coerção” há décadas tem sido os Estados Unidos, haja vista os bloqueios americanos a Cuba, Venezuela, Irã, Iraque e Coréia do Norte, só para ficar nos casos mais conhecidos.

Biden quer envolver os países do chamado “Quad” (Estados Unidos, Japão, Índia e Austrália) em sua cruzada anti-China. No dia 12 de março, os norte-americanos promoveram uma reunião virtual do grupo. Participaram o primeiro-ministro da Austrália, Scott Morrison, o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, o primeiro-ministro do Japão, Yoshihide Suga e o presidente americano. No discurso de abertura, o primeiro-ministro indiano afirmou que o grupo era “uma força para o bem global”. Embora não tenha havido menção à China na reunião, o “Quad” é hoje a peça-chave para a manutenção da primazia americana na chamada região do “Indo-Pacífico”[6].

Os esforços dos Estados Unidos para a construção dessa frente anti-China não se limitam à região da Ásia/Oceania. No dia 22 de março, três dias depois da reunião com os chineses no Alasca, o governo Biden, em coordenação com a União Europeia, o Reino Unido e o Canadá, impôs sanções a dirigentes chineses como forma de punir a China pelos alegados abusos dos direitos humanos em Xinjiang.  Um dia depois, Blinken participou da reunião de primeiros-ministros da Otan e novamente afirmou que a organização deve estar deve ser “focada em alguns dos desafios que a China representa para a ordem internacional baseada em regras”[7].

Construir essa frente ampla contra a China não é algo tão simples. Como observamos acima, China é o maior parceiro comercial de bens de 64 países, contra apenas 38 dos Estados Unidos. Em vez de isolar a China, os Estados Unidos é que podem acabar se isolando. Clyde Prestowitz, um veterano negociador comercial dos Estados Unidos, que chefiou a primeira missão comercial para a China, em 1982, e foi assessor do presidente Reagan, acaba de publicar um livro sobre o que ele acha deveria ser a estratégia americana para conter a China. Logo no início ele relata uma conversa que teve, no início de 2019, como uma alta autoridade de Singapura, a respeito das relações daquele país com a China. Na conversa, essa alta autoridade de Singapura afirma o seguinte: “nós não queremos ser forçados a escolher entre os Estados Unidos e a China. Claro, em nossos corações torcemos pelos Estados Unidos. Mas para o bem de nossos bolsos e nossos estômagos, nós temos que ser cuidadosos quando tratamos com a China”[8].

Esse é, com raras exceções, o sentimento generalizado dos aliados dos Estados Unidos no mundo, mas cuja economia depende cada vez do acesso ao mercado chinês. A China ultrapassou os Estados Unidos como maior parceiro comercial da Alemanha e tornou-se o principal mercado para muitas de suas empresas. A Mercedes-Benz vendeu, em 2020, três vezes mais automóveis para a China que para os Estados Unidos.

A reedição de uma nova versão da Guerra Fria, tendo agora Estados Unidos e China como polos antagônicos não parece viável. O professor Thomas J. Christensen, da Columbia University, publicou um artigo na revista Foreign Affairs[9] no qual aponta as três condições essenciais na Guerra Fria entre Estados Unidos e URSS, que não estão presentes na conjuntura atual. Em primeiro lugar Estados Unidos e China não estão envolvidos em uma guerra ideológica para conquistar corações e mentes no mundo. Em segundo lugar, graças à globalização é difícil dividir o mundo atual em blocos econômicos separados. Finalmente, Estados Unidos e China não estão liderando sistemas de alianças opostos, como os que levaram, por exemplo, às guerras da Coréia e do Vietnam ou às crises nucleares de Berlim e Cuba.

Embora a China seja a principal preocupação dos Estados Unidos, uma vez que é o único país que pode desafiá-los tanto no campo econômico, quanto no militar e no tecnológico, o governo Biden também voltou suas baterias contra a Rússia de Vladimir Putin. Depois de um relatório de uma agência de inteligência americana afirmar que Putin teria diretamente ordenado uma operação para interferir nas eleições americanas de 2020 e prejudicar a campanha do presidente, Biden chamou seu colega russo de assassino e disse que ele iria pagar pelo que fez. Putin reagiu friamente, desejando boa saúde para Biden, mas apontou as graves violências da formação dos Estados Unidos contra as populações indígenas e os negros, sem deixar de registrar as duas bombas atômicas lançadas contra o Japão. Dias depois, os ministros das relações exteriores da China e da Rússia se reuniram para traçar uma estratégia conjunta para deter a coerção do Ocidente sobre seus países. Uma aliança militar formal entre China e Rússia, no entanto, é pouco provável. Difícil imaginar a China interferindo no conflito da Criméia ou os russos no estreito de Taiwan.


Notas

[1] Sevastopulo, D and Mitchell, T. US signals tough stance ahead of first meeting with China. Financial Times, March 17, 2021. Disponível em: https://www.ft.com/content/b8af8a5b-591d-4721-8a6c-4da5481f3348 Consultado em 08/04/2021

[2] Lau, M. Alaska summit: what the US and China agree on, and what still divides them. South China Morning Post, Mar 20th, 2021. Disponível em: https://www.scmp.com/news/china/diplomacy/article/3126287/alaska-summit-what-us-and-china-agree-and-what-still-divides Consultado em 08/04/2021

[3] Sanger, D. E. That Was Fast: Blowups With China and Russia in Biden’s First 60 Days. New York Times, March 20, 2021. Disponível em: https://www.nytimes.com/2021/03/20/us/politics/china-russia-biden.html Consultado em 08/04/2021

[4] Santana, I. Pivô em disputa, Huawei cresce 10%. No mundo, a receita caiu 11% no 4º trimestre, mas no ano houve expansão. Valor Econômico, 01/04/2021. Disponível em: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2021/04/01/pivo-em-disputa-huawei-cresce-10.ghtml Consultado em 08/04/2021

[5] The Economist. How to deal with China. An epic global contest between autocracy and liberal values lies ahead. The Economist, Mar 21st, 2021 edition. Disponível em: https://www.economist.com/leaders/2021/03/20/how-to-deal-with-china Consultado em 08/04/2021.

[6] Prashad, V. Biden continues the US conflict through the QUAD. People’s Dispatch, March 15, 2021. Disponível em: https://peoplesdispatch.org/2021/03/15/biden-continues-the-us-conflict-with-china-through-the-quad/ Consultado em 08/04/2021

[7] Zheng, S. US, China look to shore up ties with allies after Alaska clash. South China Morning Post, 24 Mar 2021. Disponível em: https://www.scmp.com/news/china/diplomacy/article/3126767/us-china-look-shore-ties-allies-after-alaska-clash  Consultado em 08/04/2021

[8] Prestowitz, C. The World Turned Upside Down. America, China, and the Struggle for Global Leadership. New Haven: Yale University Press, 2021. P.7.

[9] Christensen, T. J. There Will Not Be A New Cold War. Foreign Affairs, March 24, 2021. Disponível em: https://www.foreignaffairs.com/articles/united-states/2021-03-24/there-will-not-be-new-cold-war Consultado em 08/04/2021

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