Por uma Política Nacional de Cuidados

O trabalho de cuidado desempenhado por mulheres é seara histórica que faz com que estas já nasçam e carreguem por toda a vida o “dever” de cuidar

Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil

Brasil, 5 de novembro de 2023, a redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) teve como tema o cuidado desempenhado pelas mulheres no Brasil. O assunto fez milhões de adolescentes e jovens pensarem sobre uma temática central na vida das sociedades em todo o mundo. Das pessoas inscritas do exame, 60% são mulheres.

O trabalho de cuidado desempenhado por mulheres é seara histórica que faz com que estas já nasçam e carreguem por toda a vida o “dever” de cuidar da casa, dos filhos e filhas dos pais, irmãos e irmãs, doentes e idosos. O chamado trabalho de reprodução social, termo adotado por muitas vozes do movimento feminista internacional, de matrizes que vão do liberalismo às correntes do emancipacionismo popular, pode ser muito bem compreendido como o conjunto de tarefas que faz com que os seres humanos sejam cuidados para que possam atuar no chamado mundo da produção social.

São as mulheres que costumam ser “naturalmente” encarregadas pela limpeza e conservação física do ambiente doméstico, pela alimentação diária, as tarefas escolares de crianças e adolescentes, o cuidado com a saúde de doentes, idosos, pessoas com deficiência e com doenças crônicas. São as mulheres que, mesmo quando ausentes do exercício físico de tais tarefas, ainda as gerenciam e/ou terceirizam para que outras mulheres, mal ou não remuneradas, possam exercer tais ofícios. Não por acaso, o imaginário popular está cheio de mulheres e meninas ‘praticamente da família’ ou que, ainda crianças, foram trabalhar ‘em casa de família’ em troca de algum sustento.

Faz apenas alguns anos que o reconhecimento dos direitos trabalhistas dessas mulheres foi apontado como um dos motivos para a queda na popularidade de outra mulher que governava o país. Que ousadia dar visibilidade e até direitos às mucamas modernas, herdeiras das escravas de casa, das amas de leite e tantas outras funções desempenhadas em quatro séculos de escravidão especialmente perversos com mulheres negras, cujos ecos ainda nos ensurdecem.

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A libertação de mulheres de condições análogas à escravidão, notícia tristemente comum nos nossos dias, segue sendo o reflexo perverso de um passado que teima em não passar. Mas esse é outro tema.

O tema do cuidado necessita de visibilidade, da exposição de números contundentes. Segundo a Oxfan Brasil (2022), mulheres e meninas em todo o mundo dedicam cerca de 12, 5 milhões de horas, todos os dias, ao trabalho de cuidado não remunerado, o que significa uma contribuição de 10,8 trilhões de dólares ao ano em escala global. Somado a isso, mais de 3/4 de mulheres e meninas estão vinculadas ao trabalho de cuidado não remunerado e 2/3 às atividades de cuidado mal remunerado. Esses números dizem muito sobre a face feminina da pobreza. Eles indicam uma brutal desigualdade de classe, raça e gênero. São mulheres e meninas pobres e negras que engrossam os índices de ocupação em trabalho de cuidado não ou mal remunerado. O trabalho de cuidado não pago, em sua invisibilidade, é levado à naturalização; não é entendido como investimento e se apresenta como custo permanente, sumindo dos indicadores econômicos e intensificando sua face de trabalho subalterno e, consequentemente, desvalorizado.

O trabalho de cuidado, é um “não-trabalho” para o capital, para a sociedade, as famílias e a maioria dos governos que cristalizam e reproduzem “papéis” de gênero, indicando as mulheres como “rainhas do lar” ou “mulheres maravilha” quando estas assumem duplas e até triplas jornadas de trabalho. A condição para a suposta liberação pública das mulheres para a chamada “esfera da produção” é que acumulem tarefas ou transfiram parte delas a outras mulheres e meninas mal ou não remuneradas, sujeitas a toda sorte de assédios e múltiplas violências.

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O trabalho de cuidado precisa ser encarado como o trabalho que mantém o mundo da produção funcionando todos os dias. Sem ele, a vida e a produção ficam estagnadas. Recentemente, uma nação vizinha reconheceu formalmente a parte doméstica desse trabalho. Do lado de cá da fronteira, o pensamento hegemônico fez cara de escândalo. A organização familiar burguesa adota o modelo de homem provedor e mulher cuidadora por excelência. Adota uma configuração de defesa da propriedade privada, seja pela provisão material, seja pelo cuidado individual e coletivo de seus membros.

Valorizar o trabalho de cuidado é efetivar um conjunto de medidas que passe a compreendê-lo como uma tarefa de todas as pessoas e do Estado. Cuidar não é assunto privado nem de um só gênero. É tema público, é compartilhamento de responsabilidades. É preciso, mais do que nunca, de creches, escolas em tempo integral, restaurantes, cozinhas e hortas sociais/comunitárias, lavanderias públicas, potente rede de acesso à água, saneamento, energia elétrica e internet. Serviços que façam com que as pessoas, principalmente as mulheres, mães ou não, sejam mais liberadas do trabalho de cuidado, dedicando mais horas de suas vidas ao descanso, ao lazer, ao esporte, à política, à educação formal; ao mercado de trabalho; à arte, à cultura, à academia, à ciência.

Cuidar não é ruim. Cuidar não pode se transformar em fardo. É cansativo e, muitas vezes, insalubre, sob condições solitárias e muito adversas. O cuidado requer energia, dedicação, persistência, trabalho. Todos (as) precisamos exercer o cuidado como uma dimensão da existência humana. Não pode ser ofício único e exclusivo de mulheres e meninas, mas, repito, compartilhado com os homens e o Estado, sempre. Isso se faz com políticas públicas que tratem o tema de forma estratégica para a elevação da qualidade de vida das mulheres, pois se articula, inclusive, com o enfrentamento à violência doméstica, a autonomia econômica, a redução da jornada, os direitos sociais, trabalhistas, sexuais e reprodutivos. A relação mulher e trabalho deve ser prioridade na agenda feminista global.

O Brasil e a América Latina avançam no debate, legislaçâo e execução de Políticas Públicas de Cuidado na perspectiva de criarem plataformas nacionais de atuação. No mês de setembro último, o Governo Brasileiro, por meio do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e do Ministério das Mulheres, realizou um encontro com autoridades latinoamericanas, representantes da Cepal, OEA e Onu Mullheres, acerca dos Marcos Normativos das Políticas de Cuidados na América Latina. Segundo o MDS, a realidade brasileira aponta para a pós-crise global do cuidado, que ganhou super intensidade com a pandemia de Covid-19, trazendo graves consequências às mulheres, em especial as que já se encontravam no mundo do trabalho. A pandemia deixou ainda mais exposto o passado da América Latina, ressaltando que o exercício do cuidado tem as marcas coloniais ainda tão presentes em nossas relações sociais. (MDS, 2023)

O trabalho do cuidado, acolhimento e afeto não tem como ser abreviado. Todas as pessoas precisam ser cuidadas durante toda a vida. Todas, sem exceção. É tarefa impossível de ser realizada só por mulheres sem prejudicá-las, adoecê-las e/ou retirá-las as possibilidades de vivenciar outras dimensões da vida.

Por fim, mas longe de encerrar o assunto, na noite de um domingo pós-feriadão, certamente de muito trabalho para as mulheres, paramos para pensar que milhões de jovens candidatos a ingressar na universidade estão dialogando sobre o tema em suas casas, nas rodas de amigos, com colegas de escola e professores (as). Uma grande parcela dessa juventude vai olhar diferente para suas mães, para as mulheres da família e do seu entorno. Hoje, o trabalho de cuidado exercido pelas mulheres no Brasil foi, seguramente, o assunto mais comentado do país. O calcanhar de Aquiles da jornada de trabalho feminina virou manchete nas casas brasileiras. Que, de manchete, se transforme, efetivamente em política pública de Estado. É o que queremos, é do que precisamos. As mulheres e toda a sociedade brasileira.