A confluência de James Joyce e Guimarães Rosa

As semelhanças entre dois romances, Ulisses, do escritor irlandês James Joyce, e Grande Sertão: Veredas, do brasileiro João Guimarães Rosa permitem um grande número de comparações feitas no campo da literatura. Eles têm muita coisa em comum, principalmente o uso da linguagem. É criação; e, mais ainda, é poesia, um caminho mágico que conduz um autor ao outro, um romance sobre o outro romance; e ainda mais: a linguagem é a lupa mágica que traz leitores e autores mais próximos da jornada solitária dos personagens. É na poesia e expressão dessas narrativas que os leitores descobrem o “espírito” da criação.

Edição traduzida para o inglês de Grande Sertão: Veredas

Na história da literatura mundial, são raros os escritores cujo gênio produz grandes obras de arte. Dois romances podem ser reunidos devido às semelhanças em seus aspectos da linguagem: Ulisses, do escritor irlandês James Joyce, e Grande Sertão: Veredas, do autor brasileiro João Guimarães Rosa. Porque eles não são puramente realistas, eles fazem o leitor cavar fundo em suas narrativas. Um grande número de comparações já se fez entre esses dois romances no campo da literatura. Além da linguagem, temas como bem e mal, inferno e céu, paixão, monotonia da terra seca e noites cheias de pesadelos, ansiedade e razão de viver são desenvolvidas criativamente. Seja naquele dia insípido e inconcebível que Joyce foi dado a descrever, ou nas terras áridas e universais que Rosa foi dado a atravessar, em cada caso os escritores enfrentam a mesma experiência de sua própria perspectiva. Entende-se que isso é semelhante à experiência estética de escrever um romance. Um romance é a expressão estética de uma realidade, e a expressão é a linguagem, a mesma linguagem que é o elemento principal no enredo das obras de Joyce e Rosa. A linguagem é tudo nesses dois romances. Isto é criação; e, mais ainda, é a poesia, um caminho mágico que conduz um autor ao outro, um romance sobre o outro romance; e ainda mais: a linguagem é a lupa mágica que aproxima leitores e autores da jornada solitária das personagens, em linguagem em si. É na poesia e na expressão desses romances que o leitor descobre a “espírito” da criação.

Cada comparação entre Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, e Ulysses, de James Joyce, deve ser realizada do ponto de vista de sua linguagem, altamente percebida por um leitor sensível de poesia. Isso ocorre porque ambos os romances são algo essencialmente criado no campo da Literatura, romances produzidos na literatura, algo totalmente literário. Romances feitos de literatura, romances que têm o próprio significante literário como seu material significativo. Joyce foi contrastado com Rosa, no entanto, devemos ter em mente suas especificidades. O romance de Joyce tem uma música – Faça as sereias cantar? – é a musicalidade da língua inglesa que eleva as palavras mais obsoletas ao sublime; O romance de Rosa também tem música – a flauta de Pan? – é a oralidade das palavras que saem da memória para mostrar exatamente onde as coisas estão. Mas a consciência do romance é a mesma nos dois escritores: de Homero a Joyce, de Joyce a Guimarães Rosa, tudo acaba em romance, romance literário. E algo permanece: a narrativa, feita de aventuras e desventuras; narrativa que é linguagem e linguagem
que é, essencialmente, poesia. Aqui estamos sob o sopro do “Espírito”, o “Espírito da Literatura”; a realidade é a própria literatura. E a linguagem criada pelo escritor, que é abraçada pelo “Espírito”, fará com que a realidade visível seja mostrada em suas particularidades e peculiaridades. A realidade, neste caso, funciona apenas como uma oportunidade, e a própria literatura supera seus fundamentos quando tenta recriá-la. Quando somos forçados a refletir sobre a realidade desses dois romances, somos levados a ver outras imagens nas palavras, outras realidades, realidades que sentimos como as mais belas e que estão além de qualquer espaço onde poderiam ser confinados. Tanto Guimarães Rosa como James Joyce desejam fazer o leitor sentir a ação da linguagem que eles criaram usando, em muitas passagens, algumas expressões que visam a reflexão e a epifania. A força das expressões utilizadas implica a clareza epifânica que se irradia ao longo da narrativa e, de forma fragmentária, inverte o início e o fim da narrativa para mostrar, na forma dos fragmentos, a rapidez com que as coisas são lembradas e recapituladas. No caso de Joyce, temos a cidade, Dublin, na Irlanda; no caso de Rosa, há o sertão seco de Minas Gerais, no Brasil. Cidade e sertão, tudo pensado para o leitor não esquecer que nossa existência é composta de confusão e caos. Grande Sertão: Veredas é o mundo; Ulisses está em toda parte. O sertão de Rosa é o mundo, é em toda parte. “Sertão é sem lugar… Sertão é dentro da gente…” [“Sertão não tem lugar… O sertão está dentro de nós”] – escreve Rosa. A Dublin de Joyce é a urbe sem orbe. A verdadeira realidade desses dois romances em sua concepção épica moderna só pode ser percebida em linguagem que, como paródia, contém a verdadeira personalidade de seus personagens; personagens tatuados de sombras e culpas que só a linguagem da poesia possibilita que os leitores possam ver.

James Joyce, um irlandês considerado o maior escritor do século XX; Guimarães Rosa, um escritor brasileiro conhecido até onde a língua portuguesa pode alcançar e tanto quanto alguém poderia desfrutar de seu romance. Enquanto se poderia argumentar que James Joyce escreveu Ulysses em algum tipo de novo inglês e que Shakespeare riria dele no outro mundo, podemos dizer que, em Grande Sertão: Veredas, Rosa criava palavras e escrevia em um estilo tão diferente que Padre Vieira zombava dele em seu Grande Sermão da Sexagésima. Sabemos que, nesse sermão, Vieira se concentra em uma coisa: a forma como os pregadores de seu tempo, o século XVII, pregam. Este sermão é realmente um espetáculo teatral da linguagem: as palavras, as repetições, as citações e as recitações impõem essa teatralidade à voz do sermão. Ao escrever seus romances, Joyce e Rosa provavelmente sabiam do perigo que a linguagem usada nessas obras poderia causar. Como grandes leitores, não podiam ignorar que estavam na vanguarda, antecipando a revelação dos segredos da própria criação artística, pois não há criador, isto é, escritor, sem o conhecimento da Ciência. E aqui coincidem James Joyce e Rosa. Eles sabiam antes de escrever; tinham a ciência poética e, por isso, expunham sua própria linguagem ao perigo e à ironia da desconstrução paródica, épica por excelência. A paródia é o eixo paradigmático que une esses dois grandes escritores, tão distantes do ponto de vista geográfico, e tão próximos do ponto de vista da literatura. Há escritores e filósofos que foram lidos por Rosa e Joyce: Vico, Homero, Virgílio, Ovídio, Horácio, Aristóteles, Platão, Cervantes, Goethe, Mallarmé, Flaubert, Dante Alighiere, entre outros. Escritores que fazem os leitores se perderem em suas passagens obscuras; a confluência desses dois escritores não pertence aos meros fatos da vida real, mas atinge a ordem do mito, apenas captada através da literatura.

Comparar Grande Sertão: Veredas ao Ulisses de Joyce não é uma tarefa estranha no campo dos estudos literários comparados. Nesses dois romances, encontramos um vasto campo de discussão. A exótica viagem que Riobaldo faz pela encruzilhada do Grande Sertão: Veredas indica coincidências marcantes com a viagem de Stephen/Bloom pelas ruas, vielas e encruzilhadas da Dublin de Joyce em 16 de junho de 1904. Essas coincidências se expressam essencialmente na linguagem e nos procedimentos de construção e desconstrução nas obras de ambos os autores. Os procedimentos épicos de construção e desconstrução significam a força e o trabalho da consciência da linguagem que foi depositada nessas obras, proporcionando ao leitor uma compreensão lógica da matéria nelas. O material épico por excelência é épico no sentido de fragmentação da linguagem, que é a fragmentação e erudição da memória. Ressaltamos aqui o significado épico da memória. Como é possível ver em Grande Sertão: Veredas, os personagens Riobaldo/Diadorim vão e vêm, se movimentam, trazendo lembranças; reminiscências de animais, riachos, lugares, batalhas… Em Ulisses acontece a mesma coisa: suas páginas estão cheias de lembranças; Ulisses é a memória homérica que o leitor perscruta em todos os seus episódios. Em uma relação muito clara (baseada em uma profunda consciência da linguagem épica/paródica processual, a epopeia é um recurso da paródia), as memórias e os fenômenos se sobrepõem e se entrelaçam a ponto de a retomada do passado trazer à tona o novo, que é tão epicamente implantado na forma de paródia. Em Grande Sertão: Veredas assim como em Ulisses se vê tudo parodicamente, de forma (des)construída: nada parece começar; nada parece terminar no processo dessas duas narrativas mágicas.

Voltaremos ao momento em que o Ulisses de Joyce é lançado pela primeira vez, em 1922, em Paris. É um evento crucial para todas as literaturas da Europa e, claro, para a literatura mundial. É um momento em que a própria literatura está sendo ameaçada pelas experiências das vanguardas. Certamente, artistas e amantes da literatura folhearam o livro de Joyce para descobrir “alguma novidade que importasse”. Sem dúvida, Ulisses surpreendeu e decepcionou muitos deles. Mas uma coisa é certa: a influência direta ou indireta que esta obra exerceu, e que ainda exerce, sobre gerações e gerações de escritores na Europa e na América. No Brasil, por exemplo, isso pode ser notado principalmente na crítica lançada por Oswald de Andrade, continuada principalmente por Guimarães Rosa e Clarice Lispector.

Clarice Lispector foi inspirada em Joyce. Aqui vale a pena relembrar o romance Perto do Coração Selvagem, seu primeiro livro, publicado em 1944, quando Clarice tinha dezessete anos. Álvaro Lins, considerado um dos melhores críticos do país, escreveu sobre Perto do Coração Selvagem: “[Este é] nosso primeiro romance dentro do espírito e da técnica de Joyce e Virginia Woolf”2 O título deste romance é tirado de O retrato do artista enquanto jovem, cujo autor costumava ser tão difícil e tão familiar entre nossos autores mais radicais. Sugiro aqui uma “poética sincrônica” entre esses autores que foram contaminados pelo fluxo fluente da linguagem de Joyce, marcando suas especificidades, mas sempre percebendo que o hábito humano de imitar é universal e que James Joyce para nós é o grande mestre dos autores que leu seu texto.

Os “Poetas Concretos” também apoiaram projetos e posicionamentos teóricos sobre arte e poesia baseados na obra de Joyce. Ao ler o livro Teoria da Poesia Concreta, de Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos, o leitor se depara com essa verdade: a verdadeira emoção estética. Está cheio de comentários e opiniões críticas sobre o Ulisses de Joyce. A influência de Joyce foi decisiva no caso do “concretismo” brasileiro, a partir da década de 1950. Os “Poetas Concretos” eram de fato leitores radicais de Joyce e foram os primeiros a ver as sombras da linguagem de Ulisses no sombreado Grande Sertão de Rosa. Não se pode esquecer disso: tudo começou com o Modernismo de 1922, principalmente com Oswald e Mário de Andrade, que leram Ulisses na versão francesa. Em uma visão antropofágica em que retoma e reassume pontos de vista, em 1964, Haroldo de Campos, em ensaio intitulado Miramar na Mira (um estudo da obra de Oswald em confronto com Ulisses) comenta e relembra, coincidentemente, a data da publicação dl livro de Joyce, que era a preocupação do nosso escritor modernista. Eu cito:

Em 1922 – ano que se tornaria conhecido entre nós pela eclosão da Semana de Arte Moderna – The Shakespeare and Co. (atualmente a lendária Editora da americana Sylvia Beach) publicou em Paris a primeira edição de um livro destinado a mudar o curso da ficção moderna: Ulysses, de James Joyce.3

Essa perspectiva confirma e fortalece cada vez mais a hipótese de que Ulisses despertou o interesse de uma corrente de escritores modernos. Podemos identificar em Mira Mar na Mira observações importantes sobre o estilo criado por Oswald de Andrade, em contraste com as tendências artísticas mais radicais que se desenvolveram na Europa durante o período modernista. Em Miramar na Mira, Haroldo de Campos reuniu e redigiu alguns dados para entender e analisar essas tendências voltadas para sua criação. Ele é citado no texto de Julio Ortega em homenagem ao centenário de nascimento de James Joyce:

… Não acredito em uma repetição volumosa de Joyce. A ideia de um trabalho com Joyce que tive era se preocupar com alguns dispositivos textuais precisos, e lidar com os significantes e paródias sobre a proliferação das culturas. Mas eu queria aplicar um dispositivo anti-Joyceano em Joyce, e esse dispositivo é a síntese. E peguei esse dispositivo da experiência brasileira em Oswald de Andrade, de [sua] prosa cubista e romances curtos feitos de fragmentos. Por exemplo, a crítica contemporânea surpreendeu-se com João Miramar de Oswald porque era um livro que parecia uma auto-antologia, onde cada fragmento era isolado como uma peça antológica produzida pelo próprio livro – uma antologia montada no espírito do leitor. Já era o esboço de uma obra aberta. Também tenho essa preocupação muito clara com a obra aberta desde um trabalho teórico em 1955. Neste artigo falo de uma obra barroca e de uma obra aberta. Agora, meu ponto crucial em relação a Joyce foi pegar alguns dispositivos e substituí-los pela introdução dialética de um dispositivo anti-joyceano – isso foi um esforço de síntese. Portanto, minhas Galáxias são feitas de páginas condensadas em que o livro inteiro está em cada página. (12-13)4

Todas essas comparações são inevitáveis. Críticos, estudiosos e pesquisadores estavam cientes disso, estavam cientes da influência de Joyce em nossos escritores. Embora alguns não tenham lido efetivamente o livro, a fama de Ulisses se espalhou: uma única palavra mencionada ou um trecho comentado é suficiente para influenciar escritores criativos. Nesse sentido, nunca é demais relembrar os comentários feitos por Haroldo de Campos no texto de Ortega para justificar a influência de Joyce em Guimarães Rosa. Estas palavras são oportunas, pois justificam a forma como essa influência se dá:

No Brasil podemos ver isso em uma tradição que chega a Guimarães Rosa… apesar da opinião de alguns críticos convencionais, que pensam que, para ser influenciado por Finnegans Wake, é preciso ter lido tudo – quando Guimarães Rosa tem fama de não ter chegado à metade de Ulisses, o que não significa nada, pois já se pode estar contaminado depois de ler apenas uma página de Ulisses ou de uma resenha sobre ele.5

Observe que, no título deste artigo, usamos a palavra “confluência” para evitar a simples convencionalidade ideológica de “influência” de um autor sobre outro, no caso, de James Joyce sobre Guimarães Rosa. Aqui cultuo o “Espírito da Literatura” que está no ar e, ao que parece, reúne escritores de diferentes espaços e tradições e os torna contemporâneos e pertencentes ao mesmo grupo de criadores. Esses escritores, segundo suas coincidências, definem-se radicalmente por sua própria herança literária; são herdeiros da mesma tradição. Vale a pena relembrar aqui o famoso texto de TS Eliot, “Tradição e Talento Individual”, uma forma poética de avaliar, comparar e contrastar a obra de criação, não como fato isolado, mas em relação, uma forma de estética crítica para superar os limites históricos. Deve-se ler este conhecido texto de Eliot, um dos primeiros leitores de James Joyce. Vale a pena mencionar do ensaio de Eliot:

A tradição é uma questão de significado muito mais amplo. Não pode ser herdada, e se você a quer, deve obtê-la com muito trabalho. Envolve, em primeiro lugar, o sentido histórico, que podemos chamar quase indispensável a qualquer um que queira continuar a ser poeta além dos vinte e cinco anos, e o sentido histórico envolve uma percepção, não apenas do particípio do passado, mas de sua presença, o sentido histórico compele um homem a escrever não apenas com sua própria geração nos ossos, mas com a sensação de que toda a literatura da Europa de Homero e dentro dela toda a literatura de seu próprio país tem uma existência simultânea e compõe uma ordem simultânea. O sentido histórico, que é um sentido tanto do atemporal quanto do temporal e do atemporal e do temporal juntos, é o que torna um escritor tradicional. E é ao mesmo tempo o que torna um escritor mais consciente de seu lugar no tempo, de seu próprio contemporâneo. (13-14)

O poeta de The Waste Land continua, e que admirável maneira de ordenar o argumento de sua crítica e que admirável consciência crítica diante da criação literária:

Nenhum poeta, nenhum artista de qualquer arte, tem seu significado completo sozinho. Seu significado, sua apreciação é a valorização de sua relação com os poetas e artistas mortos. Você não pode valorizá-lo sozinho; você deve colocá-lo, para contraste e comparação, entre os mortos. Refiro-me a isso como um princípio de crítica estética, não meramente histórica.

Portanto, influências e confluências existem e sempre existirão. O leitor que estiver atento a isso poderá conhecer como autores, como James Joyce ou Guimarães Rosa, conceberam suas obras. Pisando em terreno um pouco mais firme na literatura brasileira, fica mais fácil entender, por exemplo, as fortes influências estrangeiras (principalmente britânicas) nos romances de Machado de Assis. Sua criação reflete a ampla leitura do romance inglês; seu realismo é literário, não engana os leitores com o falso realismo local. Um leitor ou escritor fora dessa tradição não pode estabelecer nenhuma relação entre Joyce e Rosa. Além disso, um crítico ligado ao passado histórico não pode admitir a fecunda influência de Joyce sobre os principais autores das gerações vindouras. O difícil é entender o universo de sua tradição, o da poesia homérica, cheio de mitologia, que exige uma compreensão de coisas que quase ninguém conhece. É aí que o romance de Joyce adquire as características da Odisseia, sua linguagem se torna cada vez mais densa. Por exemplo, Stephen recebe artificialmente o nome e o papel de Dedalus; Molly, em Ulisses, é Penélope, etc. Joyce procede assim ao longo de sua obra. Ele expõe o mito na forma de paródia e riso e o envolve na linguagem, deixando-o escondido entre diferentes imagens. Da mesma forma, Grande Sertão: Veredas é um Ulisses retorcido por mitologias. Riobaldo está loucamente apaixonado nas terras secas da mitologia; sofre por amor ao seu mitológico Diadorim. Dessa forma, esses dois romances só podem ser compreendidos por leitores que mergulham no segredo de sua linguagem; aí reside o segredo de cada romance. Já foi dito que o verdadeiro protagonista de Ulysses não é o senhor Bloom, nem Stephen, mas é a linguagem. Pode-se dizer também do Grande Sertão: Veredas. Seu verdadeiro protagonista não é Riobaldo nem Diadorim, mas a linguagem.

Joyce e Rosa: dois criadores ligados por uma linhagem e tradição comuns, uma tradição épica de construção e desconstrução do romance que rompeu com a tradição do próprio romance. Eles romperam com a ordem tradicional e inauguraram uma nova expressão, ou seja, deram uma nova linguagem ao romance, onde o passado e o presente se reencontram, o primitivo e o erudito, a visão do Oriente e do Ocidente, o grego e o Mundo latino, autores de diferentes épocas e literaturas, o regional como expressão local e citações universais, tudo ressaltando a difícil estruturação de um novo romance com sua técnica narrativa fragmentada. Tudo isso forma a linguagem complexa do romance de Joyce, a linguagem complexa do romance de Rosa.

Repito: Grande Sertão: Veredas é um Ulisses torcido. Astutamente, Rosa tece uma teia lendária que fala do Sertão; engenhoso, falou do silêncio, do deserto e da solidão de seus personagens. Sentimos a aridez do Sertão como sentimos a insipidez da Dublin urbana em Joyce. O fato de sentirmos a solidão de Riobaldo e podermos falar sobre o monólogo dos personagens de Joyce é uma compreensão estética da comparação entre os dois autores. Por tudo isso, há uma visão complexa desses romances complexos. O leitor pode observar como esses dois autores transformam tudo o que é real com sua metamorfose a partir do fragmento e da linguagem. Os próprios personagens, com seus sentimentos humanos, são transformados pela força e natureza da linguagem, linguagem fragmentada, mas em virtude de sua natureza poética, inviolável. Rosa, assim como Joyce, levam essa fragmentação épica ao extremo.

Pois bem, esses romancistas chegaram até mim pela semelhança no procedimento épico de construção e desconstrução da linguagem. Em um autor o idioma é o inglês e, no outro, o idioma é o português. Sincronicamente, podemos vislumbrar Joyce dentro das páginas do livro de Rosa quando nos deparamos com o Diabo no meio do redemoinho, onde ele desempenha o mesmo papel do Fausto de Goethe, como se ele, Joyce, conhecesse as mesmas afinidades secretas de um Riobaldo na encruzilhada do Grande Sertão. Como não reconhecer, na forma da linguagem do romance de Rosa, o traço decisivo da influência de Joyce, a herança poética que o escritor moderno deve aceitar como companheiro, para fazer o romance continuar? Essa consciência poética/paródica defendida por uma tradição radical de escritores está presente, também, em outro grande escritor americano: é, por exemplo, no romance Paradiso de José Lezama Lima. Em determinado momento do romance, Cemí, o personagem central, entra em uma livraria e se aproxima de uma estante onde se ouve as pessoas conversando. Ao ver o livreiro, pergunta: “ – O Goethe de James Joyce, recentemente publicado em Genebra, já chegou? – O livreiro piscou para ele, pois percebeu o tom jocoso em sua pergunta. – Não, ainda não, embora esperemos que chegue nestes dias. — Quando tiver, guarde uma cópia para mim, pediu a pessoa que conversava com Foncion, sem saber do erro de se referir a um livro que nunca havia sido publicado” (Lima 237).6

Sombras e ecos do Ulisses de Joyce! Percebe-se, portanto, como os autores, leitores do texto de Joyce, coincidem em se relacionar. Conectados por uma tradição poética que os torna contemporâneos; em todos eles o mesmo discurso poético se interpõe entre os escritores do passado e os escritores modernos. A interposição da memória refletida nos procedimentos épicos e na paródia é conscientemente frequente. Pode-se entender a paródia como um procedimento épico. Na Epopeia, vemos a memória impressa com todas as suas falhas e lacunas preenchidas pela interposição das esplêndidas palavras do autor e do leitor. Nesse sentido, perceber o traço de um texto épico como o de James Joyce ou o de Guimarães Rosa é reconhecer estruturas e linhas de montagem específicas, é identificar um determinado procedimento. Significa revelar rupturas e distanciamentos de outros textos. O poeta épico, o rapsodista, – nome usado para chamar o poeta primitivo e que corresponde ao alfaiate – é exatamente aquele que (re)corta (re)colhe e (re)conta a experiência inicial, a coisa vivida. O poeta épico é aquele que recita as palavras e os escritos dos outros. A característica do texto épico é o corte, o fragmentário, a ruptura, a costura paródica, entre o passado e o presente, o dito e o não dito, a lacuna onde o poeta/rapsodista encaixa textos paródicos, fragmentos e citações de diversas fontes; lacunas onde o poeta conecta textos de autores de épocas desconhecidas, relatos, materiais de diversos gêneros, etc.

Grande Sertão: Veredas é o espaço ordenado onde Rosa experimenta seu romance, seu novo Ulisses, embora só tenha ouvido os ecos evocados pelas forças mágicas ocultas na encruzilhada do Grande Sertão, as armadilhas do diabo que não têm limite. Grande Sertão: Veredas não tem limites em sua realidade. Os limites são estabelecidos pelo leitor que não consegue penetrar no universo de sua criação. Sua linguagem, suas imagens, sua fala, sua dicção etc. se configuram com o mesmo mecanismo e procedimento com que James Joyce construiu seu Ulisses. O que simplesmente acontece é que essas obras estão situadas em uma atmosfera clara e em uma paisagem específica, mas são inspiradas por uma realidade educada e conectadas a outras que ainda estão ligadas a outras, daí a aparente dificuldade em compreendê-las. Entre os ensaios e estudos listados no patrimônio crítico de Guimarães Rosa, no Brasil, vale destacar o ensaio de Augusto de Campos, intitulado “Um Lance de Dês do Grande Sertão”. Ele resume toda a ideia de literatura comparada. Augusto de Campos é um “poeta concreto”, um estudioso crítico de elevada consciência crítica e tradutor de Joyce. Ele diz:

A afinidade que o romance de Rosa apresenta com os de Joyce é, em primeiro lugar, a atitude experimentalista em relação à linguagem, que, em sua materialidade, é moldada e reformulada lexical e sintaticamente. Nessa perspectiva, várias técnicas utilizadas por ambos os romancistas podem ser identificadas. Assim, vêm as alterações, as aliterações, os malapropismos conscientes, as rimas internas e assim por diante. Também a sintaxe, em alguns aspectos, é manipulada de forma idêntica tanto em Joyce quanto em Rosa. É uma sintaxe telegráfica ou, nas palavras de David Hayman, “um tipo de taquigrafia literária”.

Grande Sertão: Veredas. É um romance suntuoso, estranho, erudito, como o Ulisses de Joyce, mas nunca ilegível. Tanto Rosa quanto Joyce transformam coisas simples em épicas, a piada, o provérbio, a oração, os ditos populares… Parece que nada está sendo narrado, quebrando a narrativa em partes, sem fim e sem sentido, aparentemente. Tomemos Grande Sertão: Veredas. A forma como expõe a linguagem e dá voz à própria natureza como faziam os autores barrocos, como El Quijote, por exemplo. E agora eu digo: O barroco é uma arte épica, a mais épica de todas as artes. Assim se inventa o mito. Relembre, em Grande Sertão: Veredas, o famoso episódio, o Guararavacã do Guaicuí. Podemos interpretar isso como o delírio de Riobaldo; astuciosamente, ele oscila dos olhos verdes de Diadorim para a atmosfera bucólica do lugar: “O vento é verde”. Para falar dos olhos verdes de Diadorim, a palavra vento parece muito concreta. Sentimos a cor da paisagem, vemos a vasta paisagem daquele lugar do Grande Sertão, sentimos o verde dos olhos de Diadorim e o verdor da paisagem. Não há nada mais bonito do que isso! Quando Riobaldo pergunta “o vento é verde? [“o vento é verde?”], ele está revelando algo muito próximo e muito distante da realidade, como se dissesse “os olhos verdes de Diadorim fazem a realidade parecer verde”. Apaixonado, Riobaldo pensa que está sozinho em meio à realidade verde que o cerca em sua solidão. E ele ouve o vento ou vê o vento, ouve o mar e, lá no fundo, esses ecos e visões ficam guardados nas sílabas mais sonoras de suas palavras.

A narrativa confluente não deixa nada definido ou claro, tudo tem que ser ambíguo; tudo tem que correr como o fluxo dos rios: o São Francisco e o Liffey. O espelho das águas correntes desses rios não reflete realidades iguais; rostos próximos, figuras entrelaçadas; é a criação artística que faz você vê-los assim. A realidade aparente se funde com a realidade criada pelo artista. Alta capacidade de compreensão do mito; nestas margens encontram-se as pegadas de conceitos clássicos e lendas antigas.

Grande Sertão: Veredas. A beleza está em todos os lugares, do começo ao fim. Que maneira impressionante de começar e terminar o romance! “Nonada” ficou famosa e causou espanto, palavra inicial e final da narrativa de Riobaldo que termina com o símbolo do infinito. E isso pode ser investigado com o mesmo espanto e curiosidade que James Joyce causou com o famoso monólogo de Molly Bloom, uma Penélope que tece uma teia verbal, no último episódio de Ulisses. O episódio começa e termina com um “sim”, dito em todos os sentidos, repetidamente e sem limites. E este monólogo resume o significado do dia de Bloom; são as noites mal dormidas e os pesadelos de todos os personagens de Joyce. A linguagem de Molly Bloom e suas expressões seguem o mesmo mecanismo com que James Joyce cria todos os seus personagens. O segredo de Penélope é descoberto. Grande Sertão: Veredas é a narração de uma travessia, atravessando as terras secas de Minas Gerais; Ulysses é a narração de uma viagem, uma viagem pelas ruas de Dublin; uma travessia e uma viagem convertida em uma estranha linguagem de metamorfoses proteicas que o leitor atônito levará tempo para ver, em diferentes partes, que tudo é difícil de decifrar. Como é difícil, de fato, nesta travessia e jornada, compreender o mundo mitológico de seus personagens. Estamos diante de duas narrativas universais atemporais, romances cujo problema é o problema da literatura, o próprio lugar de sua realidade. Grande Sertão: Veredas não é um romance dividido em capítulos. Assim, assemelha-se em sua totalidade ao último episódio de Ulysses, o monólogo de Molly Bloom, sem começo nem fim, sem pausas, seguindo o fluxo da consciência, a ordem da memória. O romance de Rosa segue um fluxo contínuo sem cortes ou divisões de capítulos; Riobaldo narra tudo de uma vez, tudo dito sem pausas, em um só fôlego. Em ambos os romances, o leitor tropeça e foca sua consciência na linguagem, para melhor compreender a narração que se faz a partir de fragmentos, fora de qualquer ordem possível, sem regras; narração que remonta ao início, retomando o que foi dito, remendando e reparando, prendendo a atenção do leitor.

Notas

1 Este artigo foi traduzido por Ana Canan para o inglês.

2 “Nosso primeiro romance dentro do espírito e da técnica de Joyce e Virgínia Woolf.”

3 “Em 1922 – ano que se assinalaria entre nós pela eclosão da Semana de Arte Moderna – era publicada em Paris, pela Shakespeare and Co. (a hoje lendária Casa Editora da americana Sylvia Beach), a primeira edição de um livro destinado a alterar os rumores da ficção moderna: o Ulysses, de James Joyce.”

4 “… Yo no creo en una repetición voluminosa de Joyce. Minha idéia de um trabalho com Joyce era se preocupar com alguns dispositivos textuais de precisão, de trabalho sobre o significado, de trabalho paródico sobre a proliferação das culturas. Pero yo quería aplicar sobre Joyce un antidispositivo joyceano y este es el dispositivo de la síntesis. Você está reconhecendo a experiência brasileira de Oswald de Andrade, a prosa cubista, de las novelas escuetas hechas de fragmentos. Por exemplo, del João Miramar de Oswald dijo la crítica contemporánea que estaba sorprendida porque era un libro que parecía la antología de sí mismo, donde cada fragmento era un fragmento isolado como una pieza antológica que el mismo libro producía. Una antologia que se armara no espírito do leitor. Era ya el planteamiento de uma obra aberta. A preocupação com a obra abriu o tengo também muito netamente desde um artigo teórico de 1955. Hablo en este artigo de um barroco y de uma obra aberta. Agora, minha ideia exatamente em relação a Joyce era apropiarme de um dos dispositivos e cambiarlos para a introdução dialéctica de um dispositivo – antiJoyce, que era o esfuerzo de síntesis. Entonces, mis Galaxias son hechas de páginas compactas donde el libro entero está em cada página.” (12-13)

5 “… En Brasil tenemos esto en una tradición que va hasta Guimarães Rosa. A pesar da opinião de alguns críticos convencionais que se imaginam que para ter uma influência de Finnegans Wake uno debe ter lido tudo, e dicen que Guimarães Rosa não legado à mi- tad de Ulises, não significa nada porque com uma página de Ulises, o después de ler uma página de uma crítica sobre Ulises, uno se contamina.”

6 “ – Ya llegó el Goethe de James Joyce, que acaban de publicar en Ginebra? – o librero le hizo un guiño, sabiendo el tono burlón de su pregunta. – Não, entretanto não, estamos esperando em dias. Cuando llegue, guárdeme un ejemplar, le dijo la persona que hablaba con Fonción, que no percebía la burla al referirse a una obra que jamás había sido escrita.”

7 “O que o romance de Guimarães Rosa apresenta de parentesco com os de Joyce é, em primeiro lugar, a atitude experimentalista perante a linguagem. Esta é, em sua materialidade, plasmada e replasmada, léxica e sintaticamente. Sob essa perspectiva, podem ser identificadas diversas técnicas, utilizadas por ambos os romancistas. Assim, as alterações, as coliterações, os malapropismos conscientes, as rimas internas, etc. Também a sintaxe é, sob certos aspectos, manipulada de maneira fundamentalmente idêntica por Joyce e Rosa. É uma sintaxe telegráfica, ou, na expressão
de David Hayman, ‘uma espécie de estenografia literária’.”

Trabalhos citados
Campos, Haroldo de. “Miramar na Mira.” ANDRADE, Oswald de. Memórias Sentimentais de João Miramar. Civilização Brasileira, 1971, (Obras Completas, 2).
__. “Um Lance de Dês do Grande Sertão”. Guimarães Rosa. Coletânea. (Coleção Fortuna Crítica). Ed. Eduardo F. Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; [Brasília]: INL, 1983.
Eliot, T. S. In: Selected Essays, British Library, Londres, 1999.
Lima, José Lezama. Paraíso. Edição Crítica. Ed. Cintio Vitier. ALLCA XX/UFRJ Editora: Coleção Arquivos 3, 1996.
Ortega, Júlio. Re-Joyce: Voces para una opera de la literatura. Madri: Huerga-Fierro.

Francisco Ivan da Silva, Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Francisco Ivan da Silva possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (1972), mestrado em Comunicação e Semiótica (1980) e doutorado. em Comunicação e Semiótica (1988) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é representante regional da Association of Irish Studies e Professor Associado IV da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Tem experiência na área de Literatura, com ênfase em Literatura Brasileira, atuando principalmente nos seguintes temas: Barroco, poesia, literatura, linguagem e semiótica.

Publicado originalmente em:

Silva, FI da. (2012). A confluência de James Joyce e Guimarães Rosa. Revista ABEI: The Brazilian Journal of Irish Studies , 14 , 17-27. https://doi.org/10.37389/abei.v14i0.3607