“Marco temporal não pode determinar demarcação de terra indígena”

A afirmação é de Tiago Nhandewa, ao comentar sobre o julgamento de um caso que pode afastar a tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas

Manifestação de mulheres indígenas contra o PL 490 e o marco temporal que legaliza o genocídio; por demarcação já. Em frente ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região, Avenida Paulista, São Paulo, SP. 30 de junho de 2021. Foto: Roberto Parizotti.

O Supremo Tribunal Federal está analisando o julgamento de um caso que pode afastar a tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas. Será analisado um pedido de reintegração de posse da terra indígena Ibirama-Laklãnõ, movido pelo Instituto de Meio Ambiente de Santa Catarina contra os povos guarani, kaingang e xokleng.

O que está em discussão é a tese jurídica do marco temporal e o STF deve se posicionar sobre o tema em uma decisão de recurso extraordinário com repercussão geral. Por isso, o julgamento é tido como importante: a decisão pode se estender para outros casos de demarcação de terras indígenas no País. O voto do ministro relator Edson Fachin, que decidiu pela inconstitucionalidade da tese do marco temporal, já foi divulgado. 

A tese do marco temporal prevê que o direito à demarcação de terras seria concedido somente aos povos indígenas que as ocupavam no momento da promulgação da Constituição de 1988. É uma tese jurídica, resultado de uma jurisprudência do STF estabelecida em 2009, quando houve fixação de regras para o processo de demarcação da Raposa Serra do Sol, com um marco temporal de ocupação indígena.

Aprovação do PL 490

O julgamento no STF sobre essa tese do marco temporal acontece uma semana depois da aprovação, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ), do Projeto de Lei (PL) 490/2007. Ele altera a legislação da demarcação de terras indígenas e um dos pontos mais polêmicos do PL trata justamente do marco temporal. “Nós consideramos como um projeto de lei da morte”, afirma Tiago Nhandewa, pesquisador em Antropologia Social na USP, da etnia guarani-nhandewa. “É um projeto de lei que interfere nos mecanismos de demarcação das terras indígenas, além de abrir as terras indígenas para exploração predatória do seu território e de rever terras já demarcadas.”

Nesses casos, segundo o professor Samuel Barbosa, da Faculdade de Direito da USP, a atividade legislativa deve acontecer dentro dos marcos constitucionais. “No entendimento de muitos juristas, e essa é a minha posição, esse projeto de lei tem um vício de inconstitucionalidade. É um retrocesso com relação ao que foi pactuado em 1988 e vai de encontro a interpretações da jurisprudência que está se formando no Supremo Tribunal Federal.”

O julgamento do STF sobre o caso de repercussão geral será decidido com base no direito em vigor, e a decisão poderia nortear a decisão de entes políticos durante a análise do PL 490. Mas a atribuição do Parlamento difere daquela do Supremo: ele pode alterar o direito. “É um projeto que pretende modificar a Constituição por um projeto de lei, então, de início, há um vício de forma nesse tópico. Eu diria que, caso venha a ser aprovado, o Supremo Tribunal Federal será instado a se manifestar e a declarar a inconstitucionalidade desse projeto”, conclui Barbosa.

Marco temporal

“[A tese do marco temporal] foi uma tentativa de interpretar a Constituição, mas não me parece uma boa interpretação do que foi pensado e do que foi pactuado em 1988”, diz o professor. A tese teria sido pensada para definir um critério e pacificar a questão no caso da Raposa Serra do Sol, o que não aconteceu. “Os conflitos se acirraram e a concretização da Constituição de 1988 foi adiada com a tese do marco temporal.”

A tese defendida pelos indígenas é a teoria do indigenato, como explica em entrevista Tiago Nhandewa. Ela prevê que os povos indígenas, independentemente do tempo que estiveram em suas terras, têm direitos originários, por já se encontrarem em território brasileiro. “Não pode ser um marco temporal que determinará a demarcação dos territórios indígenas”, diz o pesquisador.

Nhandewa faz parte da mobilização nacional feita pelos povos indígenas de diferentes etnias, que estão há mais de 20 dias protestando em Brasília, para barrar a tramitação de vários projetos de lei, dentre eles o Projeto de Lei 490 e o julgamento de repercussão geral do STF.

Kâhu Pataxó: massacre físico e cultural

Índios Pataxó – Foto: Wikipédia

Kâhu Pataxó, liderança dos povos indígenas do sul da Bahia e estudante de Direito na Universidade Federal da Bahia (UFBA), comentou as lutas para a manutenção da integridade física e cultural de seu povo, em meio a disputas econômicas de grandes grupos em suas terras.

Conta o estudante que há dez anos as lideranças indígenas da Bahia unificaram a luta de seus povos, criando a aliança Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas do Estado da Bahia (Mupoiba), para combater um inimigo único. “A gente percebeu que só tem um inimigo”, diz Kâhu, explicando tratar-se do capitalismo, que tem fomentado a invasão de terras indígenas para o plantio de soja e empreendimentos turísticos, visando ao “ganho econômico”. 

Ao lado do capitalismo, Kâhu reclama da falta de assistência do Estado brasileiro, ao mesmo tempo que destaca a importância do Estado na garantia dos direitos dos povos indígenas. Cita os artigos 231 e 232 da Constituição de 1988 que reconhecem esses povos, sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, além dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. 

Sobre as demais ameaças, como a grilagem e a exploração das terras por fazendeiros e empresas privadas, Kâhu diz que se trata dos “executores desse grande inimigo [capitalismo]”. Por isso, lutam e “falar sobre a nossa luta, a luta dos povos indígenas, é falar muito da nossa vida”, afirma o líder, adiantando que vivem em luta há 521 anos. E o massacre, segundo Kâhu, não é apenas físico, mas também cultural.

Edição de entrevistas à Rádio USP

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