No Brasil de Bolsonaro, bibliotecas minguam e clubes de tiro crescem

Enquanto país perdeu 800 bibliotecas em cinco anos, “ganhou” mais de mil clubes de tiro apenas entre 2019 e maio de 2022

Foto: Fernando Frazão/ Agência Brasil

Dentre as muitas indicações que podem ser sintomáticas da decadência de um país estão a redução dos espaços de acesso ao conhecimento, de um lado, e o aumento de locais que estimulam a violência, de outro. Não é à toa, portanto, que quase 800 bibliotecas públicas fecharam entre 2015 e 2020, último ano que consta no Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP). Nesse período, o número de clubes de tiro saiu de 40 para 291 e hoje já são 348. 

De acordo com dados obtidos pela BBC Brasil junto ao SNBP, havia 6.057 bibliotecas públicas no país em 2015, número que caiu para 5.293 em 2020, a maioria, 698, somente no estado de São Paulo. E, segundo especialistas, esses dados ainda podem estar subestimados porque a extinção do Ministério da Cultura pela gestão Bolsonaro, além de tudo, ainda contribuiu para precarizar o sistema. 

O secretário de Cultura do Estado do Ceará, Fabiano dos Santos Piúba, explicou, ao Portal Vermelho, que “essa queda se vincula à ausência de uma política de livro e leitura no governo federal, com a perda da relevância do papel e do lugar da biblioteca para os municípios brasileiros”. Ele lembra que desde 1937, com o Instituto Nacional do Livro, houve uma concepção de política pública na qual se inseria o objetivo de ter ao menos uma biblioteca pública por município. 

Fabiano dos Santos Piúba. Foto: Secult/CE

“No governo Lula, isso se tornou uma meta governamental a ser perseguida e atingida. Houve um investimento muito alto para aquisição de acervo, mobiliário, equipamento para instalação ou modernização de bibliotecas, para que cada município passasse a ter uma biblioteca”, lembra Piúba. “Havia o conceito da biblioteca como um dínamo cultural, como a Unesco preconiza, um espaço importante de memória, de patrimônio, mas também de educação, um ambiente de formação de leitores em especial”, completou. 

Para Cláudio Gonzalez, editor de livros da editora Anita Garibaldi e membro do Conselho do Plano Municipal do Livro, Leitura e Bibliotecas da cidade de São Paulo, há fatores distintos e concomitantes que ajudam a explicar o fechamento de bibliotecas. “O primeiro e mais importante deles é o avanço da cultura digital. Hoje é possível afirmar que tudo que está nos livros está também disponível, de alguma forma, na internet. Com isso, as bibliotecas perderam uma parte de sua utilidade que era a de funcionar como local de estudo e consulta, algo que era muito presente para nós que somos de gerações anteriores”.

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Os efeitos da modernidade, avalia, exigem que “as bibliotecas se modernizem, se digitalizem e promovam iniciativas atraentes para cativar este jovem que passa o tempo todo conectado. E é aí que entra o problema: não há investimentos públicos, sobretudo do governo federal, para a modernização e atualização das bibliotecas”. 

Para além destas questões, coloca, “podemos considerar também o fato de que as novas tecnologias, o avanço da cultura do streaming, o rebaixamento acelerado da qualidade da educação e a desvalorização do livro como bem cultural, tudo isso está contribuindo para tornar cada vez menor o hábito da leitura, sobretudo entre os jovens”. 

Conspiração anti-livros

Cláudio Gonzalez. Foto: reprodução/redes sociais

Ainda que haja muitos fatores a incidir sobre essa redução, um deles é a mudança radical na forma como a cultura — e também a educação —, é encarada pelo atual presidente da República e a cruzada da extrema-direita contra o “marxismo cultural”, seja lá o que isso signifique. 

Para ficar apenas nessa seara, desde a extinção do Ministério da Cultura, em seu primeiro dia de governo, até a guerra contra a Lei Rouanet, entre tantos outros ataques e desmontes, a área foi ladeira abaixo, salvo as conquistas obtidas pela resistência de parlamentares e setores sociais que se mobilizaram e conseguiram, por exemplo, criar e aprovar as leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 1 e 2 e derrubar os vetos presidenciais que tentaram barrá-las. 

“O que realmente deve nos preocupar e exigir nossa atenção e nosso ativismo é o fato de que temos um governo que deliberadamente conspira contra os livros e tudo o que eles representam, sobretudo a formação universitária. Derrotar este governo e enterrar a cultura da violência e da ignorância que ele trouxe consigo já é um bom começo para restaurar a valorização da cultura e, com ela, vem junto a revalorização do ecossistema dos livros, do qual as bibliotecas fazem parte”, defende Gonzalez.

Menos livros, mais armas

Na outra ponta na gangorra, que pende para o estímulo à violência, os clubes de tiro, ao contrário das bibliotecas, abriram na proporção de quase um por dia sob o governo de Bolsonaro. De acordo com números colhidos pelo UOL junto ao Exército, o país tem hoje 2.061 espaços dessa natureza, dos quais 1.006 surgiram entre 2019 e maio de 2022. 

Soma-se a isso o disparo, nada acidental, na quantidade de armas de fogo em circulação no país. Apenas no governo Bolsonaro, cresceu 473% o número de pessoas com licenças para esse tipo de instrumento: em 2018, eram 117,4 mil, chegando a 673,8 mil em junho deste ano. 

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De acordo com Fabiano Piúba, “no contexto em que a gente vive, no qual o próprio presidente da República valoriza muito mais as armas do que os livros, isso acaba influenciando os prefeitos que percebem essa postura como um recado de que o lugar do livro, da leitura, da educação e da formação não tem tanta relevância”. 

Ele destaca que “o livro é um objeto cultural importantíssimo para a formação e desenvolvimento de repertórios culturais, objetivos e de pensamento crítico e inventivo. Paulo Freire dizia que a gente aprende a ler para escrever a nossa própria história. Por isso que a leitura é uma prática e um ato de liberdade”. 

O livro, diz Cláudio Gonzalez, “é um símbolo, um ícone da educação e da formação cultural. Por isso, quando um setor reacionário da sociedade começa a achar ok compartilhar memes que dizem coisas como ‘se o ladrão vier te assaltar, você vai preferir ter nas mãos um livro ou uma arma?’, este tipo de pensamento tosco e desconexo não é apenas uma desvalorização do livro como produto, é muito mais: reflete toda uma ideologia de desvalorização da cultura e da educação e o fechamento acelerado das bibliotecas reflete também parte desta onda de desvalorização cultural e de promoção da ignorância”, conclui Gonzalez. 

Na contramão da barbárie, portanto, talvez valha a pena recorrer a outra máxima que circula pelas redes, em tom de resistência ao bolsonarismo: “me armo de livros, me livro de armas”.