Golpe militar no Gabão se soma a outros oito recentes na mesma região

Sentimento antifrancês e crise econômica se espalham pelo Sahel africano em forma de golpes militares no Gabão, no Mali, em Burkina Faso, no Chade e no Níger

Bandeiras russas e frases contra a França marcam o sentimento nas manifestações de apoio a golpes militares na África Ocidental. Na foto, multidão se manifesta no Níger. A placa diz: “Abaixo a França, viva Putin”.

A tentativa de golpe no Gabão, desencadeada pelos soldados que anunciaram o cancelamento dos resultados eleitorais e a dissolução das instituições estatais, levanta questionamentos cruciais sobre o poder e a estabilidade política não apenas no país, mas também em toda a região. Este é o oitavo golpe envolvendo militares contra governos eleitos nos países da região centro-ocidental da África, o chamado Sahel, desde 2020.

No Gabão, houve uma ação militar coordenada por um grupo de altos oficiais, ocorrida uma hora após o anúncio da reeleição do presidente Ali Bongo Ondimba, que lidera o país há 14 anos, para um terceiro mandato. 

O Gabão é um estado que há mais de 55 anos é governado pela mesma família, desde sua independência da França em 1960. O pai do presidente eleito tinha reputação de cleptocrata, como um dos homens mais ricos do mundo, governando o petróleo do Gabão desde 1967.

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Seu opositor Albert Ondo Ossa denunciou fraudes orquestradas pelo campo de Bongo. Esse contexto de disputa eleitoral torna-se o pano de fundo para uma intervenção militar inesperada, com dissolução das instituições democráticas.

O comunicado dos soldados, lido na televisão estatal, enfatiza a “grave crise institucional, política, econômica e social” que o país atravessa, alegando que as eleições não preencheram as condições para serem transparentes, críveis e inclusivas. O comunicado também critica a “governança irresponsável e imprevisível” que deteriora a coesão social.

A tentativa de golpe ocorre na capital do Gabão, Libreville, onde sons de tiros foram ouvidos depois que os militares assumiram o comando, assim como comemorações nas ruas. 

Apesar de ser um dos países mais ricos da África em termos de PIB per capita, as receitas provenientes do petróleo não impediram que cerca de um terço da pequena população de 2,3 milhões vivesse abaixo do limiar de pobreza estabelecido pelo Banco Mundial. 

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Junta militar anuncia na TV o golpe no Gabão contra a reeleição de Bongo

O bode expiatório francês

A situação atual no Gabão, refletida na tentativa de golpe, não está isolada na região, um verdadeiro cinturão de golpes. O Sahel de África (África Ocidental e Central), onde estão alguns dos países mais pobres, politicamente instáveis e propensos a conflitos do mundo, têm visto uma série de oito golpes desde 2020, no Mali, na Guiné, em Burkina Faso, no Chade e no Níger, que podem se tornar uma epidemia. 

O fato da maioria dos países serem francófonos revela uma dimensão neocolonial das instabilidades. O sentimento anti-francês nas ruas, com potencial de recrutamento de grupos armados, ajuda os golpistas a ganhar legitimidade e favorece a Rússia, que expande sua influência no continente. 

A memória do colonialismo francês, definido por campanhas militares brutais, trabalho forçado, repressão generalizada, apagamento cultural, segregação racial e deslocamentos forçados, ainda está muito viva na região. A desconfiança com tudo que a França faz nesses países é generalizada, assim como os governos são vistos como peões daquele país europeu.

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Nos últimos anos, o Sahel se tornou um importante parque de diversões para grupos armados violentos, desde o Boko Haram e o Estado Islâmico na Província da África Ocidental (ISWAP) até o Jama’at Nusrat al-Islam wal-Muslimin  (JNIM). De acordo com o Índice Global de Terrorismo produzido pelo Instituto de Economia e Paz (IEP), a região é agora responsável por impressionantes 43% das mortes globais por terrorismo.

Operação Barkhane

Foi justamente este cenário que, em 2012, levou o governo do Mali a pedir ajuda da França, que empreendeu a maior operação militar moderna para expulsar rebeldes tuaregues e combatentes aliados da Al-Qaeda, avançando por outros cinco países. O saldo final não foi dos melhores, com os grupos armados aumentando seu alcance, gerando graves problemas de segurança contra populações civis, que se voltaram contra a ocupação francesa.

Desta forma, a tendência de insatisfação popular com a corrupção, governança questionável e a gestão inadequada dos recursos são elementos concretos que se juntam ao sentimento antifrancês e à violência dos conflitos armados. A deterioração das relações com Paris aproximou o Mali dos mercenários russos do grupo Wagner. Em 31 de janeiro de 2022, o Mali expulsou o embaixador francês do país.

Em vez de tentar identificar e abordar as causas profundas do conflito, reforçando as instituições estatais e incentivando a boa governança, Paris tentou resolver os problemas de segurança dos países do Sahel exclusivamente através da força militar, que foi ineficaz.

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Além disso, a falta de confiança no processo político e democrático tem levado a um aumento da intolerância e ao olhar para os militares como uma possível força de mudança. Quem saiu ganhando com tudo isso foi Moscou, que obteve uma abertura que buscava há muito. Agora, os russos combatem grupos armados aliados aos governos militares, até que a opinião pública se volte contra todos eles novamente.

Dados compilados desde 1950 por investigadores americanos, mostram que a África se destaca como o continente com o maior número de tentativas ou sucessos de golpes militares, totalizando 214, dos quais pelo menos 106 foram bem-sucedidos. 

45 das 54 nações do continente africano sofreram pelo menos uma tentativa de golpe de estado desde 1950. Para efeito de comparação, na América Latina foram 146 golpes desde 1950, com 70 bem sucedidos. 

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Confira os mais recentes golpes e contragolpes:

Níger: Em 26 de julho de 2023, Bazoum do Níger foi derrubado pelos militares.

Burkina Faso: Em janeiro de 2022, o exército de Burkina Faso destituiu o presidente Roch Kabore, culpando-o por não ter conseguido conter a violência de militantes islâmicos. Em setembro daquele ano, ocorreu um segundo golpe do capitão do exército Ibrahim Traoré, que depôs à força Paul Henri-Damiba.

Guiné: Em setembro de 2021, o comandante das forças especiais, coronel Mamady Doumbouya, derrubou o presidente Alpha Conde. Um ano antes, Conde havia mudado a Constituição para contornar limites que o teriam impedido de concorrer a um terceiro mandato, provocando tumultos generalizados.

Chade: Em abril de 2021, o exército do Chade assumiu o poder depois que o presidente Idriss Deby foi morto no campo de batalha enquanto visitava as tropas que lutavam contra os rebeldes no norte.

Mali: Em agosto de 2020, um grupo de coronéis malianos destituiu o Presidente Ibrahim Boubacar Keita. O golpe seguiu-se a protestos antigovernamentais sobre a deterioração da segurança, eleições legislativas contestadas e alegações de corrupção. Nove meses depois, aconteceu um contragolpe, com Assimi Goita, nomeado vice-presidente após o primeiro, liderando o segundo e tornando-se chefe de Estado.

Sudão: Em outubro de 2021, o general Abdel Fattah al-Burhan liderou uma tomada militar em Cartum, dissolvendo um conselho governante no qual o exército e os civis partilhavam o poder e lançando a transição democrática do país numa turbulência.

Com informações da Aljazira

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