A urgência de reconstruir a segurança pública com valorização da vida

A situação de terra arrasada deixada pela passagem de Bolsonaro na presidência exigirá medidas de enfrentamento à violência a partir de uma nova visão humanitária de país

Foto: Carolina Antunes/PR

O Brasil é historicamente violento, e isso não é novidade sobretudo para a população pobre e negra. O que houve de novo a partir de 2019 é o fato de que o país passou a ter um presidente eleito que se coloca abertamente como um mensageiro do ódio e da destruição, com um discurso truculento que se ramifica e que vai, objetiva e subjetivamente, banalizando a violência e corroendo o tecido social. Nesse cenário, ganharam primazia a brutalidade e a “solução armada”. O desafio de um novo governo oposto ao de Bolsonaro, também na área da segurança pública, será o de inverter a lógica atual e reconstruir a nação sobre bases democráticas e de respeito à vida em todas as suas dimensões. 

Em linhas gerais, esse é o objetivo buscado pelas diretrizes do programa de governo da coligação Vamos Juntos pelo Brasil (PT, PSB, PCdoB, PV, PSOL, Rede e Solidariedade) dos pré-candidatos a presidente e vice Lula e Geraldo Alckmin. “A segurança pública é um direito fundamental e sua conservação e promoção se dará por meio da implementação de políticas públicas interfederativas e intersetoriais pautadas pela valorização da vida e da integridade física, pela articulação entre prevenção e uso qualificado da ação policial, pela transparência e pela participação social”, diz o item 31 das diretrizes, que introduz a questão.

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Embora ainda não tenha o detalhamento de um programa de governo, o documento sinaliza com uma outra percepção de segurança pública, bastante diferente da aplicada pelo governo de Jair Bolsonaro (PL). “É uma proposta democrática, que enxerga segurança pública como um direito fundamental”, avalia Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em entrevista ao Portal Vermelho.

“O que me chamou a atenção”, continua Samira, “é o aceno que faz aos policiais. Menciona a valorização profissional, a revisão de escalas de trabalho, melhorias nas carreiras e os direitos humanos dos policiais. Parece-me que os responsáveis entenderam que esse é um público com o qual Bolsonaro vem flertando e do qual se aproximou muito e que acaba sendo um ponto de apoio do mandato dele. É interessante que haja esse aceno já nessas diretrizes”. 

Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP. Foto: divulgação

Tal posição já havia também sido defendida na Plataforma Emergencial de Reconstrução Nacional, do PCdoB. “A questão central de uma política de segurança de corte democrático e cidadão é a valorização e formação das polícias com novos valores de respeito ao ser humano, particularmente em relação aos setores mais discriminados da sociedade, como o povo pobre, a mulher e a população negra”. 

As diretrizes de Lula/Alckmin defendem, ainda, entre outros pontos, que “as políticas de segurança pública contemplarão ações de atenção às vítimas e priorizarão a prevenção, a investigação e o processamento de crimes e violências contra mulheres, juventude negra e população LGBTQIA+”. E apontam a necessidade de implementar de fato e aprimorar o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), aprovado em 2018 e cujo projeto original foi apresentado pelo governo Dilma Rousseff em 2012.

O vice-governador do Rio Grande do Norte, Antenor Roberto de Medeiros, que coordenou a construção da política e do plano de segurança pública em seu estado, avalia positivamente as diretrizes nessa área e acrescenta: “é imprescindível romper com a ideia de que segurança pública é problema apenas das instituições de segurança pública, de modo que se possa concretizar a participação da sociedade, por seus segmentos, chamando também a si a responsabilidade que é de todos, como consta na Constituição Federal, em seu artigo 144”. 

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País mais violento do planeta

Não é pequeno o desafio que estará colocado para um novo governo. A violência no país é grave e o desmonte dos últimos anos somado à concepção bélica do governo contribuíram diretamente para piorar muito esse cenário. 

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, do FBSP, e de dados do Escritório das Nações Unidas para Crimes e Drogas, o Brasil é, de longe, o país com maior número absoluto de homicídios do planeta. O país concentra 2,7% dos habitantes de todo o mundo e mais de 20% dos assassinatos. Aqui, a taxa de morte violenta é de 22,3 por 100 mil habitantes. Apenas em 2021, foram 47.503 vítimas, 76% com armas de fogo. Destas, quase 78% eram negras, metade era jovem (entre 12 e 29 anos) e mais de 91% eram homens. 

O anuário aponta a redução de 6,5% na taxa de mortes violentas intencionais em relação a 2020, porém, em um de seus artigos, salienta que “ao contrário das tentativas de explicação simplista e/ou interessadas, muitas das quais feitas no afogadilho da proximidade das eleições gerais de 2022, é preciso cautela na identificação dos fatores e causas para este fenômeno”. 

O artigo aponta, entre os diversos fatores que incidem sobre esse índice,  diferenças regionais e mudanças demográficas. Afinal, é notório que não houve nenhuma política nacional, nos últimos anos, focada na redução da criminalidade que pudesse explicar minimamente essa pequena variação. Na verdade, o presidente até se beneficiou de acontecimentos anteriores à sua posse que reverberaram nesses índices. 

“Bolsonaro pegou um momento que, eu diria, é uma janela de oportunidade: os crimes contra a vida estavam caindo e houve a aprovação do SUSP, além de mais dinheiro disponível. Era tudo que qualquer presidente gostaria”, coloca Samira. 

Ela se refere a três fatos importantes: em 2017, o Brasil havia atingido a impressionante marca de 65 mil assassinatos e naquele momento havia um racha entre duas grandes organizações, o PCC (Primeiro Comando da Capital) e o CV (Comando Vermelho). Em 2018, vem a aprovação do Sistema Único de Segurança Pública, que havia sido enviado pelo governo Dilma Rousseff ao Congresso em 2012. Soma-se a tudo isso uma mudança na lei do Fundo Nacional de Segurança Pública, que fez com que os recursos do fundo passassem a sair diretamente da loteria federal. “Desde então, a gente tem um recurso específico e perene e logo, mais dinheiro para o Fundo Nacional de Segurança Pública. E a gente tem também, em 2018, um arrefecimento desse conflito entre as organizações criminosas”, lembra Samira. 

Antenor Roberto, vice-governador do RN. Foto: reprodução/redes sociais

Antenor Roberto lembra que “não obstante o governo contar com recursos vindos das loterias da Caixa, cerca de R$ 1,8 bilhão do Fundo Nacional da Segurança Pública, só 14% desses recursos foram disponibilizados aos estados no primeiro ano. Ao invés de destinar os recursos para que os estados pudessem implementar os eixos da política (de segurança pública), o governo contingenciou 65% da previsão original bilionária dos recursos do Fundo, o que levou os governadores a buscarem solução junto ao Supremo Tribunal Federal, logrando êxito e obtendo a ordem judicial para pôr fim ao referido contingenciamento, o que veio a ocorrer no ano de 2020”. 

Outro ponto criticado pelo vice-governador diz respeito ao uso da doutrina militar nas instituições, que “toma a população como inimigo, o que explica o excessivo uso da força nas operações contra grupos vulnerabilizados. Com isso, ampliou-se o distanciamento entre os profissionais de segurança pública e o cidadão, contexto agravado pela doutrina violenta e autoritária do governo federal que ampliou as licenças de uso de armas de fogo”. 

Aumento das armas em circulação, mais mortes

A partir desse “bônus” que beneficiou Bolsonaro, o presidente resolve cumprir suas promessas de campanha. “Ele tenta, de todas as formas, fazer com que no pacote anti-crime que o então ministro Sérgio Moro mandou para o Congresso constasse a ampliação do excludente de ilicitude, que acabou não passando, mas vamos lembrar que ele retoma essa proposta de tempos em tempos, e a flexibilização do controle de armas, que coloca milhares delas em circulação e contribui para a criação de muitos clubes de tiro e para um aumento desenfreado de Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CAC). Ele consegue flexibilizar tanto do ponto de vista de pessoas aptas a terem o registro quanto também pela quantidade de armas e munição por pessoa”, diz Samira. 

Ela completa dizendo que essa situação “é uma tragédia porque a gente sabe que quanto mais armas em circulação, maiores as chances de a gente ter crimes contra a vida, especialmente crimes passionais”. Esse reflexo, explica, “vai levar tempo para aparecer nas estatísticas. Então, ele ainda está se beneficiando dessas mudanças vindas a partir 2018”. 

Os dados mostram que entre 2018 e 2022, os registros ativos de Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CAC) cresceram 473%. Hoje, o país tem 4,4 milhões de armas em estoques particulares. 

“O resultado de três anos de incentivo à compra de armas é um país muito mais armado e com grupos de pressão pró-armas organizados e com portas abertas para transitar com absoluta fluidez em altas instâncias do Governo Federal e do Congresso Nacional. A quantidade de armas de fogo nas mãos de civis e CACs (caçadores, atiradores desportivos e colecionadores) ultrapassou, em muito, a quantidade de armas dos órgãos públicos”, diz artigo publicado no anuário, assinado por Isabel Figueiredo, advogada; Ivam Marques, consultor da ONU para armas e munições e David Marques, coordenador de projetos do Fórum. 

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Mesmo que as estatísticas possam ainda não explicitar todo o impacto do aumento da circulação de armas sobre a perda e a ameaça à vida, o noticiário cotidiano dá uma dimensão do reflexo que essas medidas têm. São frequentes os casos de feminicídio, brigas banais que terminam em morte, crianças e jovens que encontram armas em casa e acabam se ferindo, se matando ou matando outros, suicídios etc. 

As medidas mais recentes de Bolsonaro rasgaram o Estatuto do Desarmamento, de 2003, e representaram uma marcha a ré na tentativa de construção de um país mais pacífico. “Boa parte do pouco que existia foi simplesmente desmantelada por meio de um conjunto de atos normativos de constitucionalidade duvidosa e por um discurso político inicialmente pautado pela falsa noção de que armas geram segurança, ilustrada pela abstração fantasiosa da ‘legítima defesa’, uma interpretação peculiar do conceito de ‘liberdade’ e, desde a fatídica reunião ministerial de abril de 2020, em uma nova chave de cunho político sintetizada na frase ‘um povo armado jamais será escravizado’”, assinalam os três autores do artigo publicado no anuário. 

O resultado, além de catastrófico, demorará para ser revertido. “Pode ter certeza de que a gente vai ficar algumas décadas lutando contra essa liberação de armas”, sintetiza Samira.