Fim da emergência sanitária tem efeito dominó sobre a saúde pública

A avaliação é da professora Deisy Ventura, segundo a qual a decisão de encerrar a emergência no combate à covid-19, à revelia do cenário internacional, serve a uma estratégia eleitoreira de Bolsonaro.

Manaus – “Carreta da vacinação” em combate à Covid-19 demonstra a enorme logística de imunização mobilizada nacionalmente e emergencialmente. Foto - Marcely Gomes / Semcom

Com o fim da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin), a Anvisa pede prazo para avaliar os atos normativos da covid-19, pois pretende manter algumas regras que trouxeram agilidade para o setor.

Em entrevista, a professora Deisy Ventura, da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP e do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa) da USP, analisa as consequências do decreto que interrompeu os procedimentos governamentais de emergência sanitária. De acordo com elas, vamos levar anos para compreender a dimens˜ão dos “efeitos nefastos” que o fim da emergência causa no conjunto de milhares de normativas que regem o sistema de saúde atual em nível municipal, estadual e federal.

De acordo com a professora, a retirada da norma deve causar diversos impactos no combate à pandemia. Há um “feixe” estimado em milhares de normas que partem dessa declaração de emergência nacional, que criam regras excepcionais para resposta à covid-19 com fundamento na emergência nacional.

“É como um efeito dominó, nós tiramos essa peça, – a vigência dessa norma que dá base às outras -, e, com isso, esvaziamos o fundamento. Não são só normas, são também contratos, são políticas, decisões que são tomadas, tem todo um conjunto de atos, contratos e também normas que derivam dessa declaração de emergência”.

A professora Deisy aponta inclusive regras do setor privado de saúde, como as normas trabalhistas para contratação emergencial, que também precisam ser analisadas. “Então, vamos levar tempo para analisar todos os efeitos negativos dessa declaração intempestiva e que não é compatível com o final da emergência nacional”, declarou.

Deisy Ventura – Foto: Arquivo pessoal

Inicialmente, a lei de emergência nacional apresentada pelo, então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, tinha o seu término vinculado à declaração de emergência internacional. Depois, a lei foi retalhada ao longo da pandemia e foi modificada a vigência para a duração do decreto de calamidade pública.

“Quando eu crio um regime jurídico excepcional, qual é o gatilho que eu vou usar como justificativa? Então, o fato de que muitas normas se fundavam na emergência nacional, e não na internacional, deixa agora a população brasileira desassistida com essa medida política e eleitoral de declaração de final de emergência, que não existe”, atesta Deisy.

Estratégia política e eleitoral

Tudo que estava consolidado na emergência nacional pode cair. Com isso, governadores, prefeitos e outros agentes públicos e privados estão tomando providências jurídicas para trocar o fundamento dessa norma. A professora explica que “o mais seguro é vincular essas situações excepcionais à declaração de emergência internacional, porque a OMS (Organização Mundial da Saúde) vem mostrando responsabilidade e prudência”.

“Tanto o governo reconhece que a situação emergencial perdura, que ao anunciar essa declaração estapafúrdia, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, já pediu à Anvisa para prorrogar, por exemplo, a autorização de vacinas para uso emergencial por 365 dias”, denunciou ela. Para Deisy, o governo deu o recibo de que sabe que não é momento de dar fim à emergência nacional.

“O que o Ministério da Saúde está fazendo é produção de conteúdo eleitoral, para conversar com sua própria base, tentando capitalizar politicamente e eleitoralmente sobre o controle da pandemia, que na verdade foi feito pelos estados e municípios, pela sociedade e por instituições de pesquisa como o nosso Instituto Butantan. Esse controle precário da pandemia que a gente alcançou, não é nem de longe mérito do governo federal”, enfatiza a sanitarista.

Deisy vai mais longe ao analisar que Bolsonaro faz o jogo de criar o pretexto para atacar, mais uma vez, governadores e prefeitos. Ele menciona as críticas do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde) sobre o assunto, que são respondidas pela base governistas com agressões de que são um bando de corruptos “que quer dinheiro para gastar e que a pandemia foi utilizada para encher os bolsos de governadores”.

Para ela, os governadores fizeram o trabalho de agilizar o sistema de saúde pública para enfrentar a pandemia, e teriam que gastar ainda mais, a seu ver, para evitar que chegássemos aos atuais 663 mil mortos pela covid. “O que vemos é uma apropriação eleitoral de uma questão técnica da maior importância”, resumiu.

Na opinião dela, a Anvisa deverá manter o estado de emergência, devido às necessidades atuais, assim como estados e municípios vão fazer as adequações possíveis na legislação para continuar atuando no combate à pandemia. Ela cita a enorme logística mobilizada para manter o Plano Nacional de Imunização funcionando. Mas existe uma parte do esquema emergencial que depende do Governo Federal, conforme ressalta ela.

A portaria 913 que revoga a 188, que decretava a emergência, impede o Ministério da Saúde de, por exemplo, convocar a força nacional do SUS, de requisitar bens e serviços particulares, de contratar profissionais de saúde em regime emergencial. “Ela engessa a esfera federal que já é extremamente engessada. Se tivermos uma nova variante mais letal ou uma retomada das variantes que já existem, o que é muito provável, infelizmente, o governo federal estará engessado juridicamente e vai perder muito tempo refazendo isso. Pra que desmontar, se não sabemos se vamos precisar de novo?” questionou.

Para ele, a finalidade de tudo isso é desinformar. Quando o ministro desmonta as normativas emergenciais, mas diz que a pandemia não acabou, acaba gerando uma confusão, em que a população se pergunta como a pandemia não acabou se está tendo carnaval. Quando, na verdade, o retorno ao trabalho presencial, como tantas outras novidades só são possíveis, devido ao “controle precário” da pandemia permitido pelo nível de vacinação alcançada.

A desigualdade presente no território brasileiro é mais um obstáculo, como alerta Deisy. “O Brasil é muito desigual, há cidades que estão em um nível de imunização muito diferente do que nós estamos em São Paulo, por exemplo, e que têm situações epidemiológicas diferentes. Então, é uma atitude temerária, que desvia a atenção da população, ocupa os governantes com burocracia, quando eles deveriam estar fazendo outra coisa”, criticou.

“O governo federal mantém a abordagem da pandemia, absolutamente eleitoreira, conversando com a sua própria base e atrapalhando o trabalho de quem quer conter a propagação do vírus no Brasil”, aponta Deisy.

    Ouça a entrevista completa:

     

    Edição de entrevista à Rádio USP

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