Defesa da ciência é batalha civilizatória no Brasil de Bolsonaro 

Avaliação é do professor de Física e de História da Ciência da UFBA, Olival Freire Júnior. Para ele, essa talvez seja a maior crise que a ciência brasileira já viveu

Foto: reprodução, via Rede Brasil Atual

O desmonte da ciência e da tecnologia nacionais pelo governo de Jair Bolsonaro (PL) e o clima anti-ciência, criado a partir dos discursos e condutas do presidente e de seus seguidores, trouxeram impactos para área e para o país que ainda não podem ser completamente avaliados diante do alto grau de estragos objetivos e subjetivos e seus desdobramentos no curto, médio e longo prazos. Mas, enquanto o bolsonarismo ataca a área acadêmica, pesquisadores, professores e alunos continuam batalhando para manter a produção científica acontecendo, numa estratégia que vem combinando resistência e resiliência. 

Para falar sobre sua visão a respeito do panorama da área na atual conjuntura, o Portal Vermelho conversou com Olival Freire Júnior, professor de Física e de História da Ciência da Universidade Federal da Bahia (UFBA). “A atuação caracterizada pela resistência e pela resiliência, na qual estamos todos metidos na atividade científica, se dá porque vivemos hoje talvez a maior crise que a ciência brasileira já atravessou ao longo de sua história”, explica. 

Freire Júnior — que participa de pesquisa voltada a compreender a história da ciência e da tecnologia no Brasil, particularmente a partir da segunda metade do século 20 e sua relação com o estabelecimento de projetos nacionais de desenvolvimento — integra, até 2023, o Comitê Assessor de História do CNPq, do qual atualmente é coordenador, além de ter sido, até 2019, o pró-reitor de Pesquisa, Criação e Inovação da Universidade Federal da Bahia e compor atualmente o Comitê Central do PCdoB, entre outras atividades. “A defesa da ciência hoje é uma espécie de batalha civilizatória no Brasil”, avalia.

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Confira os principais trechos da conversa. 

O apoio à ciência e os projetos de desenvolvimento

Olival Freire Júnior. Foto: reprodução

“De uns quatro anos para cá, eu passei a trabalhar mais sistematicamente em um projeto de pesquisa voltado a compreender a história da ciência e da tecnologia no Brasil, particularmente na segunda metade do século 20, de 1945 adiante. Esse é um projeto que eu desenvolvo com um conjunto de colegas daqui da Universidade Federal da Bahia, do Rio de Janeiro, de Campinas, da USP”. 

“No ano passado, nós ganhamos um edital do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), com o projeto. E uma das questões que a gente formulou foi buscar compreender esse cenário. De 1945 até 2000, de certo modo prevaleceu um ambiente geral de apoio à ciência e à tecnologia, com altos e baixos em momentos diversos e o nosso objetivo é tentar compreender como se constituiu esse apoio. E a hipótese que a gente mais vem trabalhando é a de que isso se deu a partir da associação da ciência e da tecnologia com os projetos de desenvolvimento nacional. Essa talvez seja a melhor hipótese para explicar a continuidade desse apoio”. 

Maior crise da ciência brasileira

“A atuação caracterizada pela resistência e pela resiliência, na qual estamos todos metidos na atividade científica, se dá porque vivemos hoje talvez a maior crise que a ciência brasileira já atravessou ao longo de sua história. De 1945 para cá prevaleceu o apoio, ainda que com altos e baixos. Tivemos, no final do governo de Juscelino Kubitschek, uma onda de evasão de cérebros. Também tivemos as perseguições durante a ditadura militar. A década de 1990 foi marcada pela ideia do Estado mínimo e por uma forte  restrição à atividade científica. Mas nada disso é comparável ao que a gente tem vivido nos últimos tempos”. 

“No que diz respeito aos investimentos, houve uma queda sem precedentes no quadro orçamentário. Podemos dizer que os governos Lula e o primeiro governo de Dilma Rousseff, juntamente com mais dois ou três períodos ao longo da história, foram os de maior apoio à ciência e tecnologia”.

“Do final do governo Dilma para cá, o investimento global em ciência e tecnologia no Brasil caiu para alguma coisa entre 30% a 40% do pico que chegou no governo Dilma. Essa contenção de investimentos na área está impactando toda a vida acadêmica”. 

“O tipo de pesquisa que eu faço, por exemplo, é uma pesquisa que não gasta muito porque nossos laboratórios de historiadores da ciência são as bibliotecas, os arquivos. A gente não depende de equipamentos pesados. Mas o impacto dessa restrição eu sinto no cotidiano de alunos que não conseguem viajar, de alunos que anteriormente publicavam com mais facilidade porque muitas vezes as publicações implicam em taxa de custeio da revisão, especialmente se for numa língua estrangeira, às vezes taxa de publicação”. 

“Por outro lado, as bolsas de mestrado, doutorado e de pós-doutorado eram atrativas. Ou seja, o aluno que ganhava uma bolsa se dedicava integralmente às atividades. Nos últimos tempos isso mudou. Nesse semestre eu tenho um aluno de doutorado que está trancando a matrícula porque não consegue viver com a bolsa, precisa ganhar a vida com outros recursos. Eu nunca tive isso nos 25 anos em que atuo sistematicamente na pesquisa e na pós-graduação. Então essa é a primeira faceta”. 

Nova onda de evasão de cérebros no Brasil

“Esse impacto ainda é difícil de quantificar e de avaliar em sua totalidade, mas a minha percepção e a de outras pessoas que também analisam o quadro da ciência hoje é de que estamos vivendo uma nova onda de evasão de cérebros e de talentos no Brasil, com certas semelhanças à que a gente teve a partir de 1959-1960, mas naquele momento saíram cientistas de grande projeção. Na área da física, por exemplo, saiu por falta de condições de trabalho o professor Moysés Nussenzveig, um dos melhores físicos que nós tivemos na história do Brasil. O Sérgio Porto, que abandonou o ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica) e foi para os Estados Unidos. Hoje, o que a gente está tendo de evasão é da turma que está acabando o doutorado e que não se anima, um pessoal que está na faixa dos 27, 30 anos de idade e que não vê perspectiva de trabalho acadêmico no Brasil. A evasão de cérebros é uma coisa muito concreta”. 

Bolsonarismo e ciência

“A outra faceta é a que envolve o clima que tomou conta da sociedade brasileira nesse período. A ciência se desenvolveu no Brasil ao longo do século 20 num contexto em que figuras como Carlos Chagas ou César Lattes eram heróis nacionais. Quando o César Lattes voltou do exterior tendo descoberto o Méson Pí em 1947, a cobertura feita pela imprensa da época era semelhante à dada a um astro de futebol hoje. Havia, portanto, na um clima muito favorável na sociedade brasileira”. 

“O tempo em que a ciência era valorizada não vou dizer que ficou para trás, porque eu sou otimista e eu acho que nós vamos resistir e estamos resistindo a esse cenário. Mas é um cenário em que a atividade científica foi tão atacada, especialmente pelo atual presidente, que essa ideia de que a ciência não tem valor relevante para sociedade se difundiu, particularmente no contexto da pandemia”.

“Os sinais já vinham de antes, mas no contexto da pandemia, o que a gente acompanhou foi exatamente isso: um ministro militar da Saúde que chancelava a ideia de que não havia pandemia, que era só uma gripe, enquanto você tinha um monte de cientistas, de virologistas, de infectologistas no Brasil e no mundo inteiro alertando para gravidade do problema. E o governo foi encontrando outros que chancelavam essa ideia de tal maneira que a opinião sobre o que é a pandemia virou um objeto de disputa que você resolve no grupo do Whats App ou por lealdade política. Se eu estou do lado do presidente, eu estou contra a existência da pandemia. O efeito desse clima é tão nocivo para o desenvolvimento da ciência brasileira que a gente não sabe ainda dizer qual vai ser o exato efeito disso nas novas gerações”. 

“Tudo isso foi feito, mas tem havido resistência. Por exemplo, os pesquisadores de várias universidades, da Fiocruz, do Butantan, o caso do Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas, que mostrou resultados de pesquisa que desagradavam os senhores do governo federal e foi objeto de ataque”. 

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Ataques ao Inpe

“Há outro episódio que certamente não teve o impacto desse da pandemia, mas que para a ciência brasileira foi igualmente danoso. Temos no Brasil um sistema de monitoramento das queimadas, conduzido pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), e esse instituto, quando revelou dados de aumentos significativos nas queimadas no início do governo Bolsonaro, o governo tentou enquadrar o diretor do Inpe, o professor Ricardo Galvão, que não se curvou a essas pressões e teve uma atitude heroica de dizer que não ia maquiar dados para satisfazer o governo e o resultado é que o professor foi exonerado”. 

“Não temos antecedentes na sociedade brasileira de alguém ter sido exonerado de seu cargo pelas atividades científicas que estão sendo realizadas. Nós tivemos durante a ditadura militar cientistas que foram exonerados, que tiveram aposentadoria forçada, que tiveram seus direitos políticos cassados, via de regra por dissidências e divergências políticas com o governo de então. Mas mesmo nos tempos militares, não havia tal tentativa de controle da ciência produzida no laboratório”. 

Clima de medo

“O efeito disso também não conseguimos quantificar. Mas, um sentimento de medo se instalou nas universidades brasileiras, o medo de pensar. O professor pensa o que que ele vai falar em sala de aula. Eu tive colegas que me perguntaram ‘será que um projeto de pesquisa sobre um tema de mais apelo político-social será acolhido nas agências?’.  Esse clima de medo se tornou difuso porque ele se espalhou”. 

Batalha civilizatória

“Hoje a defesa da ciência não é interesse apenas da comunidade de cientistas, não é só uma defesa dos que consideram que não pode haver desenvolvimento econômico e social sem ciência e tecnologia. A defesa da ciência hoje é uma espécie de batalha civilizatória no Brasil.” 

“Vivemos hoje uma encruzilhada entre perspectivas civilizatórias, associadas a questões como saúde para todos e meio ambiente, por exemplo, e um passo atrás no sentido da barbárie. Eu acho que hoje a defesa da ciência adquiriu essa conotação, que é política, e é uma conotação que extrapola o próprio embate com o atual presidente da República. Mesmo que outro projeto político ganhe as eleições — e eu espero que a gente ganhe —  a batalha em defesa da ciência como um dos valores civilizatórios vai continuar porque você tem aí cerca de 30% da população brasileira que continua apoiando os desvarios que tomaram conta do Palácio do Planalto”. 

Resistência e resiliência

“A atividade científica nas universidades tem sido marcada por resistência e muitas vezes resistência política aberta. Como pró-reitor da universidade várias vezes eu fui para as ruas em passeatas. Não é o usual que a atividade de um pró-reitor seja estar numa manifestação. Mas para mim era claro que eu tinha de estar nas ruas, eu não podia estar naquele cargo defendendo a gestão da ciência e da tecnologia e não ir com colegas, com estudantes, com outros pesquisadores protestar”. 

“E a dimensão de resiliência se dá porque nós continuamos, em meio a toda essa adversidade, fazendo as nossas pesquisas, acreditando que esse tempo vai passar e que vai haver uma uma reversão dessas tendências retrógradas que se cristalizaram na sociedade brasileira”. 

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Superação do caos

“O primeiro passo (para a superação desse cenário) penso que vai depender muito de um gesto político do novo presidente. Por exemplo: o Ministério de Ciência e Tecnologia, muitas vezes na história da República, não foi muito valorizado — trata-se de uma pasta cujo orçamento é relativamente pequeno e cujo uso político partidário é bem mais complicado. Então eu diria que a valorização desse ministério depende, antes de tudo, da atitude do presidente da República”. 

“Fui secretário do Conselho Nacional de Ciências e Tecnologia de 2011 a 2012. E eu ficava muito impressionado com o que alguns cientistas que tinham assento nesse conselho diziam: ‘as reuniões do conselho são muito importantes porque o Lula nos ouve’. Isso é um gesto político que o Lula instaurou e que se expressou também na escolha de ministros que ele prestigiou. Veja que um dos melhores ministros da Ciência e Tecnologia que nós tivemos ao longo da história foi o professor Sérgio Rezende, que é um pesquisador.  Para mim, o problema não é que o ministro deva necessariamente ser um pesquisador ou não. Mas é saber se o ministro é valorizado pela presidência ou não e na relação com o Sérgio Rezende, isso havia”. 

“Na área da educação a mesma coisa: a gestão do (Fernando) Haddad expressou muito isso: havia um projeto de expansão das universidades, das redes federais, de montagem do sistema do Fies e o Haddad era um ministro altamente valorizado pela presidência da República. Nos últimos anos, o que nós tivemos? Ministros fracos. Na educação tivemos coisas escandalosas. Quando se pensava que o fundo do poço seria o (Abraham) Weintraub, tivemos uma situação pior com o ministro usando as igrejas para promover atividades discutíveis do ponto de vista jurídico e em termos de legalidade”. 

Desafios na ciência e na educação

“Agora, esse gesto é apenas a primeira parte. O grande desafio é formular concepções e projetos para isso. No caso da área da ciência e tecnologia, eu diria que a gente tem mais elaboração, até porque nos últimos tempos a Academia Brasileira de Ciências, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, se mobilizaram muito. E nós tínhamos tido a Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia lá em 2010, então eu acho que é preciso colocar essas ideias em ordem”. 

“No caso da educação, eu acho que o desafio é maior ainda porque é histórico: fazer da escola pública uma escola de qualidade, o grande instrumento que nos permita enfrentar e ultrapassar as iniquidades, particularmente étnico-raciais, de gênero e de região que a gente tem no país. Não tem a menor chance de a gente ter uma sociedade que se desenvolva sem ter essa possibilidade de a criança ter uma escola pública de qualidade. E para ser de qualidade, ela tem que ser com dois turnos, com merenda decente e tudo o mais”. 

“Temos uma dívida histórica na sociedade brasileira e talvez o grande instrumento para equacionar a herança da escravidão teria sido a escola pública com essas características e nós, como sociedade brasileira, falhamos nisso ao longo de um século, de 120 anos. Portanto, eu diria que aí está o nosso grande desafio: fazer da educação um mecanismo de mitigação das iniquidades presentes na sociedade brasileira”.