Waters de volta a Brasília: emoção à flor da alma

Com mundo em polarização política e destilando ódio, Waters convida as pessoas a não brigarem, mas valorizarem a riqueza cultural dos diversos povos

Show de Roger Waters em Brasília. Foto: Angélica Torres

Genial o Roger Waters introduzir a literatura como tal em show de rock, o que parece ser inédito. Nos telões do palco armado no Estádio Mané Garrincha, os trechos em que os textos vão se superpondo às cenas projetadas, como se ele os digitasse numa tela de computador naquele exato momento, são o diferencial que o músico-politico traz à linguagem do rock no palco, nessa anunciada última turnê mundial.

Nas partes em que narra suas nostálgicas histórias pessoais com Syd Barrett, Waters fica entre um texto epistolar e uma conversa com amigos, num bar, sobre o triste destino do parceiro – e como agrada ver nos telões o belo rosto do Crazy Diamond, o Barrett, esse cabeça das origens do Pink Floyd. O incomum e interessante recurso de pegada visual literária, usado no palco, inclui ainda a revelação sobre o colapso nervoso que Waters sofreu após a separação do seu primeiro casamento.

E, claro, ele põe no espetáculo inteiro as bandeiras de todas as causas humanistas, desde assassinados por guerras ao redor do mundo a nomes de personalidades perseguidas e martirizadas, como Julian Assange.

Quem teve a sorte de assistir ao filme desse mesmo show, gravado em Praga, na Tchecoslováquia, e que por meses ficou disponível no YouTube como propaganda para o que se iria ver, percebe as modificações que o músico introduz, recriando partes que dizem respeito ao país da vez, mas também ao momento histórico em que ele está se apresentando.

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Assim, nesta versão brasileira, a ênfase recai sobre Gaza e os palestinos, que surgem nos telões algumas vezes, levando a plateia ao delírio, entre palmas, assobios e gritos; além de indígenas das Américas, tribos da África e crianças de favelas do Rio de Janeiro. Nossa Marielle Franco também é citada.

Isso tudo, claro, em contraponto ao cinismo estampado nas caras dos bélicos senhores do mundo — Reagan, Bush pai, Clinton, Bush filho, Obama, Trump e Biden, e em fragmentos de seus discursos, mesclados com a música ao fundo.

E a homenagem que presta à família, a dele em nome de todas, ao fim? Os megafãs têm razão: Waters é único. Emociona e arrepia o espectador o tempo todo e não só por seus shows grandiosos, mas, especialmente, pela coerência da postura sociopolítica, assumida ao longo de sua inteira carreira.

No momento em que o mundo se encontra em polarização política e destilando ódio contra diferentes povos, ele convida as pessoas a não brigar, mas sim a valorizar a riqueza cultural desses povos e, assim, a viverem em paz e felizes — ou menos infelizes e doentes, como temos testemunhado.

No final, andando pelos corredores em direção à saída do Mané Garrincha, calma e educadamente como todos se portaram durante as quase três horas de espetáculo — o público brasiliense, não à toa brindado com o primeiro show da turnê no Brasil, fez coro com um fã que puxou um “olé-olé-olé-olá, Lula, Lula”, com os braços levantados e o L na ponta dos dedos.

Grande, solidário, amoroso, encantador Roger Waters.

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