O samba e a integração cultural do Brasil

A cultura é com certeza um dos pilares de uma Nação. Nós devemos nos orgulhar por termos o samba como a viga mestra da cultura brasileira. Neste 2 de dezembro, a nossa homenagem ao Dia Nacional do Samba

Foto: Reprodução

“A nossa cultura é, de certa forma, uma criação nossa, dos negros, no que ela tem de mais original. Não foi uma simples transferência das culturas africanas para o Brasil. Mais do que isso, foi uma criação, deste lado do Atlântico, de uma nova cultura, em que contribuíram todas as etnias aqui presentes, mas cujo cimento, que permite que ela seja única e nacional, foi fornecido pela contribuição do negro”.
(Carlos Lopes – Teses e Resoluções do III Congresso do CNAB).

As palavras de Carlos Lopes acima transcritas traduzem uma visão profunda da formação da nossa cultura. Sem dúvida, das diferentes manifestações culturais deste nosso rico e complexo país o samba é a de maior alcance. Seja no aspecto geográfico, pois é cantado na totalidade dos Estados brasileiros, seja por suas características rítmicas e melódicas, que evocam reminiscências guardadas no inconsciente popular, ou pelo sentido coletivo de sua prática, é o gênero musical que em suas diferentes vertentes mais envolve os brasileiros.

Das fazendas à cidade

O estudioso Edson Carneiro em seu livro “Samba de umbigada”, pesquisando os batuques no Brasil, identifica origem comum no lundu, coco, bambelô, tambor de crioula, jongo, caxambu, bate-baú e outras modalidades do samba de roda baiano e carioca (respectivamente batucada e partido alto).

José Ramos Tinhorão acrescenta a fofa e o fado, afirmando que todos derivam da existência da umbigada dentro dos batuques de negros nos três primeiros séculos de colonização. Ou seja, uma sobrevivência africana, simbólica das danças rituais e do lembamento”, nome da  cerimônia de casamento em regiões da África.

O autor identifica, ainda, nos núcleos povoados da zona rural no Brasil, a participação de brancos e mulatos das camadas populares nas rodas. Desta maneira, os batuques de negros que antes eram realizados no mato se estendem às vilas e cidades. Começaram então a surgir adaptações provocadas pelo casamento da percussão, da coreografia e do canto africano, gerando novas formas melódicas, executadas por novo instrumental – principalmente a viola portuguesa – introduzida pelos herdeiros nativos da cultura europeia.

O lundu, até então caracterizado pela umbigada, o passo curto, de onde se originou o sapateado, batizado de miudinho, que tinha estribilho marcado pelo ritmo de palmas, teve acrescentadas estrofes, acompanhadas de viola, vindo a se transformar em lundu-canção e, nesse formato, chegou aos salões, passando a existir, então, simultaneamente o “lundu dos pretos” e o “lundu dos salões”.

Choro

Neste momento, é importante também registrar uma das possíveis trajetórias do que hoje chamamos de Choro, que é uma das expressões musicais instrumentais mais ricas da nossa cultura.

Ary Vasconcelos, em seu livro “Raízes da Música Popular Brasileira”, no capítulo dedicado ao Choro, destaca que “a palavra deriva dos choromeleiros, corporação de músicos que teve atuação importante nas fazendas, no período colonial brasileiro. Os choromeleiros não executavam somente a charamela, mas outros instrumentos de sopro. Para o povo, naturalmente, qualquer conjunto instrumental deveria ser sempre os choromeleiros, expressão que acabou sendo encurtada para os choros.

Banda de charamela em “A Liberdade Guiando o Povo”, por Eugène Delacroix I Imagem: Catálogo Online de Bandas de Mpusica PE/Reprodução

Na segunda metade do século XIX, há uma febre de nacionalização das danças europeias em voga como a valsa, quadrilha, mazurca. Da fusão do lundu com o schottisches, a polcamais a habanera cubana, nasce o maxixe, com coreografia em que os casais dançavam entrelaçados e letras de música picantes, o que levou a que fosse proibida pelo Cardeal Arcoverde e impedida de ser executada pelas bandas militares por determinação do Marechal Hermes.

Portanto, têm raízes rurais comuns o samba e o choro. Os dois gêneros voltariam a se integrar mais à frente, mais especificamente nos anos 30 do Século XX.

O surgimento do rádio, da gravação eletromagnética do som e do cinema falado projetaram nacionalmente os conjuntos regionais, verdadeiras pequenas orquestras com seus naipes de percussão (pandeiro, ganzá, afoché e reco-reco), harmonia (violões, cavaquinhos, banjo, bandola, bandolim) e sopros (sax, flauta, clarineta, etc…) com repertório fortemente marcado pelo samba-choro. É o início da chamada “Época de Ouro da Música Brasileira”, em sua primeira fase.

Carnaval

Este breve panorama estaria incompleto sem reconhecermos o papel fundamental que teve o carnaval no impulsionamento dos ritmos, compositores e cantores populares.

O carnaval tem suas origens remotas nas festas pagãs greco-romanas: as saturnais (17 de dezembro) e as lupercais (15 de fevereiro). Eram comemoração das colheitas. No Brasil colonial eram momentos de liberdade para os escravos, segundo as palavras de José Ramos Tinhorão, em “Pequena História da Música Popular”: “as máscaras, fantasias, comida e bebida eram liberadas desbragadamente.”

Carnaval no Brasil colônia na obra de Jean Baptiste Debret I Imagem Ceert/Reprodução

A cidade do Rio de Janeiro, no período, adensou-se populacionalmente pela vinda de escravos e ex-escravos liberados pela decadência da lavoura do café no vale do Paraíba e a chegada em massa de trabalhadores egressos da Bahia para o trabalho no Porto.

Os préstitos começam a tomar conta da cidade, movidos a marcha e samba. Surgem os cordões e os ranchos organizados pelo povo, e do outro lado as grandes sociedades, frequentadas pelas elites. Vai ficando para trás o tempo do Entrudo, onde o divertimento era jogar água suja e farinha uns nos outros. No mesmo período o Português Zé Pereira, que até hoje é homenageado com sua marcha nos bailes de carnaval do Brasil inteiro, lança o costume trazido da região portuguesa do Minho: calçar seus tamancos e sair tocando um bumbo imenso pelas ruas da cidade.

Pelo telefone – O primeiro samba gravado

Seguramente lá pela segunda metade do Século XIX foram compostos e lançados sambas, com denominação de tango brasileiro, maxixe e lundu.

No entanto, o primeiro samba a ser gravado com esta denominação foi “Pelo Telefone”, no século seguinte.

Fruto de criação coletiva dos frequentadores das festas e comemorações na casa da baiana Tia Ciata, na Praça XI, foi registrado como composição de Ernesto dos Santos – o Donga, pianista profissional, e do jornalista Mauro de Almeida, o Perú de pés frios. Fato este que causou grande celeuma entre os frequentadores da casa da Tia Ciata.

O pianista Donga e o Jornalista Mauro de Almeida I Foto: Reprodução/Esternas Músicas

A composição na sua origem era conhecida como “Roceiro”. Sua letra evoca aspectos da vida rural e tem ao menos três versões diferentes. No entanto, seus versos iniciais caíram no gosto popular ao ridicularizar o “Chefe de Polícia/ que manda avisar pelo telefone/ Haver na Carioca uma roleta para se jogar”.

Ironia pura, pois o tal chefe de polícia do Distrito Federal era Aurelino Leal, que havia determinado o fechamento de todos os cassinos clandestinos da cidade e vivia às turras com sambistas, batucadas, candomblés, capoeiras, enfim, tudo que dissesse respeito aos negros.

Outra polêmica se instalou para saber se era realmente o primeiro samba gravado ou não, pois em 1908 já havia registro de sambas gravados no catálogo da Gravadora Odeon, dentre eles um chamado “Samba Rocho”, pelo palhaço de circo Eduardo das Neves, que seria pai do grande seresteiro Cândido das Neves. Sem falar que em 1912 a música “Urubu Malandro” de Pixinguinha, havia sido gravada com a denominação de samba.

De qualquer forma, “Pelo Telefone” emplacou como primeiro samba gravado e foi grande sucesso no carnaval do ano seguinte.

Daí para frente, compor para o carnaval passou a ser uma constante e o samba foi assumindo fisionomia própria e diversificada. O samba amaxixado foi ficando para trás e surgiu o samba batucado dos malandros do Estácio, de Ismael Silva, Armando Marçal, Alcebíades Barcelos – o Bide e Baiaco. O samba de meio de ano, representado pelo samba-canção, que teve em “Linda Flor” (ou Ai Iô Iô), de autoria do Maestro Henrique Vogeler, a sua estreia. Diga-se de passagem que este também teve três versões diferentes.

O samba de breque de Moreira da Silva e Jorge Veiga. O samba instrumental para ser dançado em festas e nas gafieiras. O samba irreverente de Noel Rosa, que teve no seu parceiro, o paulista Vadico, companheiro na composição de alguns dos sambas mais “cariocas”, como “Conversa de Botequim” e “Feitio de Oração”, que nos remete à importância da Festa da Penha como ponto de encontro das famílias e dos sambistas.

A linhagem do samba foi-se refinando e, mesmo com o surgimento da bossa-nova, que deu sua contribuição à música popular agregando uma série de novos elementos musicais e compositores como Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Carlos Lra, Baden Powell, Paulo César Pinheiro, o chamado samba de morro não parou de crescer e de revelar novos sambistas ligados ou não às Escolas de Samba.

Seguindo a trilha aberta por Noel Rosa, Ismael Silva, Geraldo Pereira e Wilson Batista surgiram Nelson Cavaquinho, Cartola, Carlos Cachaça, Candeia, Zé Kéti, Monarco, Alvaiade, Manacéia, Silas de Oliveira, Mano Décio da Viola, Aniceto do Império, Paulinho da Viola, João Nogueira, Wilson das Neves, Dona Ivone Lara, Martinho da Vila, Nei Lopes, Wilson Moreira, Zeca Pagodinho, Jovelina Pérola Negra, Jorge Aragão, Leci Brandão, Almir Guineto, Luiz Carlos da Vila, Aldir Blanc, João Bosco e Moacyr Luz, e grandes intérpretes como Elizeth Cardoso, Elza Soares, Clementina de Jesus, Clara Nunes, Beth Carvalho e Alcione, e mais um grande conjunto de sambistas que renovaram nossa música nos últimos 30 anos através do chamado samba de fundo de quintal.

Samba enredo

Evolução natural dos ranchos, blocos e cordões, as Escolas de Samba adotaram o desfile em cortejo, ou seja, são um passo à frente da roda de batucada e foram assim batizadas pelo portelense Paulo da Portela.

Paulo da Portela I Foto: Museu da Imagem e do Som RJ

Organizador nato, o lustrador de móveis Paulo Benjamin de Oliveira, quando a agremiação de Madureira ainda era chamada de “Vai Como Pode”, organizou o primeiro enredo – “Uma Aula de Samba” -, cuja alegoria principal era um quadro negro e os integrantes da Escola os alunos e Paulo o professor.

As Escolas de Samba marcaram um momento de virada importante na cultura nacional. Num momento em que os ranchos e sociedades faziam um carnaval europeizado, baseado em óperas italianas, as Escolas deram um passo à frente, tornando obrigatório os temas nacionais em seus desfiles.

Em 1938, o primeiro artigo do regulamento proposto pela União das Escolas de Samba dizia o seguinte: “De acordo com a música nacional, as escolas não poderão apresentar os seus enredos no carnaval, por ocasião dos préstitos, com carros alegóricos ou carreatas, assim como não serão permitidas histórias internacionais em sonhos ou imaginação.”

Durante 60 anos, uma vez que a determinação somente foi revogada em 1997 pela Liga das Escolas de Samba, milhares de enredos foram elaborados pelo Brasil afora, dando às Escolas uma forte identidade nacional, conferindo-lhe o prestígio que desfrutam junto ao público.

“Samba levado por todos os ares / atravessastes os 7 mares em evolução”

As palavras proféticas do mestre Silas de Oliveira registram com precisão a penetração do samba, a ponto de ter legítimos representantes de todas e em todas as regiões do Brasil, e reconhecimento internacional como a mais legítima música brasileira e uma das mais influentes no mundo.

Jackson do Pandeiro, considerado talvez o maior ritmista brasileiro e o violonista Canhoto da Paraíba representam o Estado do mesmo nome.

Gordurinha, Dorival Caymmi, Mano Décio da Viola, Assis Valente, Tião Motorista, Roque Ferreira, Ederaldo Gentil, Nelson Rufino, Batatinha, a Bahia.

Jayme Florence – o violonista Meira, parceiro constante de Dino 7 Cordas, Dona Selma do Coco, Bezerra da Silva e Capiba, o Estado de Pernambuco.

Geraldo Pereira, Ari Barroso, Sinval Silva, Clara Nunes, Mauro Duarte, Claudionor Cruz, o Estado das Minas Gerais. Djavan e Agepê, o Estado das Alagoas. O gaúcho Lupícinio Rodrigues não pode faltar a esta lista pela imensa quantidade e qualidade de seus samba-canções e do genial “Se acaso você chegasse”, consagrado na voz de Elza Soares.

São Paulo não pode faltar, com grande lista de nomes onde se destacam: Adoniran Barbosa, Paulo Vanzolini, Geraldo Filme, Jair Rodrigues, Tobias da Vai Vai, Osvaldinho da Cuíca, Bonfligio de Oliveira, Vadico, Garoto (Aníbal Sardinha), Dilermando Reis, Natal da Portela, Luverci Ernesto, Noite Ilustrada, Sombra e Sombrinha, Eduardo Gudin, Carlinhos Vergueiro, Itamar Assumpção e Dona Inah. O que demonstra a ampla diversidade alcançada pelo samba no Estado bandeirante.

A cultura é com certeza um dos pilares de uma Nação. Nós devemos nos orgulhar por termos o samba como a viga mestra da cultura brasileira.

A identidade do samba com o Brasil é tamanha que ele sofre com o povo, sorri, luta, ama, constrói e está sempre presente ao longo da nossa história. Portanto, neste Dia Nacional do Samba, não há como não recordar as palavras de Luiz Carlos da Vila em “Nas Veias do Brasil”: “O samba corre/ Nas veias dessa Pátria-mãe gentil/ É preciso a atitude de assumir a negritude/ Prá ser muito mais Brasil.”

Fonte: Hora do Povo