Brasil perdeu mais de 616 mil vidas para a violência em 11 anos

Apesar da queda de 18,3% nos homicídios entre 2011 e 2021, números seguem altos. Redução não foi maior devido à política armamentista de Bolsonaro, diz Atlas da Violência

Foto: Jose Cruz/Agência Brasil

Um novo mapeamento da violência voltou a mostrar dados alarmantes sobre a realidade brasileira no período que vai de 2011 a 2021. Ainda que tenha sido registrada redução no número de homicídios, 616.095 pessoas foram assassinadas em 11 anos, 47.847 apenas em 2021. Os dados constam no Atlas da Violência 2023, feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). 

“O número de mais de 616 mil homicídios equivale a dizimar a população de uma cidade como Aracaju, de 605.309; isso não pode ser normalizado”, disse Daniel Cerqueira, coordenador do Atlas da Violência, durante coletiva de lançamento do estudo, nesta terça-feira (5), em Brasília. 

O número de assassinatos verificado corresponde a uma taxa de 22,4 mortes por 100 mil habitantes. Segundo o estudo, houve redução dos índices de homicídios em praticamente todas as regiões, com exceção do Norte, resultando numa queda total de 18,3% no período avaliado. Tal diminuição, no entanto, tem relação, em boa medida, com questões externas à ação do poder público. 

De acordo com o levantamento, desde 2016, esse índice de violência vinha diminuindo nas regiões Sudeste, Centro-Oeste e Sul. Três fatores ajudaram a impulsionar essa redução, um deles o armistício, em 2018 e 2019, na guerra entre as duas maiores facções do país pelo controle do corredor internacional de drogas nas regiões Norte e Nordeste após a guerra ocorrida entre meados de 2016 até o final de 2017.

“Um ponto importante que temos de destacar é que nesses últimos anos, sobretudo de 2019 para cá, se acentuou um país partido, geograficamente e sociopoliticamente. Quando olhamos os mapas, percebemos que as cores da violência letal ficam mais fortes à medida em que a gente caminha do Sul para o Norte do Brasil, mostrando uma questão geográfica, além da violência contra grupos sociais minoritários politicamente”, afirmou Cerqueira. 

Outro fator é a mudança demográfica do país, com maior envelhecimento da população, o que leva à diminuição do número de jovens e, consequentemente da violência, que atinge mais essa faixa etária. Analisando-se os dados obtidos entre 2010 e 2020, “a proporção de homens jovens entre 15 e 29 anos na população brasileira diminuiu de cerca de 13,5% para 12,1%”, aponta o Atlas, fenômeno que teria o potencial de “fazer diminuir em até 20% a taxa de homicídio do país na década”. 

Por fim, cabe salientar o fato de que em alguns estados e municípios brasileiros houve a implementação de ações e programas qualificados de segurança pública. Neste sentido, o documento destaca programas implementados em São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco, Paraíba, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Rio Grande do Sul e Pará. 

Política armamentista

Segundo o Atlas, no entanto, “a redução dos homicídios no país não foi mais robusta devido à política armamentista desencadeada no governo Bolsonaro”. 

Na avaliação de Cerqueira, na contramão dos fatores que levaram à redução mais recente, “tivemos alguns elementos puxando esses índices para cima. Um deles é esse processo de extremismo que atingiu toda a sociedade com um discurso conservador, colocando populações politicamente minoritárias numa situação complicada, mas também, e sobretudo, o negacionismo da política armamentista do governo Bolsonaro”. 

Leia também: Governo Lula estabelece aumento de até 55% em imposto sobre armas e munição

Para ficar apenas na questão da relação entre os assassinatos e a maior circulação das armas de fogo, é preciso reforçar que, conforme aponta o Atlas, o país estava num momento favorável à redução dos homicídios, pelos fatores já citados anteriormente quando teve início a política pró-armas de Jair Bolsonaro. No último ano abarcado pelo Atlas, 2021, houve 33.039 homicídios causados por esse tipo de arma. 

Fazendo menção ao estudo “Armas de fogo e homicídios no Brasil”, do FBSP, a pesquisa aponta que “se não houvesse o aumento de armas de fogo em circulação entre 2019 e 2021, teria havido 6.379 homicídios a menos no Brasil. No caso dos homicídios ou latrocínios, os efeitos resultaram diretamente proporcionais: a cada 1% no aumento das armas de fogo, as taxas de homicídio e de latrocínio aumentam 1,2%”. 

Importante lembrar que as políticas armamentistas do ex-presidente levaram a um crescimento de 476,6% nos registros ativos de CACs (caçadores, atiradores e colecionadores), entre 2018 e 2022, bem como no aumento de ao menos 4,4 milhões de armas em estoques particulares. 

Leia também: Lula critica cultura armamentista legada pelo governo Bolsonaro

O Atlas lembra que a maior presença de armas de fogo na sociedade contribui para o aumento da violência, com destaque para ao menos três dinâmicas comuns: o crescimento no número de feminicídios a parir de desentendimentos domésticos em que a arma está presente; o sentimento de empoderamento que a posse da arma gera no indivíduo que se envolve em alguma contenda e o fato de que quanto mais armas houver no mercado legal, mais armas migrarão para o ilegal. 

Outro fator que conta para uma menor redução dos homicídios, segundo a pesquisa, é a guerra pelo controle do varejo de drogas em territórios das grandes cidades que “parece ter se acentuado com a pandemia, como o caso mais recente da guerra entre várias facções na Bahia tem mostrado”. 

Homicídios ocultos

Outro dado que chama atenção é o que o estudo chama de “homicídio oculto”. As mortes violentas com causas identificadas registradas no sistema do Ministério da Saúde podem ser classificadas como homicídios, suicídios ou mortes decorrentes de acidentes. 

Conforme explica o Atlas, “quando não se consegue identificar a intencionalidade envolvida no evento que desencadeou o primeiro processo mórbido, o óbito é classificado como Morte Violenta por Causa Indeterminada (MVCI). Uma parcela significativa de MVCIs, ou o crescimento desse indicador ao longo do tempo, implica, portanto, perda de qualidade dos dados e dificuldades para se analisarem corretamente os fenômenos violentos letais no país”.

O estudo aponta que no período analisado, “o Brasil não conseguiu classificar a contento o conjunto de 126.382 óbitos, que foram registrados como morte violenta por causa indeterminada (MVCI). Essas mortes podem ser tanto decorrentes de acidentes quanto de suicídios ou homicídios, portanto, causas totalmente diferentes entre si”. 

Leia também: Comunidade de Polícias das Américas é formalizada com 12 países

A partir de uma técnica utilizada pelos pesquisadores do Atlas, Daniel Cerqueira e Gabriel de Oliveira Accioly Lins para estimar o total de homicídios que estaria contido no total de MVCIs, chegou-se ao número aproximado de 49.413 homicídios nos 11 anos analisados. Ou seja, dizem os autores, “entre 2011 e 2021, o Estado foi incapaz de identificar como homicídio parcela que corresponde a 39,1% dos óbitos tratados como MVCI”. 

A baixa qualidade dos registros oficiais de mortalidade não é, contudo, um problema disseminado no país. Os autores indicaram que 72,5% do total de todos os homicídios ocultos estavam concentrados em quatro UFs: São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

O Portal Vermelho vai disponibilizar, em breve, matérias sobre outros dados do Atlas, mostrando a situação da violência em grupos como mulheres, LGBTQIA+, negros, indígenas, juventude, crianças, idosos e pessoas com deficiência.