Lula se emociona com leitura das cartas que recebeu na prisão

O ex-presidente Lula se encontrou com autores de cartas escritas a ele na prisão, e agradeceu pelo sentido que elas deram àquela injustiça. O encontro foi durante o lançamento do livro Querido Lula, com artistas lendo parte das cartas e provocando muita emoção.

A uma plateia de artistas, políticos e admiradores que foram ao teatro Tuca na noite desta terça-feira (31), para o lançamento do livro “Querido, Lula”, com cartas destinadas a ele durante o período da prisão, o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva lembrou dos 580 dias que passou em Curitiba. Foi a oportunidade para agradecer por algo inimaginável: as 25 mil cartas recebidas, as canções dirigidas a ele em cada data especial do calendário, os “bons-dias, boas-tardes e boas-noite” coletivos, os discursos inflamados que ouvia da cela, inclusive de visitantes estrangeiros, mas principalmente aqueles que mantiveram lotado o acampamento em frente à Polícia Federal de Curitiba, durante todo aquele período.

Foi uma noite diferente daquelas que têm marcado este período de pré-campanha do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva. O tom mais formal e politizado, deu lugar à informalidade, espontaneidade dos admiradores e emoção generalizada. As cartas vinham recheadas de relatos dramáticos ou conselhos engraçados que compõem um mosaico do Brasil de Lula. As lágrimas desciam, conforme muitos contavam sua ascensão épica da miséria à realização dos maiores sonhos, permitida pelas oportunidades criadas durante os governos de Lula e Dilma Rousseff. Mas a gargalhada geral vinha, também, conforme os missivistas proibiam Lula de adoecer ou ficar triste e ainda o convidavam para uma cervejinha, assim que fosse solto. Havia até a missivista que se dirigia aos carcereiros de Lula, xingando-os, por acreditar que Lula poderia ter suas cartas interceptadas por eles.

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Ele disse nunca ter imaginado que o período seria marcado por tanta manifestação de solidariedade. “Não conheço precedentes na história de um povo tão resiliente. Mulheres, homens e crianças com tanta força”. Para ele, o duro período de prisão injusta causada pelo julgamento parcial de Sérgio Moro, baseado em acusações vazias e sem provas, acabou se revelando uma injeção de ânimo para sua vida pessoal e política. Lula contou que as cartas significavam que ele estava no rumo certo para provar que era inocente, que sua narrativa era verdadeira e não a de quem o acusou. “Me prenderam achando que a gente ia ficar mais fraco. E a verdade é que vocês fizeram eu sair da cadeia muito mais forte do que quando entrei”, avaliou o ex-presidente.

Pré-candidato ao Palácio do Planalto, Lula aparece na liderança em todas as principais pesquisas eleitorais, depois de ter sido impedido de disputar em 2018 para favorecer a candidatura de Jair Bolsonaro. Nos mais recentes levantamentos, o petista reúne intenções de voto suficientes para vencer a disputa ainda no primeiro turno. Cada vez mais, em sua opinião, se confirma para a maioria dos brasileiros que tiveram dúvidas, quando da perseguição promovida por políticos, pela polícia, pelo judiciário e pela mídia, que ele era inocente e estava sendo punido pelo que fez de bom para o povo.

“Eu não tinha tido a experiência de acordar todo dia com as pessoas gritando. Eu não acreditava que aquilo era verdade, que aquilo estava acontecendo, cada vez mais gente, mais solidariedade”, disse.

Ele disse estar em seu melhor momento, mais consciente, maduro e “esperto”. Ainda acrescentou estar vivendo um momento primoroso na vida pessoal e na esfera política.

“Eu, sinceramente, não sei se é o amor, mas eu nunca me senti tão bem como estou. Nunca vivi um momento como estou vivendo”, disse o ex-presidente, que casou há pouco dias com a socióloga Janja. A última a ler cartas foi justamente Janja. “Cartas que a gente trocou, nos fortaleceu e nos fez chegar até aqui”, afirmou Lula.

“Para mim, é um momento primoroso na vida pessoal, é um momento primoroso na minha relação política e é um momento primoroso na política brasileira, porque me parece que o povo brasileiro finalmente tomou consciência de que precisamos derrotar o fascismo e restabelecer a democracia”, afirmou.

 As cartas

“Não há, até onde sabemos, nenhum movimento equivalente na história, ao menos na mesma escala. O que se registra aqui é um movimento inverso em relação às tradicionais cartas do cárcere, escritas por líderes encarcerados para o público”, afirma a organizadora do livro com as cartas, a historiadora francesa Maud Chirio, professora e pesquisadora na Universidade Gustave Eiffel, França, onde Querido Lula foi publicado este ano. Ela se refere ao fato de um preso politico ter recebido cartas de seu povo na prisão como algo inédito.

A oportunidade de lançar o livro com uma cerimônia dessas é algo que a historiadora francesa Maud Chirio não vislumbrava quando começou a arquivar e catalogar as cartas para o ex-presidente, ainda em 2018, em parceria com o Instituto Lula. O que começou como um ato de resistência acabou se tornando um importante documento de dias difíceis no Brasil e uma celebração de liberdade.

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“Queríamos fazer isso como proteção contra um possível apagamento da memória. No processo de organização, fomos descobrindo que era um acervo excepcional, que precisava ser conhecido, que a emoção era universal. São vozes populares, cidadãos contando suas trajetórias e como o Estado pode mudar a vida das pessoas”, relata ela.

“Querido Lula” reúne 46 cartas, selecionadas por Maud Chirio dentre 25 mil. Na maior parte das vezes foram escritas por pessoas pobres, até mesmo ditadas e assinadas apenas com as digitais. Algumas das pessoas que estiveram na apresentação leram as próprias cartas enviadas na época. O livro tem prefácio escrito pelo rapper Emicida. O encontro com música ao vivo começou às 19h no Teatro Tuca, em São Paulo, e teve os ingressos esgotados antecipadamente.

“Resistamos. Fique forte, Não adoeça, é uma ordem! Preste atenção, menino: você não tem direito de ter uma gripe”. A médica paraibana Fátima Lima encerrou com esse pedido de cuidado a primeira das três cartas que enviou ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Ela diz que já escrevia durante a ditadura para presos políticos.

Foto: Ricardo Stuckert

Ela não imaginava que pouco mais de quatro anos após escrever para o ex-presidente pela primeira vez, teria a chance de ler pessoalmente a carta para ele. Como ela, 21 dos missivistas tiveram a chance de falar ao ex-presidente, com atores e artistas lendo as outras cartas.

Não soltar a mão de Lula e protestar contra a injustiça foram os temas de muitas das cartas que o ex-presidente recebeu. Algumas, no entanto, adotaram um tom mais pessoal. Foi o caso da estudante de História Marina Ribeiro, de São Paulo. Com apenas 19 anos na época, ela mandou uma mensagem não necessariamente para o ex-presidente, mas para o cidadão que estava detido injustamente. Em outubro também será sua primeira oportunidade de votar nele para presidente. “Achei que não teria essa chance”, admite.

“Foi uma carta muito pessoal. Era muito jovem e estava vendo tudo sendo desmontado, via um futuro muito complicado pela frente. Mas quis escrever mais para o Luiz Inácio que para o Lula. Comentei que o Corinthians tinha ganho naquela semana, achei que ele tinha ficado feliz com isso, perguntei se ele tinha uma TV para ver o jogo”, conta Marina.

Ao pedir ânimo ao ex-presidente, muitas pessoas relataram trajetórias dramáticas de pobreza, violência doméstica, alcoolismo, todo tipo de dificuldade. Um dos momentos que silenciaram o público foi o da leitura da carta de Lucas Ribeiro Gomes, outro “filho da pobreza”, como se dirigiu a Lula.

Sua família reunia 19 irmãos, 10 homens e nove mulheres, mas 11 tiveram pouco tempo de vida. “Falta de médico, desnutrição, falta de quase tudo.” Ele se emocionou ao lembrar das refeições, em que a mãe só se servia – quando sobrava comida – depois dos filhos.

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“Não existia Bolsa Família para amenizar a fome dos pobres, muito menos oportunidade de emprego”, lembrou Lucas, que, como muitos, destacou programas sociais dos governos Lula e Dilma. Ele conseguiu comprar um apartamento pela Minha Casa, Minha Vida. “Pior: para desespero da burguesia, ainda comprei um Celta”, emendou, arrancando risadas.

Também foram lidas cartas da professora Miliandre Garcia, de Curitiba, do pedreiro Francisco Aparecido Malheiros, da aposentadora carioca Ana Beatriz, da ativista Preta Ferreira, que escreveu quando ela própria também estava presa. Ou o antropólogo e babalorixá Rodney William: “Hoje sou bacharel, mestre e doutor, senhor presidente. Mas muitos gostariam que eu fosse apenas filho de empregada”, escreveu.

E o estudante cotista Luís Fernando Costa, que nasceu em 1989, ano em que Lula perdeu sua primeira eleição presidencial, morou “no porão de uma casa abandonada” e hoje reside em imóvel construído na primeira edição do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento. “Aqui fora há ainda há muito ódio contra o senhor. Daqueles que nunca sentiram frio e fome, que se deixaram levar pela irracionalidade e pelo medo.”

Trecho de cartas foram lidas por Zélia Duncan, Denise Fraga, Camila Pitanga, Preta Ferreira Maria Ribeiro, Cleo Pires, Celso Frateschi, Grace Passô, Erika Hilton, Deborah Duboc, Leandro Santos (Mussum Alive), Cida Moreira, Tulipa Ruiz e Cassia Damasceno. Até a ex-presidenta Dilma Rousseff e o ex-prefeito Fernando Haddad participaram da leitura. Clara Bastos (baixo) e Ana Rodrigues (piano) fizeram o acompanhamento musical. Zélia cantou Juízo Final (Nelson Cavaquinho/Élcio Soares) e Cida interpretou uma canção de Bertolt Brecht e Hanns Eisler adaptada para a peça Mãe Coragem (“Era um tempo duro, tu te lembras?”).