Críticas à CLT renovam histórico anti-Vargas da imprensa paulista

Editorial da Folha sobre os 80 anos da CTL dá curso à missão de demolir qualquer legado varguista

Montagem sobre ilustração de Zed Nesti

Os jornalões brasileiros, tais quais os “muitos Severinos” do poema de João Cabral de Melo, parecem “iguais em tudo na vida”. Mas há uma semelhança que fica particularmente em evidência na imprensa paulista – e é o fato de seus jornais nutrirem um ressentimento inesgotável em relação ao ex-presidente Getúlio Vargas.

O Estadão, fundado em 1875 e já próximo do sesquicentenário, porta-se até hoje como um contraponto ao varguismo. Em sua narrativa, os anos pós-Revolução de 1930 representaram “uma das épocas mais difíceis”.

Porta-voz da burguesa paulista, o jornal se engajou no fracassado Movimento Constitucionalista de 1932, que tentou em vão resgatar a hegemonia política perdida pela elite de São Paulo. Durante o Estado Novo (1937-1945), o diário da família Mesquita ficou sob intervenção por mais de cindo anos.  “O jornal não reconhece os números editados pelos interventores de Vargas”, diz o Estadão. “Esse período não entra na história do jornal.”

A Folha de S. Paulo tampouco poupa Vargas. Irmã mais nova dos jornalões paulistas, o jornal nasceu em 1921. Nove anos depois, com o triunfo da Revolução de 30, apoiadores de Getúlio invadiram e depredaram sua Redação. Para usar uma expressão em desuso, a tipografia do jornal foi “empastelada”.

Nas palavras da Folha, “os getulistas de São Paulo festejaram depredando e empastelando jornais. Manifestantes destruíram rotativas e linotipos da Folha da Noite, que não teve tempo de circular. Móveis e máquinas de escrever alimentaram a fogueira com destroços do jornal no meio da rua, na altura da Praça da Sé, em São Paulo”. As publicações do grupo deixaram de circular por quase três meses.

“Iguais em tudo e na sina”, a Folha, como o Estadão, apoiou 1932. Mesmo com a derrota militar do estado em menos de três meses de conflito armado, a imprensa paulista se aliou ao Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo na força-tarefa para glorificar o Movimento Constitucionalista. Partiu de empresas como a Folha a ideia de frisar o levante como “Revolução de 32” ou “Revolução Constitucionalista”.

Em 2014, quando o suicídio de Vargas completou 60 anos, o publisher da Folha, Otavio Frias Filho, teorizou que, “num homem tão racional e metódico” quanto Getúlio, “mesmo os lances da paixão foram comedidos pelo cálculo”, haja vista a célebre carta testamento. Para Frias Filho, “sua qualidade literária quase faz esquecer o quanto ressoa de demagogia nacionalista e de culto à personalidade em seu teor”. Getúlio era, a seu ver, “um oportunista por excelência, adotando os disfarces ideológicos que mais lhe convinham a cada conjuntura”.

O editorial da Folha sobre os 80 anos da CTL (Consolidação das Leis do Trabalho), publicado nesta quinta-feira (3), dá curso à missão de demolir qualquer legado varguista. A legislação, sancionada por Getúlio em 1º de maio de 1943, teria “baixa eficácia”, porque “apenas” 38,2 milhões de brasileiros trabalham hoje com carteira assinada, ao passo que 38,1 milhões estão na informalidade.

Em contraposição, o editorial defende a nefasta reforma trabalhista de 2017, com a qual o governo Michel Temer promoveu o mais amplo desmonte da CLT. “As novas regras tiveram os objetivos corretos de permitir maior flexibilidade nos contratos e fortalecer as negociações coletivas, garantidos direitos básicos”, aponta a Folha.

“Maior flexibilidade” não passa de um eufemismo para mais precarização nas condições de trabalho, em benefício exclusivo dos patrões. Pode-se dizer que a reforma de Temer foi, a rigor, “antitrabalhista”. Uma leitura mais atenta do editorial é o suficiente para constatar que a condenação da CLT em favor da reforma não se sustenta.

Dados levantados pelo jornal mostram que “o percentual de informais no mercado, elevadíssimo, pouco tem se alterado ao longo dos anos. Desde 2016, quando começam os números da pesquisa nacional do IBGE, a cifra varia entre 38,3% e 40,9%, fora uma queda a 36,5% no período atípico da pandemia. A marca atual é de 39%”. Ora, se o número se mantém numa mesma ordem de grandeza mesmo com a suposta “modernização” da lei, por que a culpa era da CLT?

A Folha omite a promessa do governo Temer de gerar 6 milhões de empregos com a reforma, mas procura contemporizar: “A geração de empregos formais é prejudicada pela escassez de vigor da atividade econômica”. Sabendo que, ao fim e ao cabo, há poucos números que justifiquem o desmonte, o jornal apela: “Os resultados da reforma da legislação promovida em 2017 ainda são incipientes para avaliação”. Há um abismo, reconhece a Folha, entre os tais “objetivos corretos” e seus “resultados”.

A seguir, a Folha acusa o governo Lula de querer “interromper o processo de liberalização das normas, incluindo aí uma ofensiva contra o trabalho por meio de aplicativos”. Seguindo a cartilha da grande mídia, a Folha já começa a pregar contra a regulação dos trabalhadores uberizados com a mesma ira que destinou à “PEC das Domésticas”: garantir direitos para quê?

Só que a “octogenária CLT” tem um agravante, o DNA de Getúlio Vargas, que atiça o jornal paulista. “Discute-se na academia o quanto ela teve de influência do fascismo”, murmura a Folha, em tom de mexerico, sem querer se comprometer. Não é só oposição a Lula e alinhamento aos empresários. Em suas críticas, ao falar em “obsoleta orientação controladora e paternalista que décadas atrás inspirou a hoje remendada CLT”, a Folha também renova o histórico. A revanche contra Vargas não acabou.

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