O legado de morte e destruição que Kissinger deixou ao mundo

Guiado por um espírito imperialista, ex-secretário de Estado dos EUA esteve diretamente envolvido em alguns dos piores momentos da história da humanidade

Kissinger em 1975. Foto: Escritório Fotográfico da Casa Branca

A morte de Henry Kissinger aos 100 anos, ocorrida nesta quarta-feira (29), certamente trará à tona uma série de análises elogiosas sobre sua inteligência, seus conhecimentos geopolíticos e suas habilidades diplomáticas. Mas, o legado que ele realmente deixa é outro: a contribuição central que teve na construção do imperialismo estadunidense e na promoção de guerras e golpes que tiraram a vida de milhões de pessoas em diferentes pontos do planeta ao longo de décadas.

Nascido em 27 de maio de 1923, em Fürth, na Alemanha, Heins Alfred Kissinger, como foi batizado, naturalizou-se norte-americano em 1943, após ter ido com sua família para os EUA, em 1938, fugindo da perseguição aos judeus comandada por Adolf Hitler. 

Tornou-se um dos nomes mais influentes da política externa no século 20, tendo ocupado cargos como assessor de Segurança Nacional, secretário de Estado dos presidentes Richard Nixon e Gerald Ford, além de ter aconselhado muitos outros líderes em assuntos de política internacional. 

Se, por um lado, patrocinou movimentos de distensão com a União Soviética e de aproximação com a China, por outro figurou entre os responsáveis por momentos que jogaram pelo ralo a noção de humanidade. E estas, certamente, são as suas principais marcas. 

Apoio a golpes e guerras

Kissinger foi um dos mentores da Operação Condor — aliança entre ditaduras da América do Sul, com o apoio dos EUA, nos anos 1970. Teve papel central no golpe que levou à morte o presidente do Chile, Salvador Allende, e instituiu a ditadura de Augusto Pinochet, em 1973, bem como na viabilização da ditadura militar no Brasil, iniciada em 1964. Todos os eventos, é bom lembrar, deixaram um rastro de torturas, mortes e desaparecimentos, além do desmonte político, econômico e social desses países. 

“Pelas contas do historiador da Universidade de Yale, Greg Grandin, entre 1969 e 1976, a política externa de Kissinger foi responsável por 3 a 4 milhões de mortos”, lembra o jornalista Jamil Chade, no UOL. Além disso, recorda, “quando em 1999 o juiz espanhol Baltazar Garzón pediu a extradição de Augusto Pinochet, Kissinger foi um dos personagens internacionais a sair em apoio ao ditador chileno”. 

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O currículo de ações infames com as quais esteve envolvido e que levaram a atrocidades contra os mais diferentes povos não para por aí. Há alguns anos, Ibrahim Warde, professor da Tufts University (EUA), listou, em artigo na revista Le Monde Diplomatique Brasil, algumas dessas iniciativas: Na realidade, a carreira política do homem que ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1973 foi marcada pelo culto à violência e ao sigilo. Não há mais qualquer dúvida quanto à responsabilidade direta de Kissinger na prorrogação (injustificada, do ponto de vista estratégico) da guerra do Vietnã e sua extensão ao Camboja e ao Laos, nas operações de assassinato e subversão da democracia no Chile, em Chipre, na Grécia e em Bangladesh, ou quanto à sua cumplicidade no genocídio em Timor Leste”. 

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No mesmo ano em que recebeu o Nobel, dedicou-se à Operação Nickel Grass, para levar armas ao aliado Israel durante a guerra de Yom Kippur em 1973, que envolveu, ainda, o Egito e a Síria.  Há 20 anos, em 2003, Kissinger apoiou a invasão do Iraque, sob o argumento de que o país teria armas de destruição em massa; Saddam Hussein foi morto e tempos depois descobriu-se a mentira por traz da motivação publicamente alegada dos ataques. Não à toa, era comum a esquerda se referir a ele como “Henry Killinger”, trocadilho com o verbo to kill, que em inglês significa matar, nome também dado a um vilão de desenhos animados. 

Em artigo publicado no The News York Times e reproduzido por O Estado de S.Paulo, Ben Rhodes, vice-conselheiro de Segurança Nacional dos EUA entre 2009 e 2017, no governo de Barack Obama, escreveu que Kissinger “era o exemplo vivo da lacuna entre a história que os Estados Unidos, a superpotência, conta e a maneira como os EUA agem no mundo. Por vezes oportunista e reativa, a política externa defendida por Kissinger era apaixonada pelo exercício do poder e sem preocupação com os seres humanos deixados em seu rastro”. 

Se Kissinger atuou para garantir cada vez mais poder aos EUA e acabou moldando alguns dos principais acontecimentos que marcaram a história recente, também é fato que seu pragmatismo e frieza tiraram parte da nossa humanidade, tanto do ponto de vista das vidas perdidas quanto no que diz respeito aos valores que deveriam reger nossa existência. 

Com agências